Imagine nascer alguns anos antes do início do século XX em uma família de operários italianos e ter que enfrentar a fome e o trabalho árduo em uma fábrica de tecidos. Depois, migrar para o USA e para o México, ajudar a fundar o Partido Comunista, servir de modelo para os murais de Diego Rivera, ter como companheiros de luta e amigos Pablo Neruda, Frida Kahlo, Augusto Sandino, Farabundo Marti, Alexandra Kollontai e Norman Bethune?
Imagine aprender fotografia com Edward Weston, conhecer o grande cineasta soviético Eisenstein e cuidar da saúde da revolucionária espanhola conhecida como La Passionária. Essa foi Tina Modotti, comunista e revolucionária italiana, admirada por seus camaradas pelo talento de suas composições fotográficas, mas acima de tudo pela dedicação com que colaborou na construção da organização de apoio aos perseguidos políticos na primeira metade do século passado, o Socorro Vermelho Internacional (SVI).
Nascida em 16 de agosto de 1896 na cidade de Udine, no norte da Itália, como Assunta Adelaide Luigia Modotti Mondini, Tina Modotti teve que trabalhar desde cedo para ajudar a família, que por muitas vezes só tinha polenta para comer. Acabou migrando para São Francisco, Califórnia, em busca de melhores condições de vida.
Tina participou de algumas apresentações de teatro para a comunidade italiana da cidade e logo depois conseguiu trabalhar em alguns filmes dos primeiros anos de Hollywood.
Em meio aos artistas estadunidenses da época, Tina conheceu Robo, Roubaix de l’Abrie Richey com quem viveu, até que morresse de varíola em uma viagem ao México, em 1922.
Tina acabou chegando ao México em meio a essa tragédia pessoal, mas logo se encantou pelas cores, pelo espírito caloroso do povo mexicano e principalmente pelo engajamento com que viviam os artistas que conheceu. Foi nesse ambiente que começou a fotografar.
Posou como modelo para alguns murais de Diego Rivera. Em um deles, aparece ao lado de Frida Kahlo distribuindo armas ao povo para a luta revolucionária. Manteve estreita amizade com a artista mexicana e logo conheceria Siqueiros, Orozco e Xavier Guerrero, importantes pintores, muralistas e fundadores do Partido Comunista do México.
Ávida por engajar-se na luta revolucionária, Tina passa a colaborar como tradutora para o jornal comunista El Machete e desenvolveria na fotografia, que aprendera com Edward Weston, uma perspectiva de classe. Ao invés de apenas retratar o belo, Tina procurou fazer de suas fotografias uma arma de denúncia, registro e valorização do povo mexicano e sua luta, unindo sensibilidade, crítica social e beleza. Conseguiu. Até hoje seu nome é lembrado como um das mais importantes fotógrafas de seu tempo.
Embora sob diversos limites, o PCM vivia sob legalidade no México, mas em 1929 passou a clandestinidade, com vários comunistas presos e estrangeiros deportados.
Tina Modotti havia conhecido o revolucionário cubano Júlio Antônio Mella, fundador do Partido Comunista de Cuba, importante líder aintiimperialista na América Latina e opositor do governo títere de Cuba. Tina e Júlio se apaixonaram e passaram a viver juntos.
No dia 10 de fevereiro de 1929, enquanto o casal caminhava pela rua Abraham González, próximo ao centro da Cidade do México, homens à mando do títere cubano Gerardo Machado dispararam dois tiros em Mella e o revolucionário morreu nos braços de Tina.
A imprensa começa uma campanha de calúnia contra Tina Modotti, insinuando que ela própria teria assassinado seu companheiro. As acusações misturavam anticomunismo com as típicas acusações de promiscuidade que fazem contra as mulheres quando o desejo é difamá-las.
Tina acabou sendo expulsa do México e a polícia italiana pretendia prendê-la tão logo chegasse à Europa. Esse episódio lembraria o que aconteceu com a revolucionária alemã Olga Benário Prestes, enviada pelo governo Vargas para ser assassinada pelos nazistas.
Com Tina seria diferente, pois antes que pudesse acabar nas mãos de Mussolini, a seção holandesa do Socorro Vermelho Internacional, no Porto de Roterdã, livraria Tina das garras da polícia e ela chegaria a Berlim.
Na Alemanha, Tina aprofundaria sua militância no Socorro Vermelho Internacional, que atuava na defesa dos presos políticos e vítimas de guerra. Tina Modotti se tornaria uma importante dirigente, escreveria muitos artigos, traduziria outros tantos para o Socorro Vermelho, seria conhecida por muitos com o codinome de “Maria”, apenas, e atuaria na França, Espanha, URSS e em diversos outros países.
Sua principal atuação foi na Espanha durante a Guerra Civil Espanhola e nos primeiros embates entre comunistas e republicanos contra o nazi-fascismo e o golpe de Franco. Tina cuidou de milhares de feridos, arriscou inúmeras vezes a vida, mas principalmente viu muito sofrimento entre as vítimas do fascismo, o assassinato de centenas de crianças, assistiu aos massacres em Málaga e ajudou na retirada de mais de 1 milhão de refugiados ao longo da fronteira da Espanha com a França.
Tina Modotti foi uma revolucionária, comunista e internacionalista, muitos dos que a conheceram lembram-se de sua simplicidade, abnegação e de seus discursos em alemão, inglês, espanhol, italiano, francês e russo.
Da França retornou ao México, mas já com a saúde bem debilitada. Embora tivesse pouco mais de 40 anos, seus amigos recordam que sua aparência, devido ao incansável trabalho, era de uma mulher de 60 anos. Em 5 de janeiro de 1942, depois de uma visita ao arquiteto Hannes Meyer, morreu de ataque cardíaco fulminante dentro de um táxi que a levaria para casa. Foi enterrada como todos os comunistas gostariam de ser, com a bandeira vermelha com a foice e o martelo sobre seu caixão, em meio aos seus camaradas, ao som do hino A Internacional.
Artigo baseado, entre outras fontes, na biografia ilustrada No rastro de Tina Modotti, de Christiane Barckhausen, traduzido por Cláudia Cavalcanti, publicado pela editora Alfa-Omega.
Mulher com bandeira, foto tirada por Tina Modotti, no México, 1928
O poeta Pablo Neruda escreveu um poema em memória a Tina Modotti:
Tina Modotti, irmã, você não dorme, não, não dorme
talvez o seu coração ouça crescer a rosa
de ontem, a última rosa de ontem, a nova rosa.
Descanse docemente, irmã.
A nova rosa é sua, a nova terra é sua:
você vestiu um vestido novo, de semente profunda
e seu silencio suave se enche de raízes. Você não dormirá em vão.
Seu doce nome é puro, pura é sua vida frágil: de abelha, sombra, fogo, neve, silencio, espuma,
de aço, linha, pólen, construiu-se sua férrea,
sua delicada estrutura.
O chacal, diante dessa joia que é seu corpo adormecido,
ainda levanta a pena, sangrenta ao par de sua alma,
como se você, irmã, pudesse levantar-se,
sorrindo, acima do lamaçal.
Vou levar você à minha pátria para que não a toquem,
à minha pátria de neve, para que sua pureza
não seja alcançada pelo assassino, pelo chacal, pelo vendido:
lá você estará tranquila.
Você ouve um passo, um passo cheio de passos, algo
de grande, desde as estepes, desde o Don, desde o frio?
Você ouve um passo lime, de soldado na neve?
Irmã, são seus passos.
Algum dia eles passarão por seu túmulo pequeno,
antes de as rosas de ontem murcharem;
passarão para ver os de um tempo, amanhã,
lá onde arde seu silêncio.
Um mundo marchou ao lugar onde você ia, irmã.
As canções de sua boca avançam a cada dia,
na boca do povo glorioso que você amava.
Seu coração era valente.
Nas velhas cozinhas de sua pátria, nas estradas
poeirentas, algo se diz, algo passa,
algo volta à chama de seu povo dourado,
algo desperta-se e canta.
É sua gente, irmã: nós que hoje pronunciamos seu nome
nós que de toda a parte, da água e da terra,
com seu nome, outros nomes silenciamos e pronunciamos.
Porque o fogo não morre.