A Irlanda indomável na voz rebelde dos Wolfe Tones

https://anovademocracia.com.br/57/22b.jpg

A Irlanda indomável na voz rebelde dos Wolfe Tones

Print Friendly, PDF & Email

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/57/22b.jpg

Sua música já foi proibida na Inglaterra e até mesmo no país que eles defendem: a Irlanda. Em 2006, Roy Beggs Jr. — colaboracionista irlandês a soldo de Londres — comparou suas letras aos discursos de Osama bin Laden, o que levou a companhia aérea Aer Lingus a proibir que suas canções fossem tocadas em seus vôos.

Brian Warfield, seu irmão Derek, Noel Nagle e Tommy Birne são os Wolfe Tones — jogo de palavras que evoca um som do violino e o nome do patriota irlandês Theobald Wolfe Tone, líder da rebelião de 1798 contra a ocupação inglesa. Popularíssimo na Irlanda e em toda a Europa (exceto, por razões óbvias, na Inglaterra), o conjunto é o principal expoente da chamada rebel music (música rebelde) irlandesa.

Tendo surgido como gênero musical nos anos 60 (os Wolfe Tones aparecem em 1966), a rebel music assemelha-se muito, quanto à forma e ao conteúdo, à canção política latino-americana do mesmo período. A exemplo de Violeta Parra ou Atahualpa Yupanqui, os Wolfe Tones e outros artistas dessa corrente combinam ritmos tradicionais de seu país e letras de forte conteúdo político. Seus versos contam a história da Irlanda e de seus melhores filhos: além de Wolfe Tone, eles lembram e homenageiam Michael Collins (o fundador do Exército Republicano Irlandês — IRA) e Joe McDonnell (um dos mártires da greve de fome de 1981). Em versos que vão do mais triste lirismo (Only Our Rivers Run Free — Só Nossos Rios Correm Livres) à mais desbragada fúria guerreira (The Rifles of the IRA — Os Fuzis do IRA), choram a tragédia da ocupação inglesa da Irlanda e convocam seu povo para o combate.

Mais de mil anos de história irlandesa estão presentes na obra dos Wolfe Tones. Acontecimentos como o domingo sangrento de 1972 e a greve de fome de 1981 são lembrados em suas canções. Um resumo de vários séculos de ocupação encontra-se em You’ll Never Beat the Irish (Vocês Nunca Vão Vencer os Irlandeses), dividida em três partes. Até mesmo a diáspora irlandesa está bem documentada em Streets of New York e Admiral William Brown.

Expulsos de seu país pela fome que os ingleses provocaram para roubar suas terras no século XIX, centenas de milhares de irlandeses espalharam-se pelo mundo, enfrentando o império britânico onde quer que ele se encontrasse. Tinham sangue irlandês Ned Kelly, o lendário assaltante australiano que desafiou as tropas coloniais inglesas e tornou-se ícone do movimento que luta pela proclamação da República e pelo rompimento dos últimos laços com a coroa britânica na Austrália; e William Brown, fundador da marinha argentina e herói da independência daquele país.

Em 1982, durante a guerra das Malvinas, os Wolfe Tones compuseram a canção reproduzida abaixo, em homenagem a Brown e apoio à legítima reivindicação argentina sobre aquele território. Infelizmente, nessa época, argentinos e irlandeses passaram a ter algo mais em comum além dos territórios roubados pela Inglaterra e da proximidade resultante da emigração irlandesa para o Prata. A tentativa de retomada das Malvinas terminou em tragédia, assim como a greve de fome irlandesa do ano anterior. Nessa época, sob Thatcher, a megalomania criminosa do império britânico passava por um recrudescimento que esses dois povos não conseguiram prever.

A canção, no entanto, permanece como um documento vivo da solidariedade entre dois povos roubados. Em sua letra, fica evidente o amplo conhecimento que os Wolfe Tones têm da história de seu país e de seu povo: mesmo na Argentina e na Irlanda, poucos conhecem a história de William Bulfin, patriota irlandês radicado na Argentina, editor do jornal The Southern Cross, lido pela comunidade irlandesa de Buenos Aires na virada do século XIX para o XX. Bulffin é lembrado na canção.

Nos anos 90, o grupo sofreu uma ruptura com a saída de Derek Warfield, que desentendeu-se com os outros membros por razões comerciais e iniciou uma carreira solo. Tanto Warfield quanto os demais membros, porém, continuam ativos, levantando — embora separados — as mesmas bandeiras de sempre. Em 2002, a interpretação dos Wolfe Tones de A Nation Once Again (Novamente Uma Nação), escrita na década de 1840 por Thomas Osborne Davis, foi eleita a melhor canção da história numa votação organizada pelo serviço internacional da BBC, canal do governo britânico.

Uma explicação

Após séculos de dominação inglesa, o povo irlandês se levantou em armas em 1916. Londres tentou sufocar a rebelião, ocasionando uma guerra civil que terminou em 1921 com a libertação da maior parte do território do país. No entanto, os seis condados de maioria anglicana situados no norte mantiveram-se sob ocupação britânica. A maioria dos irlandeses — tanto no território liberado que deu origem à República da Irlanda quanto na parte norte, ocupada — não aceitou essa situação e, durante todo o século XX, houve luta armada na Irlanda do Norte.

Em 1972, as tropas de ocupação inglesas dispararam contra uma manifestação pacífica em Derry, na Irlanda do Norte, matando treze civis desarmados. Em 1981, vários militantes do IRA presos na Inglaterra, liderados por Bobby Sands, entram em greve de fome para que a Inglaterra reconhecesse sua condição de prisioneiros políticos. Após 66 dias, a inflexibilidade do governo inglês leva-os à morte.

Almirante William Brown
(The Wolfe Tones / Versão: Henrique Júdice)

De County Mayo, veio um homem
de coragem e renome.
Como soldado e marinheiro,
era o primeiro.
Ele partiu para a América
ainda jovem (é o que dizem)
e cruzou o oceano num navio.
Da aventura, a sede inata
o levou até o Prata:
San Martín estava em luta na Argentina.
Três baleeiras Brown comprou,
Brasil e a Espanha ele enfrentou
e a liberdade conquistou
para a Argentina.

Almirante William Brown,
sua coragem está provada
e nas batalhas, parecia longe a vitória.
Mas seu coração irlandês
era forte, e na memória
ainda vive e na Irlanda ninguém te esquece.
No dia de São Patrício1,
teve vitórias sem falhas:
derrotou os invasores e canalhas.
E foi aos pampas encontrar
para sempre um doce lar.
Las Islas Malvinas argentinas.

Havia mãos irlandesas
nas guerrilhas e defesas
que libertaram a terra
chamada Argentina.
Escutou com reverência
o nome e a fama dos Patrícios2.
Em 1806, os ingleses atacaram.
E então, desde esse dia,
na Argentina se dizia:
os ingleses correram de Buenos Aires
para as ilhas logo ao lado
e então as ocuparam:
las Islas Malvinas argentinas.
Nós lembramos William Brown
e sua Irlanda natal.
O invasor roubou as ilhas da Argentina
Em 1833,
os piratas invadiram
e na Irlanda, conhecemos toda a história.
E aqueles que partiram
pra Argentina, pois fugiram
das leis inglesas e da guerra e da fome
demonstraram ser leais
como todo irlandês:
las Islas Malvinas argentinas.

Velhos dias coloniais
e cruéis modos ingleses
a ferro e fogo ensinam os nativos.
Os ingleses vão pra guerra
como antes fez Whitelock
com navios, armas, balas e bandeiras.
Nos velhos dias do império,
eles matavam pelo ouro
e desfilavam com ele nas ruas de Londres.
Nada foi dado aos nativos,
nem aos mortos nem aos vivos.
Las Islas Malvinas argentinas.

Na Argentina, descansou,
padre Fahey3 o confessou;
em 57, seu país o amparou.
Nosso herói da nação
lembrado com devoção
pelo mundo, onde exista a liberdade.
Quando a Cruz do Sul4 falou
Willie Bulfin anotou:
Os irlandeses te defendem, Argentina.
Com o império já no fim.
defendam até o fim
las Islas Malvinas argentinas.

Notas

1 São Patrício, padroeiro da Irlanda, é um dos ícones da cultura do país.

2 Alusão ao regimento dos Patrícios, soldados irlandeses do exército argentino.

3 Denis Fahey, sacerdote católico irlandês que viveu na Argentina.

4 The Southern Cross é o nome, em inglês, da constelação do Cruzeiro do Sul (símbolo nacional da Argentina, assim como do Brasil), e é também o nome do jornal fundado por William Bulfin em Buenos Aires.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: