Hermenegildo de Assis Brasil nasceu a 27 de setembro de 1910 numa pequena fazenda de criação de gado. O afastado rincão onde Hermenegildo viveu até aos treze anos fazia parte do município gaúcho de São Gabriel e hoje pertence ao de Cacequi.
Os primeiros anos da meninice, ele os passou no pastoreio e na pequena agricultura.
Enrijeceu-se. Conheceu de perto a rudeza do trabalho camponês, e embora sua família tivesse algumas posses, Hermenegildo, desde cedo, travou contato com a miséria e a brutalidade a que estão entregues os trabalhadores rurais nas fazendas e latifúndios brasileiros.
O Rio Grande do Sul vivia, então, dias de intensas lutas políticas entre os dois tradicionais partidos gaúchos —o republicano e o libertador.
O senhor Antonio Augusto Borges de Medeiros — caudilho republicano — exercia o poder havia mais de vinte anos, enquanto os maragatos, organizados no partido libertador, eram mantidos à margem do governo.
Do ponto de vista político-social, ambos os partidos tinham as mesmas origens, os mesmos objetivos, a mesma composição. Cindiam de alto a baixo a velha sociedade semi-feudal riograndense. Encarniçavam-se na disputa sangrenta do poder, mas nada traziam de novo ou promissor, capaz de sacudir os alicerces do regime caduco e odioso do latifúndio e da servidão da massa rural.
Chefiava o partido libertador um tio de Hermenegildo — Joaquim Francisco de Assis Brasil — abastado estancieiro. A oposição política dirigida pelos maragatos obrigava-os a uma acalorada linguagem que, não raro, assumia as proporções de desenfreada demagogia. O poder, porém, se mantinha nas mãos dos republicanos — os chimangos. Em 1923 explode a luta. A família de Hermenegildo dela participa ativamente, na oposição, no campo maragato. A massa rural e as camadas médias das cidades são arrastadas pelos caudilhos locais, divididos nos dois partidos. Embora substancialmente não diferisse dos republicanos, o partido libertador, colocado na oposição, congregava, grosso modo, aquela ala das classes dominantes que, afastada do poder político, era obrigada a defender princípios de liberdade e representação, desprezados pelo grupo que detinha o poder nas mãos.
Hermenegildo tem sua atenção voltada para a luta que varria o estado sulino. Dos entrechoques sangrentos entre as duas facções, participava, com maior ou menor intensidade, a população riograndense em peso. Não havia lugarejo, por mais insignificante que fosse, onde a paixão política não acendesse ódios, dividindo os habitantes nos dois grupos rivais. Foi nesse ambiente de lutas e correrias, de choques e entreveros, participando mesmo em alguns deles, que Hermenegildo — muito desenvolvido para a idade que tinha — viveu alguns anos de sua juventude. O movimento termina com o tratado de Pedras Altas, conchavo político entre os dirigentes das duas facções.
As populações pobres das cidades e dos campos, porém, continuavam na mesma opressão das estâncias, na mesma miséria, na mesma ignorância do que as faziam sair à luta.
Mantidos à margem do poder, os libertadores, descontentes, voltam a conspirar. Há o levante de cinco de julho de 1924, em São Paulo. Os revoltosos, obrigados a abandonar a capital paulista, são empurrados de encontro às fronteiras, na região do Iguaçú.
Em apoio aos revoltosos do segundo cinco de julho, levantam-se no Rio Grande do Sul, em outubro de 1924, varias guarnições federais. Na região missioneira, a figura de Prestes agiganta-se e impõe-se como a do comandante. Os libertadores, cujas armas mal tinham sido ensarilhadas, voltam à luta.
A juventude rebelde de Hermenegildo entusiasma-se. Prestes — o caudilho que rapidamente se torna lendário — enche sua imaginação. A coluna em marcha pelo coração do Brasil, agitava problemas, acendia esperanças. Hermenegildo, então estudante em Porto Alegre, volta a São Gabriel e senta praça na unidade de artilharia local, ligando-se à conspiração que, em apoio da coluna, voltava a fermentar nos quartéis.
A data do levante no quartel de artilharia de São Gabriel foi marcada. Hermenegildo era um de seus mais estusiastas organizadores. O momento da deflagração foi, porém, denunciado e todos os que iriam participar da rebelião foram expulsos “a bem da ordem pública”. Hermenegildo foi um dos expulsos. Tinha então, apenas, dezesseis anos de idade!
A têmpera do revolucionário
O movimento armado de outubro de 1930 encontra Hermenegildo novamente conspirando, como soldado, na fábrica de cartuchos de Realengo onde, ocultando sua antiga expulsão, conseguira sentar praça. A fábrica era, então, chefiada por um coronel reacionário e atrabiliário. O espírito retilíneo e indomável de Assis choca-se frontalmente com o de seu comandante. O soldado é mais uma vez expulso, desta feita, por “incitar a indisciplina entre os praças”. Foi durante sua permanência como soldado na fábrica de cartuchos que Hermenegildo, trabalhado por tenaz propaganda esclarecedora e convencido da inutilidade dos golpes e quarteladas, ingressou no Partido Comunista do Brasil.
Tendo obtido uma pequena importância com pessoas de sua família, Hermenegildo comprou uma tipografia em Cascadura, colocando-a à disposição do partido. Grande parte do material de agitação e propaganda então divulgado pelo partido, foi impresso na tipografia de Hermenegildo. A polícia, com a ajuda de um traidor, localiza as oficinas. Repetem-se então, os costumeiros vandalismos dos bandidos da polícia política. Hermenegildo é preso e repetidas vezes torturado. A reação, porém, não consegue arrancar dele uma palavra que fosse capaz de comprometer os companheiros. A têmpera do revolucionário, frente a frente com a reação, revela-se em toda a plenitude.
A certa altura do interrogatório, Assis desafia seus algozes:
Vocês que se dizem homens, seriam mais dignos se me mandassem fuzilar ao invés de me espancarem. De qualquer modo vocês perdem tempo. Eu nada lhes direi.
Visando localizar outras pessoas ligadas a Hermenegildo, a polícia o põe em liberdade. Assis percebe o estratagema policial e evita ligar-se aos companheiros, revelando assim grande compreensão sobre a necessidade de se ter o máximo cuidado no restabelecimento de ligações com a organização, logo após uma prisão. Por isso, pode, alguns dias depois, iludir a vigilância policial que se exercia sobre ele e voltar ao Rio Grande do Sul, onde se entregou ao trabalho revolucionário.
Herói do movimento nacional libertador
Em 1933, regressa ao Rio e, por determinação do partido,consegue novamente ingressar no exército, desta feita no contingente da escola de aviação militar, no Campo dos Afonsos. De então até novembro de 1935, Hermenegildo entregou-se à mais febril atividade revolucionária, preparando o movimento armado de novembro daquele ano.
No Campo dos Afonsos estavam aquarteladas três unidades: a escola de aviação militar, o regimento escola e a Unidade de Infantaria de Guarda. Assis era o secretário político da célula desta última unidade. Como tal, foi o organizador e o executante mais responsável do plano de levante e do desencadeamento da luta na madrugada heróica de dois de novembro, naquela unidade. Dentre todas as lutas de quartel realizadas no Brasil de 1922 para cá, o levante do Campo dos Afonsos foi o de maior audácia, de maior vigor revolucionário.
Na jornada tombaram, entre outros, os dirigentes José Ribeiro Filho e o soldado Mineirinho, secretário político da célula do Campo dos Afonsos. Ao lado de Assis combateu o cabo Jofre Alonso da Costa que, alguns meses mais tarde, foi assassinado pela policia de Getúlio Vargas. Esmagado o movimento, Hermenegildo consegue evadir-se, não para fugir à responsabilidade de sua atuação, mas para prosseguir no trabalho revolucionário.
O partido liga-o a uma célula de jovens alunos do colégio militar do Rio de Janeiro. Acossado pela reação, o Partido Comunista do Brasil sofria a mais brutal e sanguinária repressão. A polícia política orientada pelo Intelligence Service e pela Gestapo2, multiplica-se em assassínios, torturas e espancamentos dos presos que sobem a dezenas de milhares. Lares são invadidos diariamente e os comunistas e aliancistas, caçados como feras. O fascismo estava em ascensão no mundo e a reação getúlio-felintista atingia o país inteiro.
O trabalho revolucionário era, então, sumamente difícil e perigoso, principalmente para um partido que havia sofrido tão duro revés. Apesar disso, e da diligência policial-integralista em localizar e prender os revolucionários nacional-libertadores, Assis prossegue sem desfalecimentos no trabalho de reorganização do partido.
Em abril de 1936, a Aliança Nacional Libertadora, orientada pelo partido, pretende levar a cabo uma nova ação de envergadura contra a ditadura getulista. Mas os elementos de que dispunha não estavam suficientemente organizados e à última hora há uma contra-ordem. A missão da célula assistida por Hermenegildo era a de apossar-se do armamento do Colégio Militar e, posteriormente, barrar a passagem do batalhão policial do Andaraí.
Dias depois, a casa na rua São Francisco Xavier n° 340, de onde devia partir o assalto, foi denunciada. Ali se ocultavam alguns camaradas e estavam depositadas algumas armas. Enquanto a polícia tenta arrombar a porta da frente, rapidamente se discutem as últimas medidas: todos sairiam pelos fundos, com as armas, abrindo caminho, se necessário, a viva força, enquanto Hermenegildo garantiria a fuga.
Capturado violentamente, Hermenegildo é levado à polícia onde encontra presos alguns jovens alunos que faziam parte de sua célula.
Guiados pelo exemplo de Hermenegildo, os jovens estudantes — os “meninos”, como carinhosamente Hermenegildo costumava chamá-los — se portam com singular heroísmo. Mais uma vez a serenidade e a firmeza do militante comunista são postas à prova. A polícia estava informada de que Hermenegíldo era o assistente político da célula juvenil e que, portanto, era senhor das ligações com os organismos superiores do partido. Em vão, sob suplícios e torturas de toda ordem, buscam arrancar de Hermenegildo uma palavra. Jamais ele disse o que quer que fosse que pudesse orientar o inimigo. Quando abria a boca era para revidar insultos ou para desafiar os algozes policiais:
— Eu já estava disposto a nada dizer antes de vocês me espancarem, agora mesmo é que eu nada lhes direi.
Mais tarde, Hermenegildo explicava-me, com aquela simplicidade que era um dos traços mais característicos de sua pessoa:
— Você compreende, camarada, a célula a que eu estava ligado era composta de jovens, a bem dizer, de meninos. Se eu fraquejasse iria contribuir para desiludir os “meninos” logo no começo de sua carreira revolucionária. E isto eu não podia fazer. Eu precisava corresponder à confiança que os “meninos” depositavam em mim e no partido.
Um desses meninos, forjados pela dedicação e a bravura de Hermenegildo de Assis Brasil, foi o jovem Joran que desapareceu em 1940, na faina de reorganizar o partido. O exemplo de Joran foi tão marcante que uma célula do partido adotou, com orgulho, o nome do jovem estudante, companheiro e discípulo de Hermenegildo.
Numa de suas peregrinações pelas prisões políticas, que na época se contavam por centenas, Hermenegildo foi lançado a uma cela do Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, em São Cristóvão. Não o deixavam sair da infecta e escura enxovia para nada. Várias semanas sem sol e sem banho. Serviam-lhe uma única e péssima refeição por dia. O ar confinado da cela era pesado e viciado. Haviam-no despojado da roupa, deixando-o apenas com um calção. Seu leito era o cimento úmido e frio. Nada deixou de ser feito para quebrar o ânimo do lutador. Um dia, um tenente integralista resolve tripudiar sobre o comunista preso. Aproxima-se da cela e interpela o prisioneiro:
—Você que é um rapaz de uma família tão boa, como a família Brasil, não tem vergonha de ser comunista?
A resposta do soldado preso ao tenente carcereiro foi imediata e vibrou como uma chicotada: — E você que nem é de boa família, não tem vergonha de não ser comunista?
Nada pode impedir o prosseguimento da luta.
Agora vamos encontrar Hermenegildo de Assis Brasil preso na Fortaleza de Santa Cruz, para onde fora transferido porque descobriram que ele estava abrindo um buraco na parede da cela para fugir. Apesar de não dispor de instrumento algum o “trabalho” já estava adiantado, embora não pudesse ser mais rápido por lhe sangrarem as mãos.
Construída sobre um rochedo escarpado que avança para o mar, na entrada da baía do Rio de Janeiro, a velha fortaleza não é acessível pelo lado de terra. O mar castiga fortemente as encostas da rocha e a correnteza provocada pelas marés são de perigosa impetuosidade nas proximidades da estreita entrada da barra. Sem ajuda de fora e sem a conivência de elementos da guarnição da fortaleza, jamais alguém se evadira de Santa Cruz. A fuga de conhecidos líderes tenentistas, em princípios de 1930, tornou-se famosa e citada como prova de heroísmo, ainda que realizada com a cooperação de oficiais da guarnição da fortaleza e de uma lancha da Marinha de Guerra.
Hermenegildo, sem a ajuda de ninguém, da guarnição ou de fora da fortaleza, sozinho, sem pressão ou solicitação de quem quer que fosse, resolve fugir da Fortaleza de Santa Cruz! Não tem ligação alguma, nem um vintém no bolso. E depois não foge para o conforto ou o comodismo. Fora o espera a luta rija e difícil. A incitá-lo unicamente está o seu dever revolucionário: ânsia incontida de liberdade, de viver, de trabalhar pela vitória do socialismo. E Hermenegildo não hesita.
Na escuridão da noite, com a roupa amarrada á cabeça, com farrapos de lençol à guisa de corda, ei-lo deslizando pela amurada da fortaleza, no curto espaço de tempo em que a sentinela, de arma embalada, vai de um lado ao outro da amurada. A corda, porém, era frágil. Hermenegildo cai de altura superior a dois metros sobre as pedras do quebra-mar. Mesmo ferido, sangrando abundantemente, nada mais de mil metros, na direção do Saco de São Francisco e, após várias horas, atinge local onde consegue galgar a rocha escarpada. Esfalfado, debilitado pela perda de sangue, espera o dia surgir. Depois de aguardar que a roupa secasse tem ele outro problema a resolver para atingir o Rio: a falta de dinheiro para a barca.
Nas proximidades havia um estábulo. Hermenegildo, visando obter alguns níqueis, ofereceu-se para trabalhar ali, mas o dono, alegando não precisar de empregado, aceita-o apenas pela comida. Com o tirocínio de antigo criador, Hermenegildo trata tão bem o gado estabulado que, em poucos dias, sua eficiência se faz sentir. O patrão está plenamente satisfeito com o empregado, mas supondo tratar-se de “um pobre diabo” não lhe dá um vintém, durante dois meses. A paciência de Hermenegildo estava a ponto de esgotar-se quando, um dia, o patrão o manda com Cr$ 2,00, fazer uma compra…
Na sua tocante simplicidade, abstraindo a odiosa exploração a que o sujeitava o patrão eventual, para só ver o lado positivo para o revolucionário, que era a fuga e a perspectiva de preocupação do seu posto de luta, Hermenegildo me dizia mais tarde, comentando o fato: — O português até hoje está esperando por mim…
Novamente o trabalho revolucionário. O partido, porém, não conseguira ainda se refazer e as prisões se sucediam. Assis é novamente preso, por estar sendo processado pelo Tribunal de Segurança Nacional como participante do movimento de novembro de 1935. O promotor do tribunal infame pedia para ele, por uma das denúncias, oito anos de prisão.
O processo se arrasta e mesmo sem estar ainda condenado, Hermenegildo passa alguns meses preso, na casa de detenção do Rio de Janeiro. Entrega-se, então, ao estudo das obras teóricas de Marx, Engels e Lenin. É que a prisão, para Assis, não era um lugar de repouso, pois ele sabia aproveitá-la como uma forma diferente de prosseguir na luta.
No pequeno surto democrático de começos de 1937, Hermenegildo é novamente posto em liberdade, mediante habeas-corpus.
A velha Espanha Republicana sangrava na guerra patriótica contra as hordas invasoras do fascismo. No mundo inteiro recrutam-se combatentes para a Espanha democrática. Os quadros militares faziam falta ao exército republicano, desprovido de oficiais pela deserção da maioria da oficialidade fascista. Vários combatentes brasileiros das jornadas heróicas de 1935, resolvem se apresentar. Hermenegildo está entre eles. Mas era preciso chegar até Montevidéu e Assis, então no interior do Rio Grande do Sul, está sem dinheiro. Empreende a marcha, mesmo a pé, chega a Montevidéu, se traslada para Buenos Aires, de onde consegue embarcar, finalmente, rumo à Europa.
Antes, porém, tem de aguardar o embarque cerca de dois meses e não há dinheiro. Assis se coloca como peão numa fazenda das proximidades de Buenos Aires. Aos sábados, cansado do trabalho, ao invés de entregar-se a um compreensível repouso, vence a pé as duas léguas que o separam da república onde outros voluntários brasileiros aguardam o embarque para a Espanha. Ia em busca de novidades e costumava reclamar:
— Que diabo! quando nos mandarão para lá? Estes senhores do Comitê de Ajuda ao Povo Espanhol são esquisitos…
A verdade, porém, era muito pior do que Hermenegildo imaginava. Traidores trotskystas tinham se infiltrado no Comitê de Ajuda e, mancomunados com o bandido Franco, denunciavam os navios que levavam voluntários para a Espanha Republicana. Os navios eram detidos nas Canárias — já em poder de Franco — e os voluntários retirados de bordo eram fuzilados.
O Belle Isle, em que Hermenegildo e outros voluntários brasileiros viajavam, passou muito ao largo das Canárias e não pode ser detido.
Assim Hermenegildo conseguiu chegar a Paris.
Dois dias depois os jornais noticiavam a ruptura da Frente de Aragão. Era o começo do fim da resistência republicana. Quando Assis soube do desastre teve um único comentário para o companheiro que embarcara com ele em Buenos Aires. Comentário simples e espontâneo mas que mostra a firmeza do combatente comunista, aliada à profunda convicção de que a luta revolucionária deve prosseguir seja onde for, até à vitória final:
— A gente precisa chegar o quanto antes.
Quando na Espanha, perguntaram a Assis qual a arma, a especialidade de sua preferência, ele respondeu com sua naturalidade camponesa, à qual não faltava, então, o timbre resoluto e heróico do militante comunista:
— Qualquer lugar me serve. Eu vim para combater o fascismo, qualquer lugar onde eu possa fazer isso, para mim está bem.
Foi assim que Hermenegildo de Assis Brasil tornou-se soldado da gloriosa Espanha anti-franquista.
Quando entregaram a Assis o decreto de promoção ao posto de tenente, com a designação para ir servir no agrupamento norte do exército do leste, foi um custo convencê-lo a aceitar a promoção. A confiança que depositava em si próprio entrava em choque com sua modéstia.
— O posto de tenente do exército é superior à minha capacidade. Eu não posso aceitar.
Nunca Assis se enganara tanto como a respeito de sua incapacidade para comandar um pelotão. Em Piedras de Aôlo, em hábil manobra de envolvimento que se seguiu a uma complicada e delicada operação de substituição, Assis foi o inspirador e o realizador de uma das maiores façanhas da guerra espanhola. Com seu pelotão de menos de sessenta homens, isola e consegue aprisionar seiscentos fascistas!
Sua promoção ao posto de capitão é proposta pelo alto comando que cita o ato de bravura de Hermenegildo na ordem do dia do exército do leste.
Mas a traição de Chamberlain e Daladier3 produzia seus frutos. O Exército Republicano não podia, sozinho, resistir às hordas franquistas, italianas, germânicas e marroquinas. A frente se desmorona.
A felonia quinta-colunista e a Federação Anarquista Ibérica completam a obra fascista. Esboroam-se as resistências da heróica Catalunha.
As brigadas internacionais, que haviam sido desmobilizadas, voltam a reorganizar-se, sob o comando do gigante André Marty. A retirada desordenada e caótica começa a organizar-se, mas as deserções se multiplicam. Só o V Corpo de Exército, composto exclusivamente de comunistas, resiste com firmeza, cobrindo a retirada de civis e militares rumo à França.
Das brigadas internacionais é retirada uma companhia com a missão de cooperar com o V Corpo, na cobertura da retirada.
Marty precisava designar o comandante da companhia heróica. Um tal comandante devia reunir qualidades de compreensão política, de comando, habilidade, de bravura, de renúncia, de estóica firmeza revolucionária. Havia então mais de 6.600 voluntários internacionais, dentre os quais escolher. E a escolha do experimentado dirigente internacional, do velho dirigente da insurreição dos marinheiros franceses, em 1917, no mar Negro, recai sobre o já então capitão Hermenegildo de Assis Brasil!
Próximo à fronteira franco-espanhola, a França de Blum e Daladier organizou vários campos de concentração. Na primeira quinzena de fevereiro de 1939, Hermenegildo é recolhido a um desses infernos — o de Saint Cyprien. Soldados, mulheres, velhos e crianças se amontoam aos milhares, às centenas de milhares. O campo de Saint Cyprien ficava localizado numa praia mediterrânea, fustigada pelo vento. Nada havia onde os prisioneiros se pudessem abrigar: nem casas, nem barracões, nem tendas, nem uma simples árvore. Os prisioneiros cavavam buracos na areia úmida e se aconchegavam para melhor poderem suportar o vento, a neve e o frio.
A guarda dos campos era composta de mercenários senegaleses — verdadeiras feras amestradas pela reação dos “não -intervencionistas”. Dezenas de retirantes foram friamente assassinados quando, inadvertidamente, ultrapassavam a linha imaginária de demarcação do campo.
Em abril de 1939, as brigadas internacionais são separadas dos espanhóis e enviadas para o campo de concentração de Gurs, nos baixos Pirineus. Hermenegildo está entre os internacionais. Durante a permanência de Assis em Gurs, o embaixador do Brasil na França foi visitar os brasileiros para repatriá-los, por ordem do governo, que cedia, assim, à pressão da opinião democrática internacional revoltada contra a odiosidade dos campos de concentração, na França. (Entre os combatentes anti-fascistas brasileiros ficara resolvido que os não condenados pelo tribunal de segurança deviam aceitar a repatriação, enquanto os condenados não tinham por que trocar uma prisão por outra e virem para o Brasil à espera de uma remota e problemática anistia. Hermenegildo foi dos mais resolutos defensores da tese de não se entregarem). Dirigindo-se a Hermenegildo, o representante diplomático da camarilha getulista disse:
— Vocês vão morrer aí nesses buracos…
A resposta, rápida e firme, parecia brotar de uma velha convicção arraigada à qual se dava oportunidade de manifestar-se mais uma vez:
— Aqui nós não estamos condenados; de um momento para outro poderemos usar a liberdade para prosseguir na luta.
Em fevereiro de 1940, após um ano de prisão, a maior parte do qual passada no campo de concentração de Gurs, o governo francês resolve mobilizar à força os prisioneiros, para as companhias de trabalho no front. A posição política dos comunistas e dos anti-fascistas só podia ser uma: não apoiar um governo de traidores e capitulacionistas como o dos “socialistas” Daladier, Blum e Cia.
Com três outros brasileiros, inclusive Wolf Roitberg — o herói anti-fascista que em 1944 foi fuzilado pelos nazistas — Hermenegildo é enviado para a fronteira franco-belga-luxemburguesa para os trabalhos forçados no prolongamento noroeste da linha Maginot.
Os maus tratos e as violências sofridas no decorrer da viagem são indescritíveis. Os prisioneiros eram transportados em vagões de gado.
O otimismo sadio de Hermenegildo parece zombar da adversidade: nunca se ouviu dele uma queixa. Assim era Hermenegildo. Sua firmeza revolucionária como que buscava alento para revelar-se na plenitude de sua pujança, nas ocasiões de descenso revolucionário, nas horas mais duras. Em maio de 1940, os alemães desencadeiam sua fulminante ofensiva contra as desmoralizadas tropas anglo-francesas, minadas pela traição e pelo quinta-colunismo. Sucedem-se os bombardeios. Há uma ordem do governo francês para que os trabalhadores prisioneiros sejam retirados para o sul da Bretanha, nas proximidades do porto de Vannes.
Em marchas forçadas, sob o olhar vigilante e odioso da gendarmerie, sob a metralha e os bombardeios, largando a bagagem pelos caminhos, chegam os anti-fascistas prisioneiros ao novo campo de concentração.
Pouco depois — quatorze de junho — a queda de Paris; a capitulação completa, o armistício. O campo onde estavam Hermenegildo e seus companheiros ficava na zona de ocupação alemã. Voltar à vida, voltar à luta, impulsiona novamente a vontade férrea do combatente comunista.
Foi, então, estudado um plano de fuga por grupos nacionais e, dentro destes, por grupos de companheiros mais íntimos. Hermenegildo, Wolf e quatro outros brasileiros ficaram no mesmo grupo. A fuga deveria ser realizada à noite, entre um posto e outro de sentinela, através da cerca eletrificada de arame farpado. A passagem deveria efetuar-se, um a um, tendo sido combinado um ponto de reunião fora do campo.
Hermenegildo foi o quarto a cruzar a cerca. Depois dele, o quinto foi surpreendido e a sentinela abriu fogo. O sexto já não pode sair.
Nos cinco primeiros dias após a evasão, andaram os fugitivos mais de 120 quilômetros, dormindo de dia, ao ar livre, e marchando à noite, furtando-se à vigilância que se realizava nas estradas. A experiência de Assis, improvisando o que era necessário, e seu otimismo levantaram os ânimos, ajudando-o a prosseguir.
A 28 de junho de 1940, Hermenegildo e seus camaradas brasileiros chegavam a Paris.
Revolucionário até o fim
Entre os emigrados espanhóis encontrava-se a jovem Josefina — a catalã republicana.
Hermenegildo se aproxima de Josefina. Amam-se em Paris, na velha Paris espezinhada pelo tacão da bota nazista. Mas logo as circunstâncias o obrigam a escolher entre o amor da companheira e o chamado da luta. Acontece que era praticamente impossível a um revolucionário estrangeiro movimentar-se utilmente para a revolução na capital francesa, vigiada pela Gestapo e pelos colaboracionistas. Os três brasileiros anti-fascistas que se encontravam em Paris resolvem sair da França ocupada. Hermenegildo teria que deixar Josefina e empreender a fuga. Era impossível levá-la consigo.
A embaixada brasileira, mancomunada com os nazistas, não visaria os passaportes dos três anti-fascistas. A saída deveria ser clandestina.
Hermenegildo, com seus dois companheiros, deixa Paris rumo à linha demarcatória em fins de maio de 1941. Palmilharam a estrada no estilo que lhes impunha a situação: à noite marchavam; de dia, ocultavam-se.
Na noite de primeiro para dois de junho, os três camaradas atingem a linha demarcatória. Mais alguns passos e estariam fora da França ocupada. Nessa noite Hermenegildo se queixa de sentir a cabeça pesada, de o incomodar muito uma pequena espinha no nariz. Tem febre. Pela madrugada delira. Seus camaradas querem tratá-lo, mas não há recursos, não conhecem ninguém. Os mil olhos da Gestapo estão em toda a parte. Procurar algum recurso local seria arriscar tudo. A febre aumenta. Para hospitalizá-lo têm de regressar a Paris. Nos momentos de lucidez, percebendo que contramarchavam, Hermenegildo protesta. Mas o robusto organismo, ainda que temperado por duras e rijas jornadas, fraqueja, minado pela infecção.
No dia três já não reconhece os camaradas. No dia quatro de junho de 1941 morre de cepticemia. Assim, aos trinta anos de idade, expirou um dos mais valentes, honestos e abnegados lutadores brasileiros da causa do socialismo internacional.
Assim, Hermenegildo morreu em plena luta. Morreu porque, palmilhando o caminho do dever revolucionário, achou-se à míngua de recursos.
A vida de Assis foi, pois, um permanente, um continuado exemplo de abnegação e firmeza revolucionárias. Ele não era desses que só manifestam entusiasmo, disposição, combatividade, nos momentos de ascenso revolucionário. Lenin observava que “não é difícil ser revolucionário quando a revolução instalou e se encontra no seu apogeu, quando todos e cada um aderem à revolução por entusiasmo, por moda e às vezes por interesse pessoal e desejo de fazer carreira…” Hermenegildo de Assis era o contrário disso: a sua combatividade, o seu entusiasmo encontravam formas de expressão mais vivas e mais heróicas nas horas de descenso revolucionário, nas horas amargas em que tudo parecia sossobrar.
São homens da têmpera de Assis que imprimem velocidade crescente ao movimento revolucionário. Exemplo que adeja pelas alturas do sublime, quando se revela na confiança do papel da juventude revolucionária: “Você compreende, camarada, se eu fraquejasse iria desiludir os ‘meninos’, logo no começo de sua carreira revolucionária. E isto eu não podia fazer. Eu precisava corresponder à confiança que os ‘meninos’ depositavam em mim e no partido.’”
Os que tiveram a oportunidade e a honra de conhecer de perto Hermenegildo de Assis Brasil, jamais esquecerão aquela figura simples, rude e boa, para quem a vitória do socialismo era o fanal de sua vida heróica. De olhar sereno e calmo, com lampejos de energia e astúcia. Olhar manso espelhando a simplicidade, a rudeza, a bondade, mas também a firme e exemplar determinação de um consciente militante proletário do jovem partido Comunista do Brasil.
1 Texto publicado na revista Problemas, editor Diógenes Arruda, no. 26 – maio de 1950. Rio de Janeiro. 2 Intelligence Service – Rede dos serviços de espionagem/sabotagem e terrorismo da Grã-Bretanha. Gestapo, abreviatura de Geheime Staatspolizei. À maneira da CIA do USA, foi a polícia criminosa e terrorista dos nazistas, utilizada para destruir as organizações proletárias e democráticas, principalmente o Partido Comunista. Tornou-se responsável por exterminar milhares de combatentes antifascistas em todo o mundo, prisioneiros de guerra e a população civil nos países ocupados pelas forças do Reich. (N. de AND) 3 Primeiros-ministros, respectivamente, da Inglaterra e França, os quais negaram ajuda à Espanha republicana. Era a época do “apaziguamento na Europa”, cínica estratégia movida pela burguesia financeira da Alemanha, Itália, Grã-Bretanha e França, que chegou ao ápice quando, de 28 a 30 de setembro 1938, é firmado o vergonhoso Pacto de Munique (a Amazônia, consta nas atas, foi oferecida a Hitler, por Chamberlain, depois de consultado o governo ianque!), uma extensão do Pacto Anti-Kominter. Sob a bandeira do anticomunismo, o sistema de governo fascista ocupava a Europa. Em julho de 1940, com sede em Vichy, a terça parte do território francês (um pretenso Etat Français, denominado “área não ocupada”), passou para as mãos dos traidores Philippe Pétain, Maxime Weygand, Édouard Daladier, com o auxílio de Pierre Laval, François Darlan e o trotskysta Jacques Doriot (colaboracionista, participa da invasão da URSS, usando uniforme nazista, dirige a Liga dos Voluntários Franceses contra o Bolchevismo) que, com distinta composição, instauraram uma ditadura fascista. O governo de Vichy assassinou milhares de resistentes patriotas. Em 14 de junho de 1942 caiu Paris e, em novembro, Vichy tornou-se o governo títere de toda a França, entregando o país às tropas alemãs e italianas.(N.de AND.)