Placa clonada do carro de Ciro Farfán, então Comandante Nacional da Polícia boliviana
O delito de clonar placas de veículos roubados foi, desta vez, o ato criminoso que derivou na troca do Comandante Nacional da Polícia boliviana. O carro com placas clonadas estava nas mãos de um suboficial de policía e existe a séria suspeita de que o veículo é de propriedade do removido comandante Ciro Farfán.
Farfán foi empossado em 14 de março deste anocom a missão de “acabar com acorrupção na policía em 90 dias”. Em poucos dias no mandato, outro escândalo policial de grande magnitude sacudiu o governo, pois envolveu o general René Sanabria, então chefe do Departamento de Inteligência do Ministério de Governo, com uma quadrilha internacional de traficantes. O “capo” René Sanabria trabalhava nada menos que face a face com o ministro do governo e ex-ativista de direitos humanos, Sacha Llorenti.
O governo do “processo de mudança” vem prometendo uma reforma policial (assim como todos os governos) que nunca chega. Nesses últimos anos, Evo Morales e seu ministro não economizaram qualificativos sobre o “sacrificado trabalho policial” que “tem dado muito à população”, fixaram como objetivo criar a “polícia de mudança”. Mesmo assim, toda essa propaganda se desbarata cada vez que aparecem escândalos que envolvem essa questionada instituição do Estado.
Ainda que para todos seja evidente a crise estrutural da polícia, Evo Morales e Sacha Llorenti recorrem ao desgastado argumento da presença de “maus policiais” que sujam o prestígio da instituição. A realidade é muito diferente. A polícia boliviana está envolta em escândalos desde sempre. Extorsão, corrupção, associação com delinquentes, repressão, assassinatos extrajudiciais (na cidade de Santa Cruz) são parte da prática policial. Some-se a isso o trabalho repressivo de esmagar os protestos do movimento popular. Em sua defesa do velho Estado, sob ordens das mais altas autoridades políticas, a polícia colheu e colhe uma grande quantidade de mortos e feridos. Essa é a realidade passada e atual do “sacrificado trabalho policial”.
O próprio ministro de governo reconhece isso quando admite a existência de quadrilhas no interior da polícia (por exemplo, em torno da clonagem de placas). Evo Morales também, quando se refere à existência de todo um jargão policial-delinquencial para extorquir os cidadãos. O senador Isaac Ávalos disse, há cerca de dois meses, que a polícia “é uma vergonha nacional e internacional”, a ministra de Transparência e Luta Contra a Corrupção, Nardi Suxo, declarou, em 22 de maio, que “máfias” dentro da polícia, nas quais participam alguns “generais”, querem destituí-la e, inclusive, planejam contra sua vida. Os aqui citados são autoridades do governo que não podem ocultar o perigoso acionar da polícia e se contradizem, de vez em quando, com o argumento dos maus policiais.
Para que então essa argumentação? A velha cantilena de que o problema não é da instituição, mas de maus elementos foi utilizada por todos os defensores do velho Estado. É um argumento deliberado que busca esconder precisamente o caráter reacionário da polícia, que seu acionar generalizado contra a população é sua razão de existência, sua característica de reprodução. A existência de policiais “bons” ou “maus” é um elemento secundário. A prática corrupta e repressora da polícia é como marca de nascença e alcança, como vemos nas próprias declarações das autoridades políticas (e em tantas outras denúncias da população e dos próprios policiais) os mais altos escalões do Estado.
Na realidade, a pesada carga que a população suporta devido à prática policial é um aspecto da ditadura de classe do Estado e está inserida na lógica do sistema. O ingresso na polícia é regido por pagamentos em dinheiro. Os postulantes veem nisso um “investimento” a ser recuperado no futuro. Quando estão na polícia, pagam para serem enviados para unidades específicas (fronteira, aduanas, trâmites policiais). O “investimento” realizado será “recuperado” depois, à base de extorsões aos cidadãos. É assim todo o sistema (não apenas os “maus policiais”).
Os atos de corrupção e a repressão exercidos pela polícia revelam a forma como o velho Estado aplica sua ditadura sobre o povo, ditadura que recai como uma pesada carga sobre as costas do povo (fora os casos de morte e tortura), em particular contra os mais pobres, contra os que não têm nexos com o poder. Essa opressão sobre os mais pobres reflete seu caráter de classe.
O governo apresentou como “medida revolucionária” tirar da polícia a arrecadação de taxas por identificação pessoal e trâmites de licenças para passá-la a civis. Mas as instituições burocráticas do Estado atuam de maneira similar à polícia, basta ver o sistema judiciário para ter uma ideia de que é uma desgraça cair em suas dependências. O que se pode esperar com a arrecadação nas mãos de civis? Assim como na polícia, o ingresso na administração pública não está isento de propinas e, no “processo de mudança”, a compra-venda de avais assinados por altos políticos do MAS. A corrupção generalizada nessas instâncias inclusive “naturalizou” certos pagamentos que as pessoas são coagidas a fazer sem que haja nenhuma obrigação legal.
As reformas do governo de Evo não tocaram nessa essência. Teriam que acabar com o próprio sistema se quisessem fazer isso. Mas o “processo de mudança” não aponta a transformar o sistema, mas a reestruturar o velho Estado e tirá-lo de sua crise através de reformas aparentemente benéficas para a população. Todo o processo reformista se move dentro da dinâmica da velha sociedade e logo abandona seu retórico combate aos “males” dessa sociedade. O ministro de Governo, por exemplo, usou o argumento reacionário de que “por trás de todo corrupto há um corruptor”. Em outras palavras, os funcionários corruptos são vítimas da população. Isso é colocar a vítima como vitimador. De suposto defensor da população ante os abusos do Estado quando era presidente da Assembleia de Direitos Humanos, Llorenti passou a ser o mais fiel defensor da velha ordem. Todo seu trabalho está voltado agora a relativizar a responsabilidade do Estado (na personificação de seus funcionários) e empurrar a responsabilidade a toda a sociedade.
Há alguns anos, quando se preparava o processo de julgamento de responsabilidades nos crimes de outubro de 2003, ocorrido durante o governo Sánchez de Lozada, o ativista de “direitos humanos” Sacha Llorenti destacava a necessária individualização dos principais responsáveis pelas matanças porque, segundo ele, “culpar a todos leva a não culpar ninguém”. Hoje, Llorenti usa essa estratégia para livrar o Estado das responsabilidades.