“Nós os comunistas do Peru sempre demonstramos ante o mundo que os comunistas continuam lutando em qualquer condição. Por isso, convertemos as prisões em Luminosas Trincheiras de Combate (LTCs), servindo à nossa causa, não importando o que nos ocorra como indivíduos. (…) Assim, (mesmo que) te encontres na solidão mais fria, acharás o calor da luz do marxismo-leninismo-maoismo e contarás com um plano de trabalho resultado de uma política e de uma ideologia, e combaterás esmagando os negros objetivos (dos inimigos) de capitulação, de isolamento e de arrependimento”.
Esta fala de Ruben Abimael Guzmán Reynoso foi registrada em 1993, quando ele já estava há um ano preso numa cela subterrânea na Base Naval de Callao. Ainda que submetido às piores condições imagináveis, o chefe do Partido Comunista do Peru (PCP) cumpriu à risca suas próprias palavras e enfrentou o duro e longo período de detenção com dignidade, valentia e alto moral revolucionário. Nunca deu vida fácil ao Estado peruano velho e apodrecido.
O ditador Alberto Fujimori, por exemplo, mesmo tendo apresentado na Organização das Nações Unidas (ONU) uma “Carta de Paz” supostamente escrita por Guzmán, em que falava de fim da luta armada, pacificação e rendição, acabou tendo que admitir que o prisioneiro nunca colaborou: “Não se conseguiu sua capitulação devido ao marco mental muito rígido do condutor da guerra subversiva”, disse o ditador. Quanto à Carta, logo o PCP divulgou que era falsa. Tempos depois a imprensa burguesa confirmou a falsificação, noticiando que, na realidade, havia sido escrita por um policial, agente do Serviço Nacional de Inteligência (SIN), Rafael Merino Bartet.
Na ilha com os ‘terroristas’
Curioso é que escutei uma frase com conteúdo similar sobre as LTCs, muito tempo antes, em abril de 1985, quando consegui chegar ao tenebroso presídio da Ilha do Frontón, no oceano Pacífico, onde estavam detidos centenas de “terroristas”, sendo a primeira repórter das Américas a entrevistar membros do grupo que a imprensa burguesa chama de Sendero Luminoso, tido por essa como tão “perigoso” e “violento” quanto os talibãs, agora novamente famosos nas manchetes.
“Conseguimos transformar esse campo de concentração em uma Luminosa Trincheira de Combate”, sentenciou um dos meus entrevistados, anônimos, a quem dei o nome de José.
Ocorre que em 1985/1986 o PCP, internamente, já falava do assunto (e o militante José, mesmo trancafiado, estava bem informado): “A atividade política e militar de um comunista não se acaba no dia que é preso. A atividade política de um marxista-leninista-maoista pensamento Gonzalo se concretiza na transformação das negras masmorras reacionárias em Luminosas Trincheiras de Combate”, afirmava um texto partidário, naquela época.
A polícia deixaria entrar?
A experiência vivida no Frontón foi publicada por nós em 2004, no livro Peru: do império dos incas ao império da cocaína (e está acessível à aquisição no portal de AND na internet).
Reproduzimos a seguir trechos relativos às LTCs incluídas no livro:
Estava de férias no Peru e algumas pessoas, sabendo que eu era jornalista, contataram-me. Perguntaram se aceitaria “correr o risco” de ir até o Frontón, no Pacífico, onde estavam detidos centenas de homens acusados de serem guerrilheiros do Partido Comunista (grupo chamado por pela imprensa burguesa de Sendero Luminoso). Não havia tempo para relutar. Concordei.
Bem cedo, na manhã de 20 de abril de 1985, cheguei ao cais do porto de Callao, próximo à Lima. Tudo estava planejado. Restava, porém, o mais importante: saber se os policiais me deixariam entrar na ilha.
O balneário e a gargalhada
À medida em que nos aproximávamos víamos um quadro fantástico, inverossímil. No topo de um pavilhão, à direita da ilha, tremulava soberana uma imensa bandeira vermelha com a foice e o martelo. Abaixo dela, na parede do prédio, uma pixação enorme e definitiva: “A rebelião se justifica!”.
Como formigas, centenas de homens se espalhavam por lá, saudando-nos a distância com os braços erguidos. Alguns empunhavam bandeiras vermelhas, que balançavam de um lado a outro, bem lentamente. Sem se importarem com a presença de policiais na lancha, de repente as familiares (mulheres e crianças) começaram a cantar. Um canto solene, sentido, poderoso: “Gonzalo las masas rugen / los Andes se estremecen /expresan pasión ardiente/fé segura y acerada/Y el pueblo escucha atento/Acelera su jornada/Que es Gonzalo canto al fuego!/Gonzalo es lucha armada!”
Algumas mulheres choravam. Aquilo era muito forte…
Comentei que sentados ali na frente do mar, com as famílias conversando animadas, as crianças brincando, podíamos passar por alegres veranistas. Todo mundo riu.
“A gente mesmo já apelidou isso aqui de “Balneário Apolônia!” (Pelo que consegui entender, em meio às gargalhadas, Apolônia era um reduto da rica burguesia peruana no verão).
“De vez em quando conseguimos pescar e promover torneios de voleibol, natação, música, dança e declamação”, contou um dos presos.
Cardápio: vidro moído e ratos
(Hoje, passados tantos anos do genocídio cometido contra eles, quando a maioria dos presos morreu sob um bombardeio em 1986) ainda é triste lembrar daquelas pessoas. A aparente tranquilidade que vi naquele dia escondia, atrás de si, histórias dramáticas.
“Conseguimos transformar esse campo de concentração em uma Luminosa Trincheira de Combate – sentenciou José. Todos concordaram. Alguém contou que nos primeiros tempos, quando os guerrilheiros foram trancafiados na ilha, os guardas colocavam vidro moído na comida, pedaços de ratos apareciam boiando na sopa, a água era misturada com querosene. Com muita luta, acabaram com aquilo.
A conversa se anima. Outros presos aproximam-se. Um deles começa a falar do cerco às cidades a partir do campo; outro da vitória que chegará um dia; da repressão do governo que já somava milhares de mortos e desaparecidos; outro das tropas paramilitares formadas pelo Exército para combater a guerrilha. De repente chegou o homem de boné azul, o mesmo que tinha aparecido antes com o loiro.
Sorriu com simpatia, sentou-se e começou a explicar que todo aquele ambiente positivo, tanto no que tocava ao moral dos “muchachos” quanto ao aspecto visual do lugar que nos rodeava, foi resultado de um paciente trabalho coletivo executado contra a vontade dos guardas: “Este lugar onde estamos, por exemplo, era um terreno imprestável, tomado por pedras, lixo, aranhas, baratas e ratos. Usando apenas nossas mãos removemos uma tonelada de detritos para construir isso aqui.”
Para a convivência do dia-a-dia, esclareceu, eles mesmos dividiram os presos em destacamentos de 5 pessoas. Cada grupo tinha um chefe temporário que organizava as tarefas. Todos se revezavam para cozinhar, fazer a limpeza, lavar roupas, dar aulas, etc.
Escola, farmácia, biblioteca
Com medicamentos trazidos pelos familiares, eles instalaram uma pequena farmácia, inclusive com atendimento médico. Através de doações, também obtidas por seus parentes, implantaram uma biblioteca com uns 400 volumes (onde se encontrava desde as obras do Presidente Mao e outros pensadores marxistas-leninistas, até livros de biologia, matemática, geografia e espanhol).
Igualmente com matéria-prima proporcionada pelas famílias e amigos, mantinham uma oficina que produzia artesanatos em pedra e palha (que depois eram vendidos ou presenteados, mas que principalmente serviam para a prática de habilidades manuais). Criaram além disso uma escola, onde os professores eram os próprios presos. Nela não somente se alfabetizava, mas também se ministrava conhecimentos de álgebra, anatomia, história. E teoria política, claro.
Os manuscritos
No entanto, o que mais me impressionou foi o trabalho de copismo que executavam. Como não possuíam máquinas de escrever e mimeógrafo, encontraram um outro jeito de elaborar edições de documentos políticos do Partido, peças de teatro, poesias, canções, textos para discussões internas. Tudo era copiado à mão. Com paciência chinesa e capricho de monges, “fabricavam” livros.