Rio Roosevelt, um dos limites do território Cinta Larga
O Estado, através de suas estruturas policial-burocrática, legislativa e jurídica, não só fecha os olhos à autofagia entre os pobres (índios, camponeses e garimpeiros) como até contribui diretamente para os confrontos quando, por outro lado, não é diretamente o autor das chacinas.
É esta a situação do garimpo, principalmente na região do Rio Roosevelt, no município de Espigão do Oeste, onde todos garantem existir um cemitério clandestino de garimpeiros, mortos pelos índios ou pela polícia.
Mesmo diante dos protestos no Congresso Nacional e em praticamente todos os órgãos e entidades ligadas ao garimpo e campo, toda essa situação dramática, e de verdadeiro clima de terror na região, é estimulada pelas autoridades, que nada fazem contra os matadores e os próprios latifundiários que os contratam. O Estado de Rondônia é rico em minerais metálicos (estanho/cassiterita, nióbio/columbita-tantalita e ouro) e minerais não-metálicos (calcário), que aumentam em muito a cobiça. Enquanto isso, tramita no Congresso o projeto de Lei 1610, aprovado no Senado, mas que já é motivo de protesto entre índios e garimpeiros.
Fotografar pode virar decreto de morte
A ausência de fotos do garimpo, nesta matéria, devido às advertências que sofremos, — “se entrar, pode não voltar” – dão a idéia exata do perigo que domina Rondônia, onde pode se repetir as consequências trágicas dos massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás, e fazer crescer os cemitérios clandestinos nas áreas do garimpo. A ausência de notícias na mídia nacional também é um estímulo a mais para a sucessão de crimes e injustiças.
Sem exagero, Rondônia demonstra ter sido transformada na região de maior corrupção e de crimes em todo o país, principalmente pela fertilidade de suas terras e a riqueza de minerais sob o seu solo. “Os índios da Amazônia caminham sobre ouro, diamante, alumínio e dezenas de outros minérios”, é o que mais se ouve na região.
A maior área de risco é a Reserva Roosevelt, dos índios Cinta Larga. Muitas ossadas foram encontradas nas matas e, segundo se garante, há muito mais. Além da matança pelos índios, embora eles neguem, há também assassinatos entre os próprios garimpeiros, em assaltos para tomar o minério encontrado por um dos companheiros, no caminho até o centro da cidade de Espigão do Oeste, onde acontece a venda, a preços bem abaixo do valor, a receptadores e contrabandistas.
“Está morrendo muita gente, moço”
Limite entre os municipios de Pimenta Bueno e Espigão do Oeste
Para os garimpeiros que tentam ludibriar os índios (leia-se também empresas e mafiosos atuando por trás), fugindo ou escondendo minérios por resistência à comissão, que varia entre dez e trinta por cento, o perigo é o mesmo. Muitos foram torturados e assassinados sem que se tenha mais notícia. Para os mais audaciosos, que tentam entrar pela mata para garimpar sem prévio “acordo” com os índios, o destino é o cemitério clandestino, em geral, em local de dificílimo acesso e desconhecido de quem não pertence à tribo.
“Está vendo aquelas mochilas ali, no cantinho do bar? São de garimpeiros que pediram para guardar e não voltaram mais. Está morrendo muita gente, moço, e a Federal praticamente nada pode fazer, a não ser impedir novas invasões no garimpo”, disse, muito reservadamente, um dos freqüentadores de um pequeno armazém-bar na praça do Bradesco, uma área que era de propriedade do banco, onde começa a trilha para a reserva dos Cinta Larga.
“Na antiga Guiana Inglesa, é pior. Saiu da linha, fez alguma coisa errada, morre. É outro lugar onde se mata muito. Vi muitos companheiros morrerem. Aqui em Espigão do Oeste, está mais complicado até pela presença da Polícia Federal. Por isso, estou voltando para lá, com alguns companheiros para tentar a sorte de novo, mas dentro das regras ‘deles’. De vez em quando, a gente dá uma tacada de uns R$ 30 mil, ajuda a família e volta de novo para, quem sabe, se garantir para o resto da vida”, comentou um garimpeiro num dos táxis-lotação que fazem o trajeto Espigão-Pimenta Bueno, até à BR-364(antiga 29), rodovia federal de ligação com os principais municípios de Rondônia e as regiões Norte e Centro-Oeste do país.
Flechadas e tiros impedem presença de “desconhecidos”
É cada vez maior o número de viúvas e órfãos nas regiões de Espigão do Oeste, Cacoal e Pimenta Bueno. À procura de um sobrinho, que garimpava na área, o agricultor Gideão Soares confirmou a existência de um verdadeiro cemitério na floresta, a seis quilômetros do garimpo, dentro da reserva dos índios. Foi ele, inclusive, quem levou a Policia Federal ao local onde se encontravam sete ossadas humanas.
No depoimento prestado à polícia, Gideão pediu proteção e garantiu que uma centena de garimpeiros teriam sido amarrados, arrastados, torturados e provavelmente mortos no garimpo, entre maio e julho, A estimativa teria como base o número de mães e filhos que procuram por parentes que foram ao garimpo, a exemplo do seu sobrinho, e não retornaram.
Em local que não soube determinar, Gideão contou que conseguiu escapar de um grupo de índios. “A mesma sorte não tiveram outras pessoas, que ficaram amarradas até serem executadas. No mesmo dia, houve tiroteio com armas de grosso calibre”, relatou. Os caciques que representam a tribo Cinta Larga não reconhecem as mortes e se queixam da devastação ambiental em suas terras. Em audiência pública realizada na Câmara dos Vereadores de Cacoal, outras lideranças indígenas cobraram do Governo Federal providências para que se mude a realidade de seus povos.
“Moço, o que sabemos aqui é que os três caciques que comandam a região deram ordem para matar e enterrar quem invadir a área. Você é turista ou o quê? (neste momento, não nos identificamos como jornalista). Então, fique sabendo que se tiver máquina fotográfica, vai se complicar mais ainda. Depois que filmaram o acampamento deles e o garimpo, os caciques decidiram ser mais rigorosos. A partir daquela trilha (apontou), qualquer um que quiser se arriscar a entrar, pode levar uma flechada, um tiro de espingarda ou de 38”, disse outro freqüentador do pequeno armazém-bar, nas proximidades da entrada da reserva.
Início da zona de risco do garimpo do Roosevelt
Como a polícia vê a situação
“A atividade de garimpagem, nos dias atuais, constitui um dos mais graves problemas nacionais. Várias são as implicações dessa atividade, merecendo destaque as condições subumanas em que vivem os garimpeiros, a destruição dos povos indígenas, o contrabando do material garimpado, a devastação ecológica da flora e da fauna das regiões do garimpo, a poluição de rios, etc. Acrescentam-se a essa lista a violência e a corrupção”.
Essas afirmações, de um professor da região, Paulo de Bessa, são lembradas pelo delegado da Polícia Federal no Estado de Rondônia José Walter Teixeira, como demonstração da gravidade do problema do garimpo no Brasil.
“A miséria subumana daqueles que andam à cata de diamantes no garimpo da Reserva Indígena Roosevelt é facilmente constatada. A destruição dos povos indígenas é outro fator também indiscutível. Os líderes indígenas, aos olhos da sociedade, parecem bandidos, mas, na verdade, são homens manobrados pelos receptadores, por servidores corruptos e pelos donos de máquinas. De acordo com sua cultura, embora pareçam estar envolvidos com os brancos, não estão. Trata-se de uma situação muito difícil para a própria polícia. Outro problema grave é o contrabando do material garimpado, inclusive com desvalorização do que era comprado de garimpeiros e índios. Esse é outro fator que dificulta muito o trabalho da polícia, por mais prisões e apreensões que façamos. Pelo alto valor do diamante, gerando muito lucro, é difícil a repressão ao criminoso”. afirmou o delegado José Walter Teixeira.
Matam filhos de quem faz denúncias
A presidente da União Nacional dos Garimpeiros do Brasil (UNGB), Jane Rezende, denunciou ao Ministério da Justiça e à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que as mortes de dois adolescentes, Luébia Sousa Ramos e Vicente Filho França, ambos de 13 anos, ocorridas na noite de 31 de agosto, no distrito de Riozinho, em Cacoal, foram mesmo uma represália contra o pai da menina, Sandoval Vilela, devido às denúncias de seqüestros, execuções e ocultação de cadáveres no garimpo de Espigão do Oeste, feitas em Brasília, no primeiro semestre deste ano.
Inicialmente, Sandoval passou a ser perseguido até acontecer o assassinato de sua filha e de um colega. É o que garante o documento da presidente da UNGB, encaminhado também à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à Funai. O lbama e o DNPM também são acusados, por Jane Rezende, de darem sustentação a quadrilhas poderosas no contrabando de ouro, diamantes, minerais estratégicos, madeira e drogas.
“A morte dos dois adolescentes pode ser creditada à omissão, impunidade e comprometimento das autoridades com grupos que têm o domínio da exploração de minérios no garimpo de Espigão do Oeste. Desempregados e famintos vêm sendo usados como massa de manobra de quadrilhas poderosas que atuam livremente na região”. conclui o documento.
Corpos e ossadas humanas resgatadas pela Federal
Desde março, quando se instalou em Espigão do Oeste, a Policia Federal tenta impedir o garimpo na região do Roosevelt, obedecendo determinação do governo. Ao que tudo indica, a situação persistirá, até que seja aprovado o projeto de Lei 1610, do senador Romero Jucá e que já está provocando reações dos envolvidos no garimpo, que acreditam ser mais uma lei para beneficiar poderosos, amigos do governo ou multinacionais.
Centenas de garimpeiros foram expulsos, alguns presos, e resgatados alguns corpos de pessoas assassinadas nos conflitos, além de ossadas. Durante a primeira investida de policiais federais, auxiliados por um helicóptero, na região do garimpo e nas imediações, havia mais de cinco mil garimpeiros, de acordo com cálculos da própria PF.
Os índios chegaram a oferecer resistência, mas acabaram se aliando à policia, após a prisão dos caciques Nacossa Pio, Amaral, Taturé e João, o Bravo, acusados de cobrar comissões para facilitar a extração ilegal de diamantes. A Polícia Federal acusou os caciques Cinta-Larga de também estarem recebendo propinas de até R$ 30 mil, para cada par de máquinas de garimpo que entrava ilegalmente na reserva indígena, além de porcentagem sobre o volume extraído de diamantes.
Com a assinatura de um termo de compromisso para cooperar com a Polícia Federal na retirada dos poucos garimpeiros que ainda se encontravam na reserva, e ainda de impedi-los de retornar, os caciques foram libertados.
“Seria uma incoerência mantê-los detidos. Foi uma decisão tomada em reunião com juizes federais e procuradores da República do Estado de Rondônia. E é bom ficar claro que as prisões foram suspensas, e não revogadas. E se eles voltarem a facilitar o acesso ao garimpo, serão presos de novo”, justificou o superintendente da Polícia Federal, Marco Aurélio Moura.
Só os garimpeiros foram processados, incursos nos artigos 21 e 38 da Lei 7.805/89, sujeitos a penas de até três anos de prisão, além de multas. Há muitos garimpeiros desempregados e circulando pelo centro do Espigão do Oeste, enquanto aguardam a volta à “normalidade”.
A revolta contra a Polícia Federal
Inicialmente instalados no próprio garimpo, os federais tiveram que deixar o local, depois de terem o acampamento queimado pelos índios, revoltados com a prisão de um integrante da tribo que garimpava. Pelo menos é o que contam na praça do Bradesco, onde também se comenta que os índios ainda tiveram tempo de esconder no mato, muitas máquinas de extração de minérios, só deixando os federais apreenderem a minoria. A vigilância dos policiais federais passou a ser feita apenas nas áreas de acesso, embora não estejam impedidos de entrar no garimpo, sempre quer for necessário.
É comentário também na Praça do Bradesco que a Polícia Federal andou distribuindo a seu bel prazer máquinas, motores e veículos dos garimpeiros para “amigos” e colaboradores dos federais. O comportamento dos federais na cidade, segundo alguns, deixou muito a desejar: bebedeiras, tiros sem necessidade, direção perigosa e outras peripécias.
Lei prevê prisão por extração de diamantes
No dia 11 de agosto os federais conseguiram convencer um grupo de garimpeiros a desistir de entrar na área indígena, não aceitando a alegação de terem feito um acordo com os caciques. Inconformados e reclamando muito, os garimpeiros retornaram a pé, com mochilas nas costas, sem o ônibus que os trouxera.
Quem for preso extraindo diamantes é incurso nos artigos 21 e 38 da Lei 7.805/89, e sujeito a penas de até três anos de prisão, além de multas. Os presos respondem também por danificação de floresta nativa, de preservação permanente.
“Se a Polícia Federal, mandada por esse governo corrupto e de entreguismo do país aos EUA vem aqui para nos proibir de garimpar, só nos deixa a opção de roubar. E para evitar entrar para o crime, preferimos até sacrificar as nossas vidas, entrando irregularmente e as escondidas, em áreas de minério. Até porque essa terra é de todos nós. Ou não?”, questionou um dos garimpeiros que acabava de ser “convidado”, por policiais federais, a desistir de entrar na Reserva Indígena de Roosevelt, a quase cem quilômetros de Espigão do Oeste.
“Em Rondônia, tem muito ouro e diamantes para enriquecermos e ainda pagar a dívida do país. Nasci aqui e sei disso. O problema é que eles querem entregar tudo aos gringos, a exemplo do que fizeram com a Vale do Rio Doce”, comentou outro garimpeiro do grupo mandado de volta pela Polícia Federal.
“Ordem do cacique é matar e enterrar”
“Tem gente que não quer saber de nada, a não ser da possibilidade de ficar rico de uma hora para a outra, e invade mesmo. Mas acaba não voltando, pois a ordem dos caciques é matar e enterrar, embora neguem. E acreditamos que estão estimulados pelos próprios federais a matar mais garimpeiros, devido à ameaça de serem presos de novo, caso voltem a facilitar o acesso ao garimpo”, denuncia outro freguês do armazém da Linha 108, um dos principais locais de acesso à área Roosevelt.
“Está morrendo muita gente, moço, pois os índios não perdoam. Mas fora isso, há entendimento dos índios com a comunidade. Tanto que estamos sendo convidados para uma festa no final do mês. É só o senhor ver o cartaz na parede. O problema deles é com os garimpeiros, principalmente os que querem trabalhar para si próprios” disse um morador da região, enquanto bebia uma cerveja em lata a R$ 2,00.
Torneio de Arco e Flecha, mas só para festejar
No cartaz colado na parte externa do pequeno bar e armazém, havia até muita demonstração de cordialidade entre os índios e a comunidade: “A Associação Pamaré, do povo indígena Cinta Larga, convida você para uma grandiosa festa em nossa comunidade Roosevelt, que se realizará nos dias 31.08 e 01.09. Venha nos prestigiar com sua presença. Programação: 9h — início da festa; 13h — Torneio de Arco e Flecha; 19h — início do baile com a banda GM 2000. Prêmios: 1º lugar — troféu: 2º — medalha; domingo, continuação da festa: 12 h — Torneio de futebol de campo; Prêmios: 1º — R$ 400,00 e um troféu; 2º — R$ 200,00; 3º — R$ 100,00; 4º — R$ 50,00. Teremos bebidas e churrasco em geral“.
“O nosso relacionamento com os índios é bom. Meus filhos têm muitos amigos entre eles, já trabalharam juntos. Quem é amigo deles, está protegido”, garantiu D. Selma, montada num cavalo, na estrada de terra batida, ao contrário da maioria dos habitantes que preferem motos.”
“O cavalo não tem muita resistência nesta região”, explicou um agricultor que circulava com um carro de boi, com muito milho, e parou, a nosso pedido, para a conversa com D.Selma.