A dinâmica política na Bolívia entrou numa espiral perversa, na qual vale tudo na luta entre frações exploradoras como a latifundiária e agroexportadora (compradora), assim como a burocrática e manipuladora do movimento sindical, que se encontram em uma guerra sem quartel para definir qual delas estabelece hegemonia política e econômica.
Os fatos indicam que o governo Evo Morales parece assentar-se cada vez mais no poder. Para isso não pensa duas vezes ao enviar para as ruas os camponeses e movimentos de bairro de El Alto, dada a cooptação dos dirigentes destes setores sociais, através da oferta de cargos executivos dentro do aparato governamental, ou empregos, aqueles que são regateados sem nenhuma vergonha nas portas de muitas entidades governamentais.
Desde maio, os latifundiários e agroexportadores, aglutinados no chamado Conselho Nacional Democrático (Conalde), ou Meia Lua, tentaram bloquear e romper a possibilidade da hegemonia por parte dos aliados de Evo Morales. Para isso convocaram uma série de referendos departamentais para aprovar os estatutos autonômicos de cada um dos departamentos (estados) da chamada Meia Lua (no oriente boliviano: Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija). Tanto a elaboração dos estatutos autonômicos como a convocação dos referendos, bem como também os processos de sufrágio, não estavam avalizados pelas leis, nem pela instância máxima encarregada dos processos eleitorais na Bolívia: a Corte Nacional Eleitoral. Curiosamente, essas medidas eram apoiadas pelas cortes departamentais eleitorais, o que demonstra o grau de fragmentação da institucionalidade estatal na Bolívia.
A estas medidas do Conalde se somou a eleição de prefeito (governador) no departamento de Chuquisaca, instância que se encontrava acéfala, uma vez que o prefeito anterior fugiu do país e se exilou no Peru, por temer a ação tanto do governo como do Comitê Interinstitucional de Chuquisaca1.
A prefeita eleita para o departamento de Chuquisaca, em junho deste ano, foi a senhora Savina Cuéllar, mujer de polleras2 que até o ano passado era uma representante do partido do governo e que supostamente em defesa da capitalia plena, subitamente passou para o lado da Meia Lua.
O governo, a fim de romper a arremetida dos representantes da Meia Lua, conseguiu a convocação de um referendo nacional para ratificar ou revogar o presidente, vice-presidente e prefeitos dos 9 departamentos — com a paradoxal ajuda de seu rival e força opositora no Congresso do grupamento cidadão Poder Democrático e Social (Podemos). Ao que parece, a inédita aliança entre Podemos e o Movimento ao Socialismo (MAS) de Evo Morales, se sustentou porque o Podemos observava que perdia protagonismo e importância na cena política nacional. Esta medida estava destinada a recuperar posições perdidas frente à Meia Lua.
O processo de referendo foi questionado pela Meia Lua, que se valeu de alguns funcionários aliados na Corte Suprema da República e o único membro do Tribunal Constitucional3, que emitiu uma série de decretos invalidando o processo do referendo revogatório. Esta decisão foi ignorada pelo Executivo, algo muito normal em países como a Bolívia, onde a chamada interdependência dos poderes é apenas retórica e o poder executivo consegue impor suas decisões aos demais poderes do Estado.
Os resultados do referendo favoreceram enormemente a Evo Morales, que foi ratificado com 67% do eleitorado4. Não obteve a maioria de votos em três departamentos: Santa Cruz, Beni e Tarija. Neste último departamento a votação que ratificava a presidência de Evo estava muito próxima dos 50% de aprovação. Por outro lado, os resultados do referendo foram contundentes em manifestar que todas as zonas rurais da Bolívia votaram para ratificar a gestão de Evo Morales, enquanto o apoio global que tem nas cidades — ainda que seja maior que 50% — seja menor que no campo. Isso pode ser uma evidência da existência de uma polaridade entre campo e cidade, somada à tensão entre os departamentos do ocidente e do oriente do país, assim como da fração latifundiária e agro-exportadora com a fração burocrática da burguesia boliviana.
O referendo revogatório também permitiu a Evo Morales se desfazer de dois de seu opositores no ocidente do país: os prefeitos de La Paz (José Luis Paredes) e de Cochabamba (Manfred Reyes Villa), que não faziam parte do Conalde, nem apoiavam abertamente a Meia Lua, mas eram adversários de Evo. Estes prefeitos foram revogados com a ajuda de uma agressiva campanha e mobilização de todos os setores sociais aliados ao MAS em La Paz e Cochabamba, tanto no campo como na cidade.
Uma vez culminado o processo do referendo revogatório, em 10 de agosto deste ano, o MAS expressou a intenção de submeter o projeto de Constituição aprovado de maneira polêmica pela Assembléia Constituinte, na cidade de Oruro, quando a sede era a cidade de Sucre, apesar da férrea oposição tanto do Podemos quanto da Meia Lua.
Antes de entrar em confronto — o que vem sendo uma pauta de comportamento quase cotidiana entre estas forças na Bolívia — apelaram para a possibilidade de um diálogo que não durou nem dois dias, com ambas as partes denunciando a impossibilidade de um acordo e acusando-se mutuamente pelo fracasso em buscar a negociação concertada como mecanismo que permita superar a disputa entre burocratas e latifundiários-agroexportadores.
No início de setembro, a Meia Lua iniciou uma série de bloqueios, tomadas de instalações de repartições estatais, como o Instituto Nacional de Reforma Agrária, o Serviço de Impostos, os escritórios do canal de televisão estatal e empresas estatais, além de incêndios provocados nas casas de dirigentes camponeses ligados ao MAS. Em Villamontes, no departamento de Tarija, houve a tomada e explosão dos gasodutos. Houve bloqueios de estradas em vários pontos do país e a tomada de aeroportos em Santa Cruz, Cobija (Pando) e Riberalta (Beni). Em Santa Cruz e diferentes pontos deste departamento também foi registrada uma série de medidas de força da Meia Lua, no afã desesperado de reverter a posição vantajosa que o governo ostentava, uma vez culminado o referendo de 10 de agosto. Um papel protagônico foi assumido por grupos juvenis aliados da Meia Lua, como a União Juvenil Cruceñista, mesmo tendo pela dianteira uma força juvenil aliada do MAS, que é sua força de choque em Santa Cruz e que tem como sede um bairro pobre da cidade cruzenha de Plan Tres Mil.
O governo do MAS não utilizou as forças armadas e forças policiais para restabelecer a ordem em todo o país e, como costuma atuar nestes casos, recorreu a seus setores sociais aliados, para que também bloqueassem diversos pontos do país, prejudicando os negócios de muitos membros da Meia Lua, propiciando uma ampla mobilização dos setores sociais de camponeses, indígenas e jovens em vários pontos do país.
Alguns dos aliados do MAS no departamento de Pando se apressaram a tomar medidas contra o boicote das forças da Meia Lua nesse departamento, quando foram emboscados por um corpo paramilitar afim ao prefeito de Pando, que assassinou cerca de vinte pessoas (algumas fontes falam em mais de trinta).
Este massacre de indígenas demonstra, uma vez mais, como o MAS utiliza as massas camponesas e indígenas que mobiliza como carne de canhão, açula e logo abandona o enfrentamento contra os bandos fascistas da Meia Lua, acostumados a aplicar a velha metodologia que utilizavam quando estiveram no governo. O massacre de Pando se soma à manipulação que fizeram com os camponeses em humilhação na cidade de Sucre no último 24 de maio. Assim como os enfrentamentos entre camponeses e jovens citadinos em 11 de janeiro em Cochabamba.
O governo do MAS, utilizando seus aliados das organizações não governamentais (ONGs) de direitos humanos e outras, tem empreendido uma arremetida midiática, desprestigiando moral e politicamente os fascistas da Meia Lua frente a comunidade internacional. Um fato que rendeu muitos bons resultados foi o estabelecimento do Estado de Sítio em Pando e a ordem de prisão contra o prefeito do mesmo departamento, Leopoldo Fernández, ordenando que fosse detido na cidade de La Paz, onde tem melhor controle da situação. Também empreendeu uma série de intervenções do exército e da polícia, com detenções em todos os departamentos da Meia Lua, especialmente em Santa Cruz, Tarija e Pando. Neste último, que é vizinho do Brasil, há perseguição de centenas de pessoas que optaram pelo refúgio em Brasiléia, estado do Acre.
Em meio a essa campanha do governo contra os membros da Meia Lua — em particular usando o massacre de Pando, e ainda conseguindo que em nível internacional a União de Países da América do Sul (Unasul) preste apoio a seu governo e a necessidade de esclarecer o referido massacre —, sem nenhuma vergonha, o governo nomeia um militar como prefeito interino de Pando e inicia um diálogo com os membros da Meia Lua na cidade de Cochabamba. Tal diálogo durou perto de duas semanas, sendo interrompido sem que houvesse acordo entre o MAS e a Meia Lua, como já havia ocorrido nas duas primeiras tentativas de diálogo, mesmo que neste último houvesse a presença de observadores da Unasul.
O MAS insiste em sua intenção de submeter a referendo o projeto constitucional. Para isso, pressiona senadores e deputados com a mobilização de seus setores sociais aliados, ameaçando efetuar um cerco ao Congresso a partir de 13 de outubro. Por outro lado, a fim de mudar a correlação de forças dentro do congresso, a intenção do MAS é adiantar as eleições gerais para junho de 2009, para eleger novamente o presidente, vice-presidente, senadores, deputados e prefeitos. Os fatos demonstram que o MAS de Evo tirou certa vantagem dos acontecimentos, ainda que não esteja longe a reação da Meia Lua, como tem sido a dinâmica dos últimos anos na Bolívia.
Enquanto isso, o povo boliviano sofre os embates de uma alta desmedida de preços, escassez de alimentos e combustíveis, aos quais não pode contestar de forma contundente, uma vez que ainda não se desvencilhou da manipulação semeada pelo MAS nos setores sociais, cujos dirigentes foram cooptados com cargos, empregos, dinheiro e um discurso demagógico-populista que promete mudança social cada vez mais longínquo e evidentemente inverossímil.
Maquiavel, em O príncipe já falava da separação entre a política e a moral. Não resta dúvida de que a inserção da política do vale tudo no cenário da confrontação boliviana é uma mostra da instrumentalização de toda a situação social para alcançar certos fins, inclusive a coisificação da vida de jovens, camponeses e indígenas que são cooptados tanto pelo MAS como pela Meia Lua.
1 Instância cívica cujo objetivo é recuperar a capitalia plena da cidade de Sucre, porque apenas na Bolívia — comparando com os demais países da América do Sul — existe uma capital que não é, ao mesmo tempo, a sede do governo do país.
2 Mujer de polleras são denominadas as mulheres com indumentárias tradicionais, que as ligam à uma identidade étnica.
3 Algum tempo antes o tribunal Constitucional foi dizimado pela ação do MAS, que deixou esta instituição com apenas um membro.
4 O número do eleitorado boliviano chega a 4 milhões de votantes. Como comparação, o Brasil tem aproximadamente 128 milhões de eleitores.