A ONU como serva na Babilônia: Annan, Vieira de Mello, a decadência e queda das Nações Unidas

A ONU como serva na Babilônia: Annan, Vieira de Mello, a decadência e queda das Nações Unidas

“É preciso ter cuidado”, disse o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, no fim de agosto, “para não confundir a ONU com o USA.” Se o secretário-geral houvesse seguido seu próprio conselho, talvez seu subordinado brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, não fosse destroçado tão sumariamente em Bagdá dois dias antes. Do jeito que as coisas vão, a ONU segue desempenhando o papel de serva que o USA necessita desesperadamente no Iraque, como cobertura política.

Seja qual for o grupo que enviou o caminhão bomba, decidiu que Vieira e seu chefe se comportavam de maneira tão descarada ao levar a ONU a servir de “folha de parreira” para a ocupação do Iraque pelo USA, que era necessário realizar uma ação espetacular para atrair a atenção sobre esse processo. E o homem da ONU, cuidadosamente selecionado pela Casa Branca, pagou com sua vida.

Para se ter uma idéia, ainda que rápida, do que tem sido a conversão da ONU em serviço pós-venda da principal potência do mundo, é preciso voltar a 1996, quando o USA decidiu que o predecessor de Annan como secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, devia ir-se.

Em uma agradável prefiguração da queixosa observação de Annan que citamos, Boutros-Ghali declarou aos principais executivos da política exterior de Clinton: “Por favor, permitam-me, de vez em quando, diferir publicamente da política do USA.” Mas, diferente de Annan, o fez destacando o severo contraste da preocupação ocidental pela Bósnia, cujo conflito descreveu como uma “guerra dos ricos”, com a indiferença ante o genocídio em Ruanda e as horrendas condições em todo Terceiro Mundo. Logo, em abril de 1996, foi longe demais ao insistir que se publicassem os resultados da investigação da ONU que implicava Israel no assassinato de algumas centenas de civis que se haviam abrigado em um campo de refugiados das Nações Unidas em Qana, no sul do Líbano.

Com uma minoria de um no Conselho de Segurança, o USA insistiu em impor seu veto de um segundo período de Boutros-Ghali. James Rubin, antigo porta-voz do Departamento de Estado, escreveu seu epitáfio no Financial Times: Boutros-Ghali era “incapaz de compreender a importância da cooperação com a principal potência do mundo.” Foi necessário outro especialista em política exterior da era Clinton para identificar o que constituía o atrativo de Annan para Washington. Richard Holbrooke reportou, mais adiante, que em 1995 havia um acordo de “dupla chave”, segundo o qual tanto Boutros-Ghali como o comandante da OTAN teriam que aprovar os bombardeios. Boutros-Ghali havia vetado todo bombardeio dos sérvios que não fosse o mais limitado, por temer parecer parcial. Porém, quando Boutros-Ghali estava de viagem, Annan ficava a cargo da chave da ONU. “Quando Kofi a usou”, declarou Holbrooke a Philip Gourevich, do New Yorker, “se converteu em secretário-geral em espera”. Houve, por certo, outro terrível serviço empreendido por Annan, no qual, por deferência ao desejo do USA de manter Sarajevo em primeiro plano, ocultou as advertências do general canadense Romeo Dallair de que iriam começar atrozes matanças em Ruanda.

A partir daí, incluindo os dias mais valorosos da ONU, sempre teve que reconhecer as realidades do poder, mas secretários-gerais da ONU, como Dag Hammarskjold e U Thant, eram homens de envergadura. Funcionários atuais da ONU, como Annan e o falecido Vieira, sabem perfeitamente que suas carreiras dependem do patrocínio ianque. Vieira foi um burocrata, jamais um político eleito, que jogou um papel decisivo no estabelecimento do sistema de protetorado da ONU em Kosovo.

E foi o beneficiário de uma complicada e instrutiva manobra na qual o USA queria livrar-se do inconveniente José Maurício Bustani, outro brasileiro, de seu posto como diretor-geral da Organização para Proibição de Armas Químicas (em inglês, OP CW), a organização que implementa a convenção de armas químicas.

Bustani não foi um instrumento do USA, porque insistiu em manter a independência da sua organização, e era admirado em todo o mundo por sua energia no intento de libertar o mundo de armas químicas.

Quando a UNSCOM (United Nations Special Commission) se retirou do Iraque em 1998, comprometida além de toda esperança e povoada de espiões, a OPCW pôde continuar verificando a destruição de armas massivas. O USA temia que Bustani pudesse convencer Saddam Hussein a assinar a convenção de armas químicas e aceitar inspeções da organização de Bustani, permitindo assim, a possibilidade de cálculos reais do arsenal do Iraque, o que poderia representar inconvenientes para o USA. O Brasil foi informado de que se apoiasse a destituição de Bustani seria recompensado com o respaldo do USA para o ascenso de Vieira ao posto de Alto Comissário da ONU dos Direitos Humanos, substituindo outro objeto de desaprovação do USA, Mary Robinson.

Vieira foi nomeado, como era de se esperar. Logo, ainda neste ano, o dedo imperial fez um gesto urgente para que fosse a Washington ser sabatinado por Condoleeza Rice. Vieira ficou bem colocado. Desesperada para conseguir fazer a cobertura da ONU no Iraque, a Casa Branca de Bush pressionou Annan para nomear Vieira de Mello como Enviado Especial da ONU no Iraque.

Vieira de Mello se instalou em Bagdá, onde, em cooperação com o pró-consul do USA, Paul Bremer, sua prioridade foi reunir um Conselho Governante títere de iraquianos, ao gosto da autoridade provisória da coalizão. O Conselho estava cheio de defraudadores tristemente célebres, como Ahmad Chalabi. Foi formado em 13 de julho. Nove dias mais tarde, Vieira de Mello se apresentou à ONU, em Nova Iorque, proclamando com toda seriedade: “Agora temos um corpo formal de importantes e distintas personalidades iraquianas, com credibilidade e autoridade com as quais podemos planejar o caminho a seguir. Agora entramos em uma nova etapa, que sucede ao vazio de poder que se seguiu depois da queda do regime anterior.”

Ainda que não tenha reconhecido formalmente o Conselho Governante, o Conselho de Segurança da ONU elogiou com entusiasmo esse sucesso. O Financial Times escreveu em um editorial de 19 de agosto: “Os amigos do USA, como a Índia, Turquia, Paquistão, incluindo a França, que se opuseram à guerra deveriam estar prontos para ajudar. Mas necessitam de cobertura da ONU.” Em Bagdá, um dia mais tarde, chegou a resposta mediante um caminhão-bomba. Dois dias depois, Kofi Annan refletiu sobre os perigos de se confundir a ONU e o USA.

Se falasse a sério, Annan deveria renunciar imediatamente, por ter feito mais que qualquer outro personagem vivente para identificar um com o outro. Mas, quem pode imaginar que o Waldheim da África fosse capaz de algo assim?

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