Angenor de Oliveira, o nosso Cartola, um dos gênios reconhecidos da cultura brasileira, autor de As Rosas Não Falam, O Mundo é um Moinho etc, em determinada fase de sua vida passou por uma série de problemas que o afastaram do meio musical. Alguns de seus companheiros chegaram a achar que tinha morrido e até compuseram sambas em sua homenagem. Na verdade, o que havia acontecido era que, deprimido e cheio de problemas, Cartola, para não morrer de fome, acabara por se tornar lavador de carros em um estacionamento em Ipanema, no Rio de Janeiro.
Quis o acaso que, em 1956, um jornalista e cronista, conhecedor profundo e amante da música popular brasileira, ao passar pelo local o reconhecesse e o trouxesse de volta para o samba, para grande enriquecimento de nosso patrimônio cultural. Esse jornalista se chamava Sérgio Porto e costumava assinar suas crônicas com o pseudônimo que o tornou famoso: Stanislaw Ponte Preta.
Carteira distribuída com a edição do Febeapá 2
Essa recuperação para a vida artística de um sambista do porte de Cartola é apenas uma das muitas contribuições de Sérgio Porto. Embora ele ainda hoje seja visto em certos setores como um sarcástico que procurou e desfrutou apenas do lado fútil e bom da vida, sempre cercado de belas mulheres e a beber o legítimo scotch, essa imagem é falsa. É fruto da confusão ingênua entre o criador Sérgio Porto e a criatura Stanislaw Ponte Preta, o sobrinho de tia Zulmira, esse sim um gozador da vida. Essa confusão corresponde a acharmos que Shakespeare, um modesto ator inglês, tivesse a ambição assassina de Lady Macbeth, ou que Cervantes, um desiludido soldado espanhol, padecesse da loucura alucinatória de Dom Quixote.
Sérgio Marcos Rangel Porto nasceu no bairro de Copacabana, no Rio de janeiro, em 11 de janeiro de 1923, e faleceu na mesma cidade em 30 de setembro de 1968, vítima de um ataque cardíaco, o último de uma série. Mesmo que ele seja geralmente classificado como jornalista e cronista, sua atividade profissional se estendeu por várias áreas, quase todas ligadas à imprensa e ao ramo dos espetáculos. Quase, porque ele foi também bancário, funcionário do Banco do Brasil por muitos anos.
Crítica com música
Sérgio era sobrinho de Lúcio Rangel, grande crítico musical, que teve um papel importante na nossa história musical por ter sido, dentre outras coisas, quem apresentou Tom Jobim a Vinicius de Moraes, que à época procurava alguém para musicar seu Orfeu da Conceição.
Sérgio foi criado em Copacabana, na rua Leopoldo Miguez. Quando sua casa natal foi vendida para uma imobiliária, passou a morar em um apartamento no mesmo endereço, local onde morreu. Chegou a estudar Arquitetura, curso que largou no terceiro ano para se dedicar ao banco e às atividades jornalísticas.
Pelas mãos do tio passou a escrever na revista Sombra, em 1949. A partir daí atuou no Diário Carioca, na Tribuna da Imprensa e, de 1954 até sua morte, na Última Hora. Participou também, ao lado de Lúcio Rangel, da Revista de Música e de O Mundo Ilustrado. Próximo à sua morte fundou um semanário intitulado A Carapuça, que não sobreviveu a ele.
Além das atividades jornalísticas, Sérgio atuou como redator de programas humorísticos, tanto no rádio e televisão, quanto no teatro. Entre estas participações se destacam os shows escritos juntamente com Nestor do Holanda e Antonio Maria para atores cômicos como Ronald Golias e Chico Anísio, que então iniciavam suas carreiras na televisão. O mais famoso desses shows foi, certamente, Times Square, na TV Rio.
Como redator, Sérgio era famoso pelo cuidado na elaboração do texto e pela precisão das informações que dava. Achava – com toda razão, aliás – que um programa de televisão, sendo um show de variedades e de linguagem leve, nem por isso deve ser descuidado na sua redação e produção. É famosa a discussão que teve com o produtor de um quadro humorístico que apresentava Luis XVI como filho de Luis XV. Quando Sérgio disse para o produtor que o Luis mais novo era, na verdade, neto do mais velho, veio a resposta característica dos descuidados que escondem em sua ignorância um enorme desrespeito pelo público: – "e que importância tem isso?"
Para Sérgio, tinha muita. Fazia-se a piada, desmoralizava-se o rei, mas dava-se a informação certa.
Stanislaw vem ao mundo
Seu alter ego, o filho que se tornou mais celebre que o pai, nasceu no início da década de 50, na Última Hora. Sérgio, com seu enorme senso de ridículo, era um feroz opositor das chamadas colunas sociais, as precursoras das revistas de famosos da atualidade.
Ao ser solicitado para substituir o colunista do jornal ele se recusou, mas aceitou a sugestão, dada por Otto Maria Carpeaux, de usar um pseudônimo para comentar os fatos do dia de maneira crítica, ou mesmo cômica. Inicialmente pensou em Serafim Ponte Grande, o protagonista do livro homônimo de Oswald de Andrade. Daí chegou à solução que até hoje habita o imaginário de quem teve o prazer de ler suas colunas e livros: Stanislaw Ponte Preta, o sobrinho de Tia Zulmira, a anciã do casarão da Boca do Mato, primo do nefando Altamirando e do distraído Rosamundo. Com essa criação, Sérgio, agora Stanislaw, entrou para o jornalismo como um dos mais mordazes críticos das mazelas de nosso país.
Stanislaw, pelas suas atividades de autor de roteiros de programas e peças de teatro, se notabilizou, também, pelo trânsito livre que tinha entre as belas mulheres, tanto do teatro quanto da televisão. Assim, criou sua lista anual de As Certinhas do Lalau, em que para ironizar as inexoráveis listas anuais As Dez mais bem Vestidas dos tão detestados cronistas sociais, ele publicava sua lista anual das Dez Mais Bem Despidas, com um humor que hoje certamente seria considerado politicamente incorreto. Mas qual humorista é "politicamente correto"? O humor é exatamente a negação do que se considera politicamente correto. Essas listas, obviamente, muito fizeram pelo mito do Sérgio Porto mulherengo e irresponsável.
Em 1964, com a edição do golpe militar, Stanislaw impressionado com a truculência da nova situação, mas ao mesmo tempo tolhido pela censura, iniciou um inteligente processo de noticiar as agruras do povo brasileiro sob o novo regime intitulado O Festival de Besteira que Assola o País, o Febeapá. Com esse recurso em que ficava implícita sua desaprovação ao regime militar inaugurado em 1º de abril de 1964, Stanislaw noticiava e comentava com seu estilo cáustico os desmandos das novas autoridades. Conseguiu com isso um público até então indiferente às suas tiradas. Sob esse título publicou três livros, além de centenas de crônicas.
Moralista mordaz
Sua obra publicada é relativamente grande: as seis novelas curtas de As Cariocas, sua principal tentativa de fazer outro gênero literário e publicadas sob seu nome verdadeiro, envelheceram principalmente porque o conceito de relação homem/mulher mudou com o passar dos anos e ninguém mais se impressiona com o fato de uma atriz perder a virgindade numa transa com o diretor da emissora em que trabalha. Da mesma forma, a violência urbana descrita em A Currada de Madureira e a falta de escrúpulos dos ricos de A Grã-fina de Copacabana não só permanecem como pioraram muito.
Nos dois volumes de crônicas publicados, também, sob seu próprio nome: O Homem ao Lado e A casa Demolida, está o melhor do autor: o lirismo meio melancólico, escrito em magnífico português, com que narra o fim da idílica Copacabana de sua infância e sua transformação no confuso bairro dos anos 50 e 60 ainda é atemporal. Neles, há também belos retratos de personagens da convivência do autor, como Heleno de Freitas, seu amigo de juventude. Há, também, uma História do Jazz, obra pioneira no gênero no Brasil, em que Sérgio transmite um pouco de seu profundo conhecimento da história da música.
Como Stanislaw Ponte Preta publicou Tia Zulmira e Eu; Primo Altamirando e Elas; Rosamundo e os Outros; os Febeapá 1, 2 e 3 e O Garoto Linha Dura. Nessas obras, o humor amargo tão característico do autor está plenamente representado. São textos em que comenta as noticias do dia com um sentido crítico que beira a causticidade e que, para nós, mostram a permanência desse Febeapá no país até hoje.
Nesses livros de Stanislaw, o escritor usa uma linguagem extremamente pessoal, impossível de ser reproduzida por outra pessoa. Quem tentou copiar seu estilo coloquial, meio jocoso, mas preciso e expressivo, se deu mal, já que em sua aparente leveza o texto de Stanislaw é permeado por expressões tiradas da grande cultura do autor e o revela como um notável frasista.
Frases lapidares
Nessa qualidade, ele deu uma notável contribuição e incorporou ao nosso cotidiano frases altamente marcantes como: "No Brasil as coisas acontecem e depois, com um simples desmentido, deixaram de acontecer". Ou: "Quem não ganha, já perdeu". E: "Conversa de bêbado não tem dono". Além de: "Aderia mais que político brasileiro ao poder". "Os 10 mandamentos deviam ser 11: bater o ponto e trabalhar"e "Tem linguiça debaixo desse angu" são frases que todos usam sem saber de onde vêm.
Só mais uma para encerrar: "No Brasil o que existe é impunidade parlamentar". Parecem escritas hoje e não há mais de 40 anos.
Ele, profundo conhecedor da música de sua cidade, foi também autor de inúmeros textos de apresentação de discos, as famosas contra capas dos antigos LPs, em que um nome conhecido da crítica apresentava ao público um artista iniciante, ou pouco conhecido. Uma antologia composta desses textos, somados aos de crítica musical que escreveu para os jornais em que trabalhou, formaria certamente um interessantíssimo livro sobre a música carioca dos anos 50 e 60.
No final da vida, Sérgio Porto compôs o Samba do Crioulo Doido, que ficou célebre. Nele são ironizadas as dificuldades dos compositores de sambas enredo, trazidas pela obrigatoriedade de se tratar somente de temas históricos, à maneira da ridícula historiografia oficial, contida no regulamento do desfile das escolas de samba.
Na esteira de seu sucesso, escreveu um show de teatro intitulado Show do Crioulo Doido com o qual rodou boa parte do Brasil e que foi responsável, tanto pelo sucesso que marcou o final de sua vida quanto por inúmeros problemas com a censura. Em meio às apresentações desse espetáculo ele morreu em 1968, dois meses antes do AI 5.
A geração a que Sérgio Porto pertenceu marcou sua presença em nossa imprensa de maneira inesquecível. Dela fizeram parte nomes como Antonio Maria, João Saldanha, Ary Barroso, Paulo Mendes Campos, Ruben Braga, Millor Fernandes, Fernando Sabino, Nestor de Hollanda, José Lins do Rego, Dolores Duran, Eneida, Rosário Fusco etc, gente culta e versátil que sabia escrever usando bem os recursos de nossa língua, mas sem perder a clareza e a capacidade de comunicação. Disso resultava uma linguagem rica que ao mesmo tempo informava, divertia e, mesmo sem essa pretensão, educava o leitor. Foi, também, a última geração que teve sua atuação no Rio de Janeiro. A partir dela, com a mudança do centro político para Brasília e do econômico para São Paulo a cidade maravilhosa iniciou sua longa e inexorável decadência, para nossa tristeza e empobrecimento.
Um dos companheiros mais próximos de Sérgio Porto foi Paulo Mendes Campos, escritor de fina linguagem, que deixou um lúcido depoimento sobre o amigo, incluído no livro Murais de Vinícius e Outros Perfis, recentemente editado pela Civilização Brasileira. Nesse texto o cronista mineiro narra os últimos anos de vida de Sérgio e chama a atenção para o fato dele ter sido um trabalhador infatigável, mergulhado muitas horas por dia em sua máquina de escrever, cumpridor dos compromissos assumidos e que teve no trabalho sua vocação de vida. Nada mais contrário à lenda do bon vivant, do gozador da vida, portanto que esse depoimento.
Outros memoriais, como o Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta, de Renato Sérgio, lançado pela Ediouro, acentuam o profundo compromisso do autor com seu país, com seu povo, sua luta indignada contra o racismo, outro tabu à época, sua peleja para melhorar o nível dos programas de televisão, objeto, aliás, de um texto indignado do Febeapa 3.
À sua maneira aparentemente descompromissada, dentro de seu estilo só externamente irresponsável e leve, com uma visão da vida muito mais séria e engajada do que seu humor ácido fez supor, Sérgio Porto deu sua contribuição ao país de muitas outras maneiras além da, importantíssima, de trazer Cartola de volta para o samba.
Mostras de Febeapá
Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um bonde chamado desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou: "Insulto eu não tolero".
O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros
(Deputado Índio do Brasil, Assembléia do Rio).
Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): O Dr. Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligências pelas vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos "bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código secreto".
Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a passeata, mas antes também. Eles são incapazes de reconhecer o valor da polícia. Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial". Essa declaração foi feita pelo Secretário de Segurança de Minas Gerais, coronel Joaquim Gonçalves.