Nunca, no Brasil, se falou tanto sobre a Índia. A novela Caminho das Índias mostra a diversidade das roupas, a suntuosidade dos palácios, as ruas superlotadas, os comportamentos particulares daquele povo (estereotipados de maneira ridícula, como é comum ocorrer nas novelas globais). O telespectador incauto poderia até dizer que a novela é crítica porque mostra a dureza da sociedade de castas, a opressão sofrida pelos dalits (a casta dos intocáveis). Mas a Índia real não é mostrada na novela.
Guerrilheiro brinca com criança
Um tanto mais realista é o filme vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2009 – Quem quer ser um milionário (slumdog millionaire). Através da biografia de um menino vindo de uma favela de Mumbai que consegue acertar as respostas de um jogo televisivo no estilo Show do Milhão, o dia-a-dia das favelas indianas salta aos olhos.
Favelas superpopulosas
A cidade de Mumbai, considerada a capital financeira da Índia, possui uma população de 13,99 milhões de pessoas, das quais 54,1% moram em favelas1, o que representa mais de 7 milhões de pessoas. Dharavi, no centro da cidade, onde foi gravado o filme vencedor do Oscar, possui uma população de 800 mil pessoas numa área de 175 hectares! Isso representa uma média de 4.500 pessoas amontoadas em 1 hectare, e em algumas áreas chega a 18.000 pessoas em um acre (0,4 hectares)2. Dharavi é a maior favela do país e a segunda maior da Ásia, ficando atrás apenas da Orangi Town, em Karachi, no Paquistão.
Os moradores enfrentam problemas terríveis, como constante migração, falta de água, de rede de esgoto, de transporte público, poluição, escassez de habitação e alta mortalidade infantil.
Se essa realidade já é suficiente para deixar o leitor inconformado, há de saber que coisas ainda mais graves acontecem naquele país, fora dos grandes centros urbanos.
Povos tribais
Uma fração de 84 milhões da população indiana é formada por adivasis, uma denominação genérica para os povos tribais, que habitam vilas nas regiões rurais e preservam uma cultura milenar e modos de produção e de propriedade coletiva, bem como uma estrutura de poder própria. Esses povos têm dado uma importante contribuição à filosofia, linguagem, costumes no país, e também às lutas de resistência desde a colonização britânica no século XVII.
Indústrias despejam poluição nas favelas
O estado de Chhattisgarh, com uma população de 20.796.000 de habitantes, é formado em 70 a 80% por Adivasis, cujas terras são consideradas pelo Banco Mundial entre as mais ricas do mundo em fauna, flora e minerais, sendo alvo da expansão de grandes monopólios empresariais, tais como TATA e ESSAR.
Convictos da defesa de suas terras e sua cultura, os Adivasis desenvolveram uma forte receptividade ao movimento Naxalita, movimento armado de libertação nacional com histórica resistência ao Estado indiano desde os anos 60, dirigido pelo Partido Comunista da Índia (Maoísta).
A campanha Salwa Judum
Como uma suposta reação aos naxalitas, foi criada em junho de 2005 uma força paramilitar apoiada pelo Estado indiano, chamada Salwa Judum, que quer dizer, na linguagem Adivasi, "caçada de purificação". Desde então, a campanha Salwa Judum é marcada por grandes "procissões" nas vilas Adivasis, que despejam os moradores e os levam para "campos de proteção", para que fiquem distantes da "ameaça naxalita". Depois, as vilas são destruídas e incendiadas.
Uma favela na capital financeira da Índia
Conforme denuncia a escritora indiana Arundhati Roy (ver texto em anexo), os Adivasis ficam por prazo indeterminado nos acampamentos, despojados de sua agricultura e de suas práticas de sobrevivência. Na verdade estão "presos em sórdidos acampamentos, que têm de ser vigiados por policiais armados", enquanto suas terras abandonadas são alvo da cobiça das grandes corporações.
Forças policiais oficiais
Juntamente com a campanha Salwa Judum, que é apoiada indiretamente pelo Estado, este mantém, além das Forças Armadas regulares, forças especiais de segurança que também são responsáveis por graves agressões e violações aos povos tribais.
Tratam-se da Força Policial da Reserva Central (CRPF, em inglês) e dos batalhões Naga, que são grandes batalhões paramilitares treinados em massacres. Os outros são os SPO’s, que em português significa "agentes de polícia especiais", recrutados pelo governo entre os moradores mais jovens e pessoas com experiência em liderança, com promessas de salários, para vigiar e intimidar os povos das vilas e dos campos de concentração, ora ostentando armas pesadas, ora disfarçados para coletar informações. Os principais quadros do Salwa Judum são compostos de SPO’s pagos e armados pelo Estado3.
Massacres
Entre 28 de novembro e 1º de dezembro de 2005, uma equipe de 14 membros de 5 organizações indianas conduziu uma investigação no distrito Dantewara, no Estado de Chhattisgarh, e observou o seguinte padrão de despejo forçado:
Quando os encontros Salwa Judum são marcados, as pessoas das vilas vizinhas são chamadas. Pesadas forças de segurança acompanham os encontros. Vilas que se recusam a participar são repetidamente atacadas pelas forças combinadas do Salwa Judum, a força distrital e o batalhão paramilitar Naga, que já está instalado na área. Além disso, há incursões próprias dos batalhões Naga, que resultam em saques, incêndios e mortes em muitos casos.
Em algumas vilas, os ataques continuam até todo o vilarejo ter se esvaziado e as pessoas terem se mudado para os acampamentos, enquanto em outros casos, apenas idosos, mulheres e crianças são deixados. Muitas vilas estão indo logo de início para os acampamentos para evitar esses ataques.
Uma vez nos acampamentos, as pessoas não têm alternativa senão a de apoiar o Salwa Judum. Algumas delas são forçadas a trabalhar como informantes contra sua própria vila e participar em ataques contra ela, levando a permanentes divisões dentro das mesmas.
Em excelente ensaio sobre a luta dos Adivasis em Chhattisgarh4, uma militante que trabalha junto aos Adivasis há 22 anos, denuncia os massacres sofridos pelos Adivasis. Cabe transcrever apenas dois deles:
Em 13 de março de 2007, quando o Batalhão Naga e o Salwa Judum entraram na Vila Nendra da comunidade Gaganpali, todos fugiram. Mas as crianças da vila estavam tomando banho em uma bomba d’água. Quando os mercenários Naga não encontraram mais ninguém, dispararam mortalmente contra essas crianças entre 12 e 20 anos de idade.
280 pessoas da Vila Gangrajpadu foram levadas pelo Salwa Judum para o acampamento, mas 175 delas foram assassinadas, postas em sacos e lançadas ao rio, porque estavam protestando contra a ida ao acampamento.
Uma lei fascista
O Ato Especial de Segurança Pública foi aprovado na assembléia legislativa de Chhattisgarh em dezembro de 2005, e está em vigor desde 12 de abril de 2006. Trata-se de uma lei que contraria os mínimos padrões internacionais de liberdade de expressão e associação.
Todos os seus dispositivos relacionam-se à seguinte definição de Atividade Ilegal: "qualquer ação de um indivíduo ou organização, seja com atos ou por palavras, faladas ou escritas, ou por sinais ou representações visíveis, ou que de qualquer outra maneira constitua perigo ou ameaça à ordem pública".
Áreas de favelas superpovoadas
"Apesar de os comunicados dizerem que o Ato é destinado a combater a crescente ameaça maoísta, está claro que essa legislação é destinada a suprimir qualquer dissidência política no Estado" diz a Campanha por Paz e Justiça de Chhattisgarh em seu sítio na Internet5.
É com base nessa lei que o Dr. Binayak Sen foi preso há quase dois anos, e toda semana há manifestações em Raipur pela sua liberdade (ver quadro anexo).
Em dezembro de 2007, uma equipe de advogados de vários países, incluindo o Brasil, organizados pela Associação Internacional dos Advogados do Povo (IAPL), visitou o Estado indiano de Chhattisgarh e constatou diretamente o que ali ocorre. O relatório final e vídeo da Missão podem ser encontrados no sítio www.iapl.net .
A resposta dos povos tribais: o Poder Popular
Em teoria, a Constituição da Índia enuncia um tratamento especial aos povos tribais, quando estes fazem parte das Scheduled Tribes, ou Tribos Catalogadas. Apesar de a Constituição ser de 1949, nada mudou na prática para os Adivasis em mais de 60 anos do fim da colonização britânica.
A Frente Nacional para o Auto-Governo Tribal é um conjunto de organizações de massa formadas pelos Adivasis e seus apoiadores, "fora das políticas predatórias de voto"6, e profundamente engajada na defesa dos direitos econômicos e sociais e do autogoverno dos Adivasis. Em suas fileiras está o Dr. B. D. Sharma, um acadêmico e ativista nacionalmente conhecido em assuntos tribais, que acompanhou a equipe de advogados da IAPL em Chhattisgarh, em dezembro de 2007.
Apesar dos ataques das forças de segurança e dos Salwa Judum, os Adivasis organizam seus órgãos de poder político – os Janatana Sarkars. Rompendo com o modelo de "desenvolvimento" imposto pelo Estado, que representa a perda de suas terras e de sua cultura, os Adivasis têm desenvolvido a agricultura, com a construção de estruturas de irrigação, formado cooperativas revolucionárias e assumido melhores posições junto a comerciantes, além de desenvolver a auto-defesa e resolver problemas de educação e saúde pública.
Conclusão
A vida real do povo indiano, seus sofrimentos e as atrocidades contra ele cometidas, não é mostrada na TV. Nem mesmo está ao alcance de uma pessoa que conhece o país na condição de turista. Enquanto o sujeito aponta sua atenção ao Taj Mahal e constata superficialmente a divisão de castas, seus olhos se fecham para o que acontece nas profundezas.
Conhecer a realidade desse povo é também conhecer suas lutas. É ver como ele é parecido com o povo brasileiro em muitos aspectos. E tomar seus valorosos exemplos de luta para o futuro do nosso país e a união dos povos.
Pela libertação do Dr. Binayak Sen
Arundhati Roy
6 de abril de 2009, Raipur, Chhattisgarh
O Dr. Binayak Sen está na prisão há 22 meses, preso sob uma das mais draconianas leis da Índia, o Ato Especial de Segurança Pública de Chhattisgarh. Esse Ato possui uma definição tão vaga e difusa de "atividade ilegal", que considera qualquer pessoa culpada, a menos que possa provar sua inocência. O pedido de fiança do Dr. Sen foi recusado duas vezes, bem no início, pelo Tribunal de Chhattisgarh e pelo Supremo Tribunal da Índia. Em nenhuma das ocasiões houve uma discussão dos méritos do caso. Em 2 de dezembro de 2008, o Tribunal de Chhattisgarh novamente recusou seu pedido de fiança, sem discutir os méritos do caso, dizendo que as circunstâncias não haviam mudado.
Mas havia uma mudança nas circunstâncias. A começar pelo fato de que a denúncia criminal havia sido feita. 64 testemunhas foram ouvidas na instrução. Nenhuma forneceu provas legalmente admissíveis para embasar as acusações da denúncia. Nem mesmo os agentes carcerários, o Superintendente e o Diretor da Prisão, que foram chamados como testemunhas pela Acusação, conseguiram sustentar a possibilidade de ser o Dr. Sen um portador de cartas dadas a ele por Narayan Sanyal (suposto elevado líder Maoísta), que é um prisioneiro de alta segurança na Prisão de Raipur. (Aqui se deve mencionar que Narayan Sanyal possui uma condição de saúde que requer intervenções cirúrgicas periódicas, e por essa razão as autoridades permitiram que o Dr. Sen o visitasse regularmente).
O fato de o Dr. Sen ter continuado preso quando o processo contra ele já estava quase totalmente derrubado, diz muito sobre a situação extremamente crítica em Chhattisgarh hoje. Há uma guerra civil nesse estado. Centenas estão sendo mortos e presos. Centenas de milhares dos mais pobres entre os pobres estão se escondendo nas florestas, temendo por suas vidas. Eles não têm acesso a alimentos, mercados, escolas ou condições de saúde. Os milhares que têm sido movidos para os campos da milícia popular apoiada pelo governo, a Salwa Judum, estão também presas em sórdidos acampamentos, que têm de ser vigiados por policiais armados. Ódio, violência e brutalidade estão sendo cinicamente espalhados colocando os pobres contra os mais pobres.
Há uma pequena dúvida de que o Dr. Sen está na prisão porque falou contra essa política do Governo Estadual, porque se opôs à formação do Salwa Judum. Seu encarceramento significa silenciar a dissidência, e criminalizar o espaço democrático. Significa criar um muro de silêncio em torno da guerra civil em Chhattisgarh. Significa absorver toda nossa atenção de modo que as histórias de centenas de outras pessoas sem nome e sem face – aqueles sem advogados, sem a atenção de jornalistas – que estão famintos e morrendo nas florestas, passem despercebidas e não registradas.
Amanhã é o Dia Mundial da Saúde. O Dr. Binayak Sen gastou a melhor parte da sua vida trabalhando entre o povo mais pobre na Índia, que vive distante das atenções do governo, que não tem acesso a clínicas, hospitais, médicos ou medicamentos. Ele salvou milhares da morte certa por malária, diarréia, e outras doenças facilmente tratáveis. No entanto, ele está na prisão, enquanto aqueles que se vangloriam abertamente de massacres estão livres para fazer seus negócios e até mesmo disputar eleições.
O que isso diz a nosso respeito? Sobre quem somos e para onde estamos indo?
Arundhati Roy é uma escritora e novelista indiana premiada em 1997 pelo best-seller O deus das pequenas coisas, e importante ativista antiimperialista.
Nota
*Júlio da Silveira Moreira é Vice-Presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo (IAPL), advogado e professor universitário.
1Censo de 2001
2 http://ngm.nationalgeographic.com/2007/05/dharavi-mumbai-slum/jacobson-text
3 http://cgnet.in/N1/hurightspressrelease
4 "Tão graves despejos, tão brava resistência – a luta dos Adivasis de Bastar, Chhattisgarh, contra a grilagem imperialista das corporações".
5 http://cpjc.wordpress.com/chhattisgarh-special-public-security-act/
6 Against Imperialism – Outlines of a People’s Agenda – obra de B.D. Sharma