A marreta da luta sindical

A marreta da luta sindical

Dia 3 de agosto, quarta-feira. Rua Tereza Cristina, 5477 — Bairro Betânia, zona Oeste de Belo Horizonte, MG. O terreno de uma concessionária de automóveis, pertencente a um senhor que atende pelo nome de Glicério, ostenta a placa KL Engenharia, CREA 73272. Um barranco, de aproximadamente 8 metros, cortado de maneira irregular, funcionaria como muro de arrimo, parede para um galpão da concessionária. Súbito, aconteceu o soterramento.

Dois operários perderam a vida: Bruno Moreira Leme e Jefferson Ramos da Silva. Diz Zildo Gomes Viana, diretor-social do Sindicato dos Trabalhadores em Construção Civil:

— O barranco, cortado de forma inclinada, não tinha nenhuma proteção. Mesmo que houvesse escoramento, ele se revelaria insuficiente devido à altura. O correto seria, antes do corte, fazer os “tubulões”, que são normais em obras daquela natureza. Se tivessem feito isso, o corte poderia ser realizado sem nenhum problema. Como a medida não foi adotada, todo aquele peso veio em cima dos trabalhadores.

Indignado, o diretor social explica:

— Nós percebemos também que os responsáveis pela obra não tinham nenhuma vontade de registrar o pessoal. Hoje, eles estão sendo pressionados a registrar, mas, com certeza, nenhum daqueles operários tinha recebido equipamento de proteção, como também não estavam registrados. Os dois operários que morreram, por exemplo, sequer tinham carteira assinada.

O presidente do mesmo sindicato, STIC-BH, Osmir Venuto,concluiu:

— Além do mais, o empregador não era uma empresa, mas uma pessoa física, um sub-empreiteiro conhecido como Mazinho, que contratou a obra de um dono de outra concessionária chamado Pedro. De qualquer forma, Laerson da KL Engenharia, empreitou a obra. Se a placa estava lá, ele é o responsável.

Fiscalizar o crime?

Zildo revela que em Belo Horizonte apenas dez funcionários do Ministério do Trabalho fiscalizam toda a construção civil e outros setores, como metalurgia, fábricas diversas e o comércio. O fiscal, depois de aberto o processo de uma obra, não tem condição de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Obviamente, fossem apenas as irregularidades provocadas pelo próprio sistema, não haveria fiscal capaz de absorver todo o volume de trabalho daí decorrente. Mas como o maior crime conhecido pela humanidade é a exploração do trabalho, o que na sociedade capitalista é a base da economia, o Ministério de Trabalho, como aparato dos grandes patrões, tolhe a iniciativa de qualquer homem honrado, a começar pelo cumprimento das leis que na verdade são inócuas quando se voltam contra os exploradores.

Reconhecer o sistema criminoso, todavia, não justifica a insensibilidade de funcionários, particularmente dos chefes.

— O descaso do Ministério é muito grande. Você procura o delegado do MTB aqui, que é o Carlos Calazans, e ele diz que está tudo em ordem, que com a sua nomeação para delegado a coisa caminha muito bem e que os fiscais dão conta de trabalhar. Mas é pura mentira! — revela o diretor social.

Zildo esclarece que realmente tem havido redução de acidentes. Porém, como? Havendo menos notificações. Puro artifício dos exploradores. Além do mais, a redução é também determinada pelo desemprego, que é imenso.

Os diretores do sindicato se encarregam de advertir os companheiros na produção sobe os riscos e de denunciar irregularidades. Continua o diretor social:

— Aqui, através da convenção coletiva, nós temos a garantia de fazer reunião com duração de uma hora com o trabalhador, no horário de trabalho dele. Nós agendamos com a empresa essa reunião, onde a gente instrui sobre o uso de equipamentos de segurança, as denúncias que eles devem fazer quando não recebem esses equipamentos e sempre que houver qualquer outra irregularidade. As empresas são poucas, mas a quantidade de obras é grande, porque muitas são irregulares, sem registros, sem contratos.

O diretor prossegue:

— Nós temos um trabalho junto aos hospitais de pronto atendimento para nos comunicarem sempre que um trabalhador dá entrada com ferimento grave. Isso nos permite um relativo controle sobre os acidentes, mas resulta insuficiente, impreciso de certa forma, porque existem casos até de trabalhadores perderem um membro do corpo e, mesmo assim, serem atendidos em postos de bairro!

Rouba e engana

Um relato estarrecedor é invariavelmente acompanhado de desdobramentos, e sempre superado pelo seguinte. Assim, quando o sindicato descreve um acidente que ocorre devido à irresponsabilidade do explorador, um outro crime é imediatamente cometido como forma de assegurar a impunidade do primeiro.

A “empresa”, por exemplo, manda alguém da administração dizer ao operário vitimado que ela vai pagar todas as despesas, que o trabalhador pode dispor do tempo necessário indicado pelos médicos.

Mas a mesma empresa sequer emite a Comunicação de Acidentes de Trabalho — CAT. Formado no ambiente da escravidão moderna, constrangido pelo risco constante de perder o miserável salário (na verdade ele vai perder o “emprego” de qualquer jeito tão logo volte da sua recuperação), o operário se cala.

Os diretores nunca fogem do assunto. Atentos, eles retornam ao caso:

— No que diz respeito a esse acidente, nós estamos envolvendo o Ministério do Trabalho, o Conselho Regional de Engenharia (CREA-MG), para que, caso o proprietário retome a obra, quem acompanhar o processo seja responsável por indenizar as famílias desses trabalhadores. Outra coisa é que nós vamos acompanhar de perto, senão eles fogem, como outros já fugiram. A empresa muda de nome, desaparece. Quando se trata de pessoa física, eles vendem o terreno e a obra. O sindicato não conhece recesso, pausa, trégua. A questão é que a diretoria está sempre nas obras, colada aos operários, próxima às edificações mais complicadas.

A Nova Democracia presenciou isso. Começando pelo presidente, todos os dias, ele visita os operários direto nas obras. E qualquer um que deseje atribuir a essa atividade algo parecido com caça ao voto, perde tempo, porque não vai convencer o operário mais ingênuo que sua diretoria é interesseira. Do lado de fora do canteiro, entre os trabalhadores durante o almoço, seja como for, o presidente, a diretoria, o sindicato enfim, está sempre com eles.

Para a diretoria, o sindicato “não é uma casa com telefone”, a sede com atividades filantrópicas, a mesa do presidente — , embora o STIC disponha de uma sede bem equipada. Mas a luta está lá no canteiro de obras, nas assembléias, enfrentando os tribunais trabalhistas; por onde passa o trabalhador produzindo e exigindo o que é seu, quando tudo se transforma em movimento operário.

Assim, Zildo Viana, um dos diretores, vê a inevitabilidade de prosseguir o processo de reparação de perda à família:

— Um familiar da vítima jamais admite que o seu ente querido fique gravemente ferido, mutilado ou então perca a vida, simplesmente porque saiu para trabalhar. Nós também, não. De jeito nenhum podemos aceitar isso! O trabalho é um processo que dá à sociedade humana seus meios de existência, enquanto que o operário é sujeito à exploração, obrigado a vender a sua força de trabalho porque os “donos” da sociedade são os donos de todos os meios de produção. Então, não justifica dizer que um trabalhador perdeu uma parte do corpo porque estava trabalhando. Ele perdeu uma parte do seu corpo, ou a vida, porque foi negado a ele todo tipo de proteção. Em geral, isso acontece porque lhe negam todo cuidado de que precisava para que se evitasse o acidente.

A Marreta

Não é qualquer marreta, não. É ela mesmo.

O nome advém do movimento criado no fogo da luta contra os grandes patrões e seus melhores auxiliares, os oportunistas. O Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção de Belo Horizonte existe desde 1933, mas nem sempre esteve sob o comando daqueles que defendem a luta dos trabalhadores por uma vida mais digna — é o que afirma o armador e atual presidente do STIC-Marreta, Osmir Venuto da Silva.

A diretoria do Marreta é a mesma, desde 1988, depois que o antigo presidente, Francisco Pizarro foi deposto pelos trabalhadores organizados. Diz o presidente Osmir:

— Desde a Constituição de cinco de outubro de 1988, o estado não podia mais intervir no sindicato. Baseado nisso, cerca de 200 companheiros, dos quais alguns ainda são da atual diretoria, ocuparam o sindicato no dia 30 de novembro de 1988.

Deposta a diretoria, foi convocada uma nova eleição em que a CUT também concorreu, mas em que a vitória da Marreta foi esmagadora. Com um mandato de quatro anos, e uma diretoria composta por 42 membros, a chapa Marreta nunca teve concorrência desde a posse.

— Para estar no Sindicato tem que se dispor a trabalhar e a gente têm um trabalho muito bom, por isso é difícil fazer uma chapa para disputar com a gente; o nosso trabalho é muito grande — afirma orgulhoso Osmir, que reconhece — A oposição é necessária e até fortalece.

O “trabalho muito bom” a que Osmir se refere são as conquistas da atual diretoria na Convenção Coletiva do Trabalho (CCT), que assegura direitos como a cesta básica (um paliativo, certamente, mas também uma conquista na atual situação e que alivia um pouco os gastos do trabalhador); o seguro de vida, implantado já há dez anos e que serve de exemplo para vários sindicatos em outros estados; a taxa de depreciação de ferramenta, onde a empresa tem que pagar uma parcela de desgaste da ferramenta pertencente ao trabalhador; o fornecimento dos equipamentos de segurança pelas empresas, uma vez que eram comprados pelos próprios operários — dentre outras conquistas.

Uma das meninas dos olhos de ouro do sindicato é a Escola Popular Orocílio Martins Gonçalves, composta em sua grande maioria por operários da construção civil, mas que também tem no seu quadro de alunos: rodoviários, comerciários, domésticas e camelôs.

Explica Osmir: numa luta salarial, por exemplo, o trabalhador ganha hoje e amanhã vem a inflação e toma tudo. Já o conhecimento adquirido na escola é para a vida toda. Por isso, dentre os projetos sociais do sindicato, está também o Marreta Futebol Clube, retratado na edição anterior do AND, e um projeto de moradia para a população mais explorada, junto à COHAB/MG (Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais) em que o governo doa o material e o terreno, enquanto os operários constroem as creches e moradias em mutirão.

Foram edificadas 508 moradias na região metropolitana, graças a esse sistema. Nele, os alunos da Escola Popular, do curso de qualificação, têm a oportunidade de testarem seus conhecimentos em aulas práticas e dirigidas diretamente para apoiar seus irmãos de classe.

Explorador e atrasado

Esse projeto confirma as palavras de Hannes Meyer (El arquitecto em la lucha de clases y otros escritos, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1972) ao contar que durante a fase pós-bélica da Segunda Guerra, o centro do poder parecia estar na mão da classe operária e no campo da construção. Isto se manifestou nas realizações de numerosos programas construtivos sociais, colocados em prática pelos sindicatos classistas, independentes, verdadeiramente combativos, e pelas cooperativas.

Nesse livro, Meyer, é brilhante ao afirmar que “construir é um trabalho conjunto de artesãos e inventores. Unicamente o que sabe dominar os projetos vitais trabalhando em cooperação com os demais pode considerar-se realmente um bom construtor”.

E isso os operários sabem de longa data.

São essas as organizações que dão valor a esse tipo de projeto, uma vez que as grandes empreiteiras se opõem a ele receando perder a oportunidade de obter novos contratos com prefeituras, também pressionadas a extinguir projetos dessa natureza.

Um dos maiores problemas é que a construção civil tem um nível de empresários muito atrasado, que mantêm o “costume” de tratar o trabalhador como escravo. Às vezes, uma palavra do patrão vale mais que a do sindicato.

Verdadeiros artistas anônimos constroem e reconstroem a cidade grande enfrentando diversas dificuldades, discriminações e uma vida dura forjada no dia-a-dia dos canteiros de obras espalhados em todo o país. A categoria dos operários da construção civil é composta em sua maioria por homens que migraram do interior para a cidade grande em busca de melhores condições de vida e trabalho.

As construções em larga escala são as que mais se beneficiam da massa de trabalhadores expulsos do campo que, desempregada e não especializada em ofícios urbanos, torna-se a vítima mais frágil da “alta rotatividade da mão de obra”, um aspecto da intensa exploração do trabalho. — É como se fosse a Globo. Você pode fazer um trabalho hoje, de 10 anos, que ela destrói tudo, em trinta segundos — compara Osmir.

Segundo a lei, os sindicalistas podem entrar na obra para falar com os trabalhadores a qualquer momento, durante uma hora. Mas, em contrapartida, os patrões podem falar o dia inteiro, desqualificando o sindicato e coagindo os trabalhadores. Já aconteceu de o sindicato marcar um encontro em uma determinada obra para resolver irregularidades e o patrão oferecer churrasco e bebida durante todo o dia para o trabalhador não participar da assembléia.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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