A falsa liquidação da dívida

A falsa liquidação da dívida

A área econômica do governo anunciou, como se fosse um êxito notável, a liquidação antecipada de uma dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), de US$ 15,5 bilhões. 

O Sr. Lula da Silva, adicto à propaganda, declarou que "O Brasil virou dono de seu nariz". E: "O Brasil não é mais colônia de ninguém, pagamos nossas dívidas em dia, não obedecemos mais a grupos de fora. […] pagamos e não recebemos ordens de lugar algum."

Confessou, portanto, ter cometido crime de responsabilidade, ao receber ordens de grupos de fora e, pior, obedecê-las, ferindo o princípio básico da Constituição, a soberania nacional. Incriminou também seus predecessores, e com razão, no caso da maioria deles.

A publicidade enganosa sugere que se liquidou a dívida pública externa. Porém, esta – referente apenas ao setor não-financeiro – é de US$ 110 bilhões, segundo o dado mais recente do Banco Central (portanto, os débitos externos dos bancos públicos brasileiros não estão incluídos).

Argentina: história diferente

O presidente Nestor Kirchner jamais se disse tolhido em seu poder decisório pelo fato de a Argentina ter débitos com o FMI. Entre outras medidas em defesa dos interesses nacionais – as quais não se vêem no Brasil – o governo da Argentina renegociou a dívida externa, conseguindo redução média de 65,4% sobre o valor de face dos títulos, além de maiores prazos de vencimento e menores juros.

A Argentina permaneceu em moratória durante três anos e meio. Fez, assim, uma renegociação para valer, tendo-a concluído em junho de 2005. A reestruturação foi aceita por 76% dos credores. Os novos títulos montam a US$ 35,3 bilhões. Compare-se aos US$ 102 bilhões de dívidas e juros atrasados, segundo os contratos anteriores.

O serviço anual da dívida externa, de US$ 10 bilhões em 2001, cairá para US$ 3,2 bilhões. O governo argentino também está quitando dívida de US$ 9,5 bilhões para com o FMI.

Opções com as reservas

A liquidação dos créditos do FMI é preferível a acumular reservas, as quais rendem juros menores que os economizados com aquela liquidação. Mas, há opções bem melhores. No caso do Brasil, não se tendo feito o que impunha o interesse nacional – isto é, renegociar os títulos com os credores privados – resgatá-los é preferível à quitação da dívida com o FMI, pois eles têm taxas de juros bem mais altas que as dos empréstimos do FMI.

Outro ponto: o acúmulo de reservas em dólares causa prejuízos vultosos ao Tesouro Nacional*. Se ele tivesse formado reservas em ouro, desde 2003, teria obtido ganhos de capital, mais do que suficientes para liquidar os US$ 15,5 bilhões de uma dívida com o FMI. Tê-la-ia quitado e, além disso, estaria com reservas em montante mais alto que o atual.

As reservas provêm dos saldos positivos nas transações com o exterior, e estes são uma fração do que seriam sem as perdas na relação de troca e as transferências abusivas. De fato, sofre-se a exportação, a preços vis, de quantidades pletóricas e crescentes de bens intensivos de recursos naturais, com danos estratégicos e ambientais graves. É muito sacrifício sem proveito, a não ser para os que querem manter o Brasil em condição colonial.

Mesmo assim, os saldos do comércio exterior têm crescido nos três últimos anos, em função de: 1) aumento da demanda por matérias-primas; 2) estrangulamento da demanda no País, o que reduz as importações (mesmo com o superfaturamento das que fazem as transnacionais).

FMI versus soberania

Fazer e manter acordo com o FMI limita a soberania nacional, mas, no caso do Brasil, o que ocorre é que ela não estava sendo exercida, nem há perspectivas de que o seja, enquanto os governos forem formados do modo que vêm sendo.

O Banco Central e o Ministério da Fazenda (nesta ordem hierárquica subvertida) continuam não pretendendo alterar um iota da política econômica desenhada pelos concentradores financeiros em favor deles mesmos. Sob a vigência do acordo com o FMI, as ditas "autoridades monetárias" concediam mais vantagens àqueles concentradores do que as determinadas pelo FMI. Entre outras, supéravit primário mais elevado do que o estipulado na Carta de Intenções ao Fundo.

A meta: juro máximo

A receita dos tributos escorchantes é acumulada no Banco Central, só para dizer aos concentradores financeiros que há dinheiro em profusão, reservado para eles, a fim de ser gasto à vontade em juros, turbinados pelas taxas reais mais altas do Mundo, fixadas pelo próprio Banco Central. Com isso, o Tesouro Nacional despende, em 2005, na dívida interna,** 160 bilhões de reais, mais de 10 vezes o que gasta com os da dívida pública externa.

Eis outra confirmação de que o objetivo é pagar o máximo de juros: tendo o "risco-Brasil" caído para um patamar baixo, é viável lançar títulos, em dólares, a taxas de juros muito inferiores às praticadas na dívida interna.

Ora, em primeiro lugar, as autoridades monetárias deveriam fazer resgates líquidos dessa dívida. Não precisam emitir dívida nova. Em segundo lugar, se precisassem, seria menos danoso ao País emiti-la no exterior, a taxas de juros muito inferiores.

 


[email protected]. Doutor em Economia. Autor de "Globalização versus Desenvolvimento". Editora Escrituras: www.escrituras.com.br
* Ver artigo O perigo de ter reservas em dólar, nesta edição, mesmo autor.
**Dívida interna – é a emitida no País, em moeda nacional, indexada ou não a uma moeda estrangeira.
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