O capitalismo, desde a revolução industrial inglesa, nasceu oprimindo nas fábricas crianças e jovens de uma maneira geral, até a exaustão. Paralelamente, constrói toda uma estrutura repressiva baseada em orfanatos, reformatórios, etc. Para a infância e a juventude pobre e privada de tudo, assim como para os proletários adultos, são duas as suas “opções”: exploração desumana do trabalho ou o encarceramento.
Deputado Marcos Rolim em visita à Febem em São Paulo
No Brasil, o encarceramento de crianças e adolescentes é proibido no papel. A Constituição estabelece que são criminalmente inimputáveis pessoas com idade inferior a dezoito anos. No entanto, a imputabilidade existe, e em condições por vezes mais perversas que as vigentes em prisões de adultos. O povo conhece bem a violência e a perversidade que expressa a sigla Febem, a famigerada Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor.
A opinião favorável à extinção da Febem é praticamente unânime entre profissionais da área. A psicóloga Carmen Oliveira, professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), construiu sua biografia na luta contra o confinamento de deficientes mentais em manicômios. Carmen foi presidente da Febem/RS em 1999 e afirma que o modelo de internação tampouco é adequado a crianças e adolescentes. Para ela, “uma boa Febem é aquela que seria efetivamente uma “UTI” para adolescentes com maior agravamento de sua inserção no delito e não como tem sido hoje, uma porta de entrada”.
Gladys Romeo Peccequillo foi a funcionária que, em 2002, denunciou alguns dos aspectos mais sórdidos da Febem de São Paulo, como torturas e espancamentos sistemáticos. As denúncias custaram-lhe o emprego. Em entrevista concedida ao Centro de Mídia Independente em maio de 2003, ela afirma de maneira categórica: “a Febem não tem reforma”.
— Em 1999 — lembra — fecharam a unidade da Imigrantes, onde houve uma grande rebelião. Apareceu então Parelheiros, que passou a levar a fama de ser a pior unidade. Fecharam Parelheiros, e apareceu Franco da Rocha.
Nas garras do fascismo
Em 2003, uma investigação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados resultou no relatório O sistema Febem e a produção do mal. O relatório, redigido pelo ex-deputado Marcos Rolim, identificou um quadro de violação sistemática dos direitos de crianças e adolescentes confinados nestas unidades em todo o país.
A Febem paulista é de longe a pior. Em seu relatório, Rolim afirma que a unidade de Franco da Rocha nada mais é que “um conjunto de presídios para adolescentes” e “um monumento à ilegalidade”. Isto porque, a exemplo do que ocorre com os presídios para adultos (AND 27), sua própria concepção é ilegal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA — estabelece condições para a internação com: separação por idade, compleição física e gravidade da infração; obrigatoriedade de atividades culturais e esportivas, profissionalização e escolarização; atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos; e instalações em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança, entre várias outras.
A rigor, as unidades das Febens, Brasil a fora, não oferecem nada disso, mesmo porque, em geral, estão organizadas em antigos presídios desativados e reaproveitados. Mas a unidade da Febem paulista em Franco da Rocha é diferente precisamente por isto: porque foi projetada já na vigência do ECA para ser um campo de concentração.
Por causa disto, em 2002, a prefeitura de São Paulo recusou-se a autorizar sua instalação, o que levou o governo a transferi-la para o município vizinho. O Ministério Público conseguiu suspender liminarmente a construção, mas o Tribunal de Justiça do estado (TJ-SP), mantendo a tradição de decisões favoráveis à Febem, cassou a medida.
A orientação abertamente fascista do TJ tem sido, aliás, fundamental para a manutenção deste estado de coisas. “Em São Paulo, trata-se com extraordinária naturalidade o hábito de encarcerar meninos desde os 12 anos” — constata o relatório da Câmara.
— É que, em solo intolerante para com a criminalidade violenta e cioso dos direitos humanos do cidadão — justifica a Câmara Especial do Tribunal no julgamento do habeas corpus 115.133-0, em 6 de dezembro de 2004, reproduzindo parecer do Ministério Público -, ensina-se que, como até mesmo o mero bom senso já seria capaz de propor, não pode o Estado permitir-se a insanidade de autorizar que se veja livre e sem amarras quem, pela prática de infração penal grave, revelou possuir perigosa propensão criminal, assim como não admitiria que um animal predador selvagem se aventurasse pelas ruas da cidade (o negrito é do original).
No processo em que foi proferida esta aberração, discutia-se o pedido de um adolescente de dezesseis anos para esperar em liberdade o julgamento de um recurso relativo a uma condenação por ato equiparado a tráfico de entorpecentes.
Estratégia: criminalização
O ECA diz claramente que a internação só pode ser aplicada a crimes violentos. Mas na prática, qualquer ato infracional tem como resultado a internação. Se o Judiciário respeitasse o ECA, mais da metade dos adolescentes recolhidos à Febem em São Paulo estariam cumprindo outro tipo de medida sócio-educativa. Pelo menos é o que revela uma pesquisa do Instituto das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud): de uma amostra de 2.100 adolescentes acusados entre 2000 e 2001, apenas 1,6% havia cometido alguma espécie de crime contra a vida; uma proporção razoável era (apenas) acusada de roubo e mais da metade estava na Febem por furtos, muitas vezes irrisórios.
Trocado em miúdos, as autoridades não cumprem a lei. Nem mesmo o frágil ECA. Pior, colocam-se contra ela. Rangem os dentes, sempre quando o povo pobre e oprimido invoca uma lei em sua defesa e fazem a apologia da repressão pela repressão — flagrante e descaradamente, a ponto de serem denunciadas pela sua própria imprensa.
Para piorar, lembra Antonio Mafesoli, do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (Condepe), em entrevista à revista Fórum de julho de 2005, “existe um absurdo que só acontece em São Paulo. Muitos juízes consideram que a confissão dispensa a prova e seguem sentenças modelo, do tipo: um adolescente com uma arma, tantos meses, dois adolescentes desarmados, tantos meses”.
Esta situação não decorre, como frequentemente se supõe, da negligência pura e simples do Estado em relação à infância e juventude pobres. Ao contrário, elas são plenamente “atendidas”. A questão é como.
Basta ver alguns números mencionados por Carmen Oliveira:
— Nos últmos 3 anos — diz a professora — temos 30% mais internos no Brasil. Se um adolescente custa em média 4 mil reais mensais na privação de liberdade, cerca de 70 internos do munícipio de São Leopoldo na FASE (sucessora da Febem no Rio Grande do Sul) custariam mensalmente 280 mil reais. Ora, porque não inverter a prioridade e construir políticas públicas locais dirigidas à infância e adolescência com estes mesmos 280 mil mensais?
Como denunciou a professora Vera Malagutti, em AND 22, o que ocorre é que a população que deixa de ser atendida pelo Estado previdenciário e passa à seara do Estado penal.
Idade penal
Isto fica claro na principal reivindicação de determinados setores com poder de intervenção repressiva controlados pelos fascistas: o rebaixamento da maioridade penal para 14 ou 16 anos. Busca-se ampliar o público-alvo da legislação penal criminalizando-se adolescentes.
— A bandeira punitiva, como a do rebaixamento penal, é, antes de tudo, absolutamente improcedente até do ponto de vista técnico — diz Carmen Oliveira.
De acordo com o relatório de Marcos Rolim, “as proposições que pretendem a redução da idade penal nos oferecem a visão de uma viagem no tempo. É em direção ao passado que elas nos orientam. Afinal, o sistema de criminalização de adolescentes caracterizou a doutrina penal do século XIX com o Código Criminal do Império que, promulgado em 1830, somente impedia a responsabilização criminal dos menores de 14 anos. Pior do que isso, o primeiro Código Penal da República, editado em 1890, só não considerava criminosos “os menores de 9 anos completos” (!) ou aqueles que sendo maiores de 9 e menores de 14 houvessem agido sem discernimento. Nenhuma dessas experiências, aqui no Brasil ou em qualquer outro país, foi capaz de afirmar um caminho para a redução da violência juvenil ou para a reinserção social dos infratores.”
“São muitos — prossegue o relatório da Câmara — os estudos que associam o rigor penal à industrialização da própria violência”.
É espantoso porque o objetivo não é reduzir a violência, mas ampliar seu exercício pelo Estado contra a população pobre. Uma das iniciativas mais tétricas neste sentido é uma circular distribuída em escolas estaduais de São Paulo pela Secretaria de Educação e pelo Ministério Público estadual orientando diretores a encaminhar à polícia e à Justiça — para posterior envio à Febem — alunos que cometam atos como dirigir-se aos professores com palavrões ou quebrar vidraças…
— Temos de distinguir atos de incivilidade daqueles nitidamente enquadrados como delitos — argumenta Carmen.
— No caso de palavrões sequer podemos dizer que se tratam de atos infracionais. É falta de educação, mesmo, e jamais caso de polícia. Quebrar uma vidraça da escola pode ser enquadrado como um delito contra o patrimônio mas penso que isto deve ter um encaminhamento restaurativo e pedagógico pelos professores e não policial. A punição seria a mesma em se tratando de escolas privadas e com crianças e adolescentes de maior poder aquisitivo? — questiona.
Ela própria responde:
— Acho que não! Concordo com Wacquant, quando fala que há uma tendência à criminalização da pobreza. Isto é inegável por que constata ao mais breve exame o corte de classe e racial no sistema penal e socioeducativo brasileiro…
Entulho menorista
O ECA surge em decorrência do artigo 227 da Constituição, que estabelece a chamada doutrina da proteção integral. No entanto, o refluxo posterior do processo de mobilização social que resultou na vitória parcial das forças progressistas na Assembléia Constituinte, após o fim do gerenciamento militar, acabou por limitar muito o potencial transformador do Estatuto.
Datam da colônia a responsabilização criminal de adolescentes e as primeiras instituições de recolhimento de crianças ou adolescentes órfãos e abandonados, as chamadas Casas de Expostos. Com algumas modificações, o essencial desta concepção prevaleceu ao longo dos séculos. Houve um tênue progresso com o Código de Menores de 1927, conhecido como Código Mello Mattos. Progresso, no entanto, revertido em parte pelo famigerado Código de Menores de 1979. Este, apesar de um ou outro floreio retórico destinado a mascarar a continuidade e agravamento da concepção vigente, representou, para Cristina Lazzarotto, da Unisinos, um “retrocesso de mais de 50 anos, pois colocou o menor em situação pior que a do criminoso adulto, instituindo a prisão provisória para o menor, a qual poderia ser decretada sem a presença do curador de menores.” (!)
Tanto o Código de 1927 quanto o de 1979 são expressões do que se convencionou chamar de menorismo. Têm como pressuposto a tutela das crianças e adolescentes, não o seu desenvolvimento. Afinal, menor é sempre o filho do pobre e explorado. Em hipótese alguma uma pessoa é designada por essas mesmas autoridades com terminologias dessa natureza. Elas são incapazes de manifestar a ínfima suspeita de pretender imputar responsabilidades de criminosos a um jovem rico, como costumam fazer com um proletário ou camponês pobre…
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (Lei 8.069/90), muitos profissionais que tinham uma conduta passiva diante das injustiças cometidas contra os filhos dos trabalhadores, se revelaram dignos, não só abolindo de seus pronunciamentos designações pejorativas, como resistiram à tendência majoritária de estabelecer práticas punitivas terríveis voltadas contra as crianças e jovens do povo.
— Isso foi importante, porque a expressão menor era usada especificamente para a camada pobre. Eu me lembro de ter lido uma vez, no jornal, a manchete: “Menor agride adolescente na porta da escola — diz Gladys Peccequillo.
Porém, é claro, muitas autoridades continuaram desrespeitando assintosamente o tratamento exigido às crianças e à juventude cujos pais são trabalhadores, porque insistem em ignorar, por completo, o papel da infância e da juventude de uma maneira geral.
E o modelo Febem é, apenas, um dos frutos desta concepção.
Houve algum progresso. Cristina Lazzarotto lembra que antes do ECA, 80 a 90% das crianças e dos jovens internados nas Febens não eram autores, de fato, de ações definidas como crimes. Bastava a situação de pobreza para que se pudesse decretar a internação, sem processo algum. Mas é consenso entre os operadores da área que “o velho dogma menorista convive com a doutrina do ECA”, como diz Carmen. Um de seus principais resquícios é a fixação prisional, em detrimento de outras medidas previstas no ECA.
— Para cada adolescente que tem aplicada a medida de semi-liberdade temos 8 que recebem a medida de internação — conclui a professora.
Paralelamente, ocorre a distorção das outras medidas sócio-educativas previstas no ECA. Gladys Peccequillo denuncia que em São Paulo foram terceirizados todos os programas em meio aberto (semi-liberdade e liberdade assistida), inclusive através de convênios com empresas que servem-se do trabalho dos adolescentes a baixo custo. A criminalização velada da juventude pobre serve, assim, como mecanismo de rebaixamento dos preços no mercado de trabalho.
Como na Revolução Industrial.