A lucidez de Lima Barreto

A lucidez de Lima Barreto

Se você precisar de informações sobre um médico, pergunte a quem já se tratou com ele, e não a outro médico. O colega, certamente, é rival ou amigo do profissional em questão e, por isso, seu juízo será tendencioso, ao passo que só quem foi paciente poderá dizer com segurança da qualidade do médico. Da mesma maneira, podemos recomendar a quem qui ser saber dos males do sistema capitalista: não vá à Europa ou aos EUA, vá à África. Nos dois primeiros, os males e benefícios do sistema se equilibram, e, dependendo de sua tendência, você penderá para um ou outro lado. No continente africano, porém, a devastação, fruto da atividade predadora capitalista, foi de tal monta que só restam ruínas e um povo empobrecido e assolado por uma gama de males que vão da AIDS epidêmica à pobreza endêmica. Aí temos, infelizmente, a miséria em toda sua crueza.

Dentro desse raciocínio, podemos dizer que para se conhecer uma sociedade através de sua literatura, os autores “oficiais”, os acadêmicos, os medalhões, são contra-indicados, já que suas obras, certamente, tendem a obscurecer a verdade, a praticar o elogio fácil, a celebrar os poderosos e a se esquecer dos humildes, do povo verdadeiro. Este somente é lembrado, em geral, em episódios que tendem a tornar a pobreza idílica, quando não é censurado por sua falta de iniciativa, sua inércia, seu pouco “espírito empreendedor”, o que, segundo essa lógica perversa, o leva a uma pobreza inevitável.

A “solução” por esse raciocínio é: não dê um peixe, ensine a pescar. Põe-se então o pescador no meio do deserto do Saara, sem isca e sem anzol, enquanto os privilegiados pescam na orla marítima com equipamento de último tipo, chegando até a provocar a extinção de algumas espécies.

Por isso, o autor indicado para conhecermos o Brasil dos inícios da República não é o bom escritor Coelho Neto, literato oficial, ocupante de vários cargos importantes, o presidente da Academia Brasileira de Letras. Esse período entrou para nossa história literária como sendo o de Lima Barreto, um mulato pobre e alcoólatra, funcionário subalterno e, por isso mesmo, rejeitado duas vezes em suas tentativas de entrar para a academia. Mesmo sendo grande escritor, reconhecido e respeitado por alguns de seus pares, foi preterido. Não era suficientemente respeitável para ser membro da chamada “elite” literária brasileira.

II

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em treze de maio de 1881, filho da professo ra primária D. Amália Augusta Barreto e do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto, ambos mulatos. Foi alfabetizado pela mãe e, quando esta morreu em 1888, entrou para uma escola pública. Seu pai era protegido do Visconde de Ouro Preto, e convidou o ministro do império para padrinho de batismo do filho. Com o auxílio do Visconde, o jovem Afonso pôde frequentar boas escolas e adquirir uma educação de qualidade rara até para as famílias de brancos.

Após estudar em escolas como o Liceu Niteroiense, o Colégio Paula Freitas e o Ginásio Nacional — nome dado ao Colégio Pedro II nos começos da República — Lima Barreto foi aprovado no vestibular para a Escola Politécnica em 1897. Era aluno dessa escola quando, em 1902, seu pai enlouqueceu e foi declarado inválido. Os filhos não deixaram interná-lo, e o mantiveram em casa por quase vinte anos até que ele morresse, poucos dias depois da morte do filho escritor, ocorrida em primeiro de novembro de 1922.

Com a invalidez do pai, Lima Barreto saiu da Escola Politécnica e conseguiu, por concurso, lugar de funcionário subalterno no Ministério da Guerra. Paralelamente a esse emprego, teve ativa participação na vida literária do Rio de Janeiro colaborando em jornais e revistas, além de ter sempre projetos literários de romances, novelas e contos em andamento. Seu talento, embora desprezado por muitos, foi reconhecido por gente do quilate de um Capistrano de Abreu, com quem Lima Barreto teve boas relações, e de um Monteiro Lobato, que o considerava nosso maior romancista.

A vida do escritor não foi fácil. Foi, na verdade, dificílima. Mulato, pobre e lúcido, dotado de inteligência muito acima da média, profunda capacidade de observação e cultura ampla, ele tinha plena consciência da sociedade em que vivia, dos preconceitos que nela imperavam e do que se fazia preciso para ter êxito. Sabia que tinha os talentos imprescindíveis, já descritos acima, mas tinha consciência, também, do preconceito racial dominante. Além disso, sabia que ser “bem nascido” e bajular os poderosos eram outras condições necessárias para se obter e manter o sucesso desejado. Lima Barreto, de caráter orgulhoso e independente, nunca se dispôs a preencher esses requisitos -conservou, sempre, ao longo da vida, uma atitude de distância dos poderosos.

A consciência racial está patente na frase de abertura de seu Diário Íntimo:

Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade.

Infelizmente, o projeto da escrita de uma história da escravidão negra e de sua influência em nossa nacionalidade nunca foi realizado, mas a preocupação com o tema e sua colocação bem no inicio do diário demonstram a consciência social do autor e o peso da questão da identidade racial em sua vida.

Mas não foi somente o preconceito racial que tornou sua vida difícil. Por duas vezes foi internado nos horríveis hospícios da época, e nos deixou uma narrativa extremamente serena da experiência no livro O Cemitério dos Vivos. Essa serenidade diante das agruras da vida está presente em toda a sua obra, o que mais aumenta seu valor. Agripino Grieco, que o considerava “o maior e o mais brasileiro de nossos romancistas”, em seu estudo introdutório ao livro Marginália, publicado em 1956 como o décimo-segundo volume das Obras Completas de Lima Barreto, diz:

Não invejava ninguém. Não conhecia rivalidades literárias, desdenhava a vaidade dos fáceis sucessos mercantis. Nunca escreveu versos. Fugia a visitar os salões mundanos, preferindo uma visita a um dos amigos da vizinhança, não raro compadre seu.

E mais adiante:

Sim, foi Lima Barreto. No romance, nosso primeiro criador de almas. Ele sentiu, como nenhum outro escritor brasileiro, a tristeza e o humor que cabem na vida do pobre. (…) Fez-nos ver todos os tipos e todas as figuras que o Rio contém. (…) É nossa primeira autoridade neste assunto: povo. Viu os costumes da gente carioca, seus divertimentos, suas abusões, suas virtudes e seus vícios. (…) Ao contrário do que acontece com tantos outros, a beleza para ele está no “mais próximo” e no “atual”.

Importante é, também, a aproximação que Grieco faz da obra de Lima Barreto com as de Manoel Antonio de Almeida e Raúl Pompéia. Entre os três há muitas afinidades, principalmente se considerarmos o traço popular e de contemporaneidade temática de suas estéticas literárias.

III

A obra de Lima Barreto — editada em dezessete volumes pela Brasiliense em 1956 — é composta de cinco romances: Recordações do Escrivão Isaías Caminha, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Numa e a Ninfa, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá e Clara dos Anjos. Conforme o critério usado podemos incluir nesse grupo um sexto, que o autor chamou de “sátira”: Os Bruzundangas. Com esse mesmo rótulo de sátira há mais um volume: “Coisas do Reino de Jambon“. Há um volume de contos intitulado Histórias e Sonhos e muitos outros, como complemento de vários mais. Temos, também, dois volumes de memórias: Diário Íntimo e Cemitério dos Vivos. Os demais são de crônicas, artigos e crítica literária, cinco volumes, além de dois de correspondência.

Ano mágico esse de 1956. Além da primeira edição completa de Lima Barreto, nele foram publicadas pela primeira vez obras como Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Vila dos Confins, de Mário Palmério e Encontro Marcado de Fernando Sabino. Que no futuro haja muitos outros tão produtivos como esse.

É, na verdade, considerável o tamanho da obra produzida por Lima Barreto, principalmente se tivermos em conta as suas dificuldades e a idade relativamente jovem com que morreu. Cada linha por ele escrita merece ser lida. Disso sabem, muito bem, aliás, os autores de novelas televisivas. Mais de um desses folhetins foi baseado nas suas histórias, nem sempre com o crédito devido. E, é bom que se diga, sempre com sucesso. Há também o filme O triste fim de Policarpo Quaresma, baseado no romance de mesmo nome.

Ao lado de suas vívidas representações da gente e da cultura de nosso povo, é possível constatar em suas obras uma série de idiossincrasias que perpassam todas elas. Assim temos uma constante e incansável ojeriza pelo futebol, acusado por ele de ser fomentador da violência e do racismo entre a população. São inúmeros os artigos e crônicas em que Lima Barreto ataca com todo seu talento e vigor o esporte, entrando em disputa com autores como Coelho Neto, admirador entusiasmado do jogo dos pés. Incoerência? Certamente não. Na época o football era praticado pela elite e o povo só era admitido no jogo como admirador basbaque. Além disso, os negros eram mal vistos nos teams e impedidos de jogar nos clubs mais elegantes e no scratch nacional. Negro, só nos times de colônias mais integradas como o Vasco da Gama e nos clubes de operários como o Bangu.

Outra dessas implicâncias justificadas era contra os positivistas, membros de uma, pode-se dizer, seita que pretendia consertar o mundo através de um racionalismo cientificista que beirava o ridículo. Lima Barreto não perde oportunidade de ridicularizar em seus textos a empáfia “científica” e a arrogância social de figuras como Teixeira Mendes, um dos chefes do movimento positivista no Brasil.

IV

No quadro da vida cultural do Brasil no inicio do período republicano Coelho Neto e Lima Barreto representam as duas faces da moeda literária. A glória que o primeiro teve em vida — certamente o autor mais lido de sua geração — lhe foi negada pela posteridade. Hoje ninguém mais lê Coelho Neto, nem por prazer, nem como leitura didática, para trabalhos escolares. Enquanto isso, Lima Barreto, que morreu na miséria após ter sido internado duas vezes em hospitais psiquiátricos, é cada vez mais lembrado, respeitado e, principalmente, lido. Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos e Isaías Caminha estão vivos como nunca e continuam a nos alegrar e comover como há oitenta anos. Ao mesmo tempo, os homens que sabem javanês continuam a ocupar os mais altos cargos da República.

Para comprovar a morte literária de Coelho Neto e a vitalidade artística de Lima Barreto basta consultarmos as páginas das livrarias na internet. Se de Coelho Neto só achamos participação em três livros — dos quais duas coletâneas com outros autores, e o terceiro de crônicas, e nenhum de seus romances, peças de teatro ou livros de contos — , já de Lima Barreto, além da ótima biografia de Francisco de Assis Barbosa, lançada em 1952 e recentemente editada, há várias páginas, com opções variadas, que incluem todas a sua obra conhecida.

Se o leitor quiser, e dispuser de dinheiro para tanto, poderá comprar em bloco a ficção completa, os contos reunidos e a totalidade das crônicas. Se a opção for por obras isoladas, há edições de todos os preços à escolha, sejam romances, contos ou crônicas. Para um artista marginalizado e preterido pelo sistema excludente a que pertenceu, não há vingança melhor do que a imortalidade verdadeira, fruto legítimo da sua imensa contribuição estético-cultural.

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