A Física é a ciência que estuda as leis do Universo, as interações da matéria e energia e as formas como essas se manifestam. Portanto, não é exagerado dizer que a Física está em tudo.
Uma de suas áreas é chamada de Física de Altas Energias, cujo objetivo é estudar as quatro interações fundamentais da natureza, isto é, força gravitacional, força eletromagnética, força fraca (explica os processos de decaimento radiativo), força forte (responsável pela estabilidade do núcleo dos átomos) e seus elementos mais fundamentais, as partículas elementares. Em Física de Altas Energias são estudados os chamados raios cósmicos que são partículas dotadas de muita energia que atingem a Terra advindas de todas as partes do Universo. Quando essas partículas penetram na atmosfera e se chocam com os núcleos atômicos dos gases produzem uma cascata com bilhões de partículas e radiação que podem chegar ao solo. Nesse instante, nossos corpos estão sendo atravessados por dezenas dessas partículas. Esse fenômeno aguçou a curiosidade de vários cientistas que, a partir da década de 1930, tinham por objetivo: primeiro, descobrir a origem dos raios cósmicos; e segundo, utilizar a energia que eles carregavam para descobrir do que a matéria era formada.
Um dos cientistas que se dedicou ao estudo dos raios cósmicos foi o brasileiro César Lattes. Nascido em Curitiba em 1924, Lattes obteve o bacharelado em Física e Matemática em 1943 na Universidade de São Paulo (USP). No início de 1946 chegou à Universidade de Bristol, Inglaterra, para trabalhar no grupo de pesquisas sobre raios cósmicos com o britânico Cecil Powell e o italiano Giuseppe Occhialini, este último foi seu professor na USP. A equipe de Bristol estudava a desintegração de partículas subatômicas utilizando placas fotográficas. Lattes solicitou ao fabricante que introduzisse o elemento químico boro na composição dessas placas e as levou até os Pirineus franceses a 2,5 mil metros de altitude. Ao revelar as chapas fotográficas, ficaram comprovadas as primeiras evidências da existência do méson pi.
O méson pi é uma partícula que compõe o núcleo do átomo, sendo responsável por manter os prótons e nêutrons grudados, impedindo que o núcleo se desintegre. Essa descoberta gerou um artigo publicado em 1947 na Revista Nature,cujos autores foram Lattes, Muirhead, Occhialini e Powell. O brasileiro concluiu que a exposição de chapas fotográficas em grandes altitudes era a chave para detecção de mesóns pi e, colocando em prática as palavras do grande Karl Marx, não temeu o cansaço de escalar as veredas escarpadas do Monte Chacaltaya na Bolívia (5.300 m) para alcançar os cumes luminosos da ciência. Os resultados obtidos na Bolívia originaram mais dois artigos científicos com grande repercussão internacional assinados por Lattes, Occhialini e Powell.
Lattes recebeu vários convites para conferências em centros de pesquisa na Europa. Em Copenhague (na Dinamarca), encontrou-se com o físico dinamarquês Niels Bohr, ganhador do Nobel de 1922. No início de 1948, se lançou em um novo desafio: detectar mésons no mais potente acelerador de partículas do mundo instalado na Universidade da Califórnia (Berkeley/USA). O equipamento estava funcionando há mais de um ano, mas não havia detectado um méson sequer. Dez dias depois de chegar, Lattes e um colega estadunidense visualizaram mésons nas chapas fotográficas expostas ao feixe de partículas gerado pelo sincrociclótron.
Além das aplicações na área de altas energias, a tecnologia do méson pi pode ser utilizada no tratamento radioterápico contra o câncer. Os raios gama usados atualmente causam muito dano na região ao redor do tumor e a radiação do méson pi se concentraria somente sobre as células doentes. Outra aplicação seria a produção de raios-X de maior precisão para análise de ligas metálicas.
Os feitos de César Lattes tiveram grande repercussão no Brasil. Iniciou-se uma campanha que culminou com a fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no início de 1949. Nesse período também foi criado o Conselho Nacional de Pesquisa, que mais tarde se transformou no atual CNPq. Acreditou-se que o efeito Lattes motivaria a construção de um “projeto de nação” a partir da ciência visando o domínio do ciclo completo da energia nuclear. Mas essa ideia não combinava com os interesses do imperialismo ianque, que após a 2ª Guerra Mundial intensificou o processo de subjugação e espoliação do Brasil. A intervenção estrangeira aliada à governantes submissos e o mau-caratismo dos responsáveis por esse “projeto” (Álvaro Difini, então Diretor Executivo do CNPq, “torrou” o dinheiro da construção do acelerador de partículas brasileiro em corridas de cavalo) fizeram com que o mesmo naufragasse. Esses fatos ratificam o caráter semicolonial e semifeudal do Brasil que investe, atualmente, somente 1,28% do seu PIB em Ciência e Tecnologia. A ingenuidade e a falta de traquejo de Lattes para lidar com episódios como esse o levou a um surto psicótico em 1954. Viajou para o exterior em busca de tratamento de saúde. No regresso ao Brasil três anos depois, talvez tentando dar continuidade ao seu trabalho, voltou à USP. Em 1967 se transferiu para a Universidade de Campinas (Unicamp) onde se aposentou em 1986.
César Lattes poderia ter construído sua carreira científica no exterior, mas optou pelo Brasil. Numa entrevista de agosto de 1996 ao jornal Diário do Povo (Campinas) disse: “Não sou mercenário. Não me vendo, ainda mais para fazer guerra”. Talvez referindo-se à recusa do convite para ocupar a cátedra de Enrico Fermi na Universidade de Michigan. Ele dizia preferir ajudar a construir a ciência no Brasil do que ganhar um Nobel. Aliás, o prêmio do inventor da dinamite foi concedido em 1949, ao físico japonês Hideki Yukawa pela previsão teórica dos mésons e em 1950 ao físico Cecil Powell (aquele de Bristol) por desenvolver o método fotográfico que permitiu as descobertas sobre os mésons. Lattes recebeu sete indicações para o Nobel de Física.
Dentre as homenagens está a de dois grandes mestres da cultura popular brasileira: Cartola e Carlos Cachaça. Eles o eternizaram no samba Ciência e arte, composto em 1948:
Tu és meu Brasil em toda parte
Quer na ciência ou na arte
Portentoso e altaneiro
Os homens que escreveram tua história
Conquistaram tuas glórias
Epopéias triunfais
Quero neste pobre enredo
Reviver glorificando os homens teus
Levá-los ao panteon dos grandes imortais
Pois merecem muito mais
Não querendo levá-los ao cume da altura
Cientistas tu tens e tens cultura
E neste rude poema destes pobres vates
Há sábios como Pedro Américo e César Lattes
Lattes faleceu em 8 de março de 2005.