Às quartas e sextas-feiras pela manhã, sempre antes das 8h, um médico, que se tornou famoso como craque de futebol, percorre enfermarias e ambulatórios do Hospital Pinel, em Botafogo, convidando pacientes e internos do Lar Abrigado para a prática de esportes num dos campos da Escola de Educação Física da UFRJ, ao lado da instituição. Minutos depois, o campo está cheio. Participam, também, os pacientes que vêm ao hospital apenas para receber medicamentos, e hoje, residem em suas casas. E quem não quiser jogar vem assistir a “pelada”, torcer, ler uma obra, qualquer coisa que lhe permita ficar bem à vontade.
E o doutor Afonso Reis, 55 anos, um veterano de grandes times do país, autoriza o início do jogo.
Ah! Lógico, as partidas também são arbitradas por ele. Por quê? Terapia. Planejada, dirigida e acompanhada por quem introduziu essa modalidade de esporte como complemento do trabalho psiquiátrico. Bom ou ruim de bola, todos podem entrar em campo. Faz-se uma eqüitativa distribuição dos “atletas” para evitar disparidades — que poderiam, por exemplo, resultar numa desagradável goleada contra um dos times. Sim, porque o trabalho do doutor Afonso não se prende ao futebol. Tampouco porque ele foi um astro nessa modalidade, ou que esse esporte, de custo mais acessível, seja, também, o preferido entre os jovens no Brasil. Importa, isto sim, a intervenção nos problemas somáticos, psíquicos ou psicossomáticos, nos sintomas e nas suas causas, com o fim de obter o restabelecimento da saúde, na mais completa acepção da palavra.
Obedecidos os critérios de toda ordem — considerando quem tem melhor ou pior equilíbrio orgânico, as características estruturais e funcionais de cada paciente, com os limites normais e dinâmicos para a forma particular de vida e de sua profissão — que atenda às necessidades de disposição de um trabalhador intelectual, um técnico, um trabalhador da frente da produção, um atleta e… adeus colônia.
“É isso mesmo: um trabalho de esporte, recreação e lazer como auxílio e complemento do tratamento psiquiátrico — complemento que realizamos há quase cinco anos. É uma das atividades do Lar Abrigado, forma atual de abordagem do tratamento psiquiátrico. Um aspecto da luta antimanicomial, que visa combater a exclusão e até mesmo o estigma lançado contra os usuários dos serviços de saúde mental. Dentro do próprio instituto, existem projetos interessantes e bastante destacados, como a TV Pinel”.
Resposta imediata
Não se trata de descobrir a pólvora, diz Afonso Celso, referindo-se à proposta de oferecer atividades físicas e afins, pois, as chamadas “peladas” fazem parte de qualquer grupo social e em locais de moradia, trabalho, escola, etc.
“No caso, chamam atenção as manifestações que dizem respeito à relação direta e imediata com o próprio corpo e seus contornos, muitas vezes vencida pela apatia face à doença, que, freqüentemente, provoca traumatismos, seqüelas e limitações tão comumente associados”.
Também o contato direto com os limites das suas capacidades físicas, então desconhecidos em função da inatividade, às vezes bastante prolongada, trazem profundas e profícuas modificações. Existem referências constantes, tais como “não sei há quantos anos não metia o pé na bola”. Mesmo em casos de usuários que tinham prática constante de atividade esportiva, um dia interrompida por doença ou mesmo por necessidade de assumir responsabilidades de família, trabalho, etc.
No seguimento do trabalho, observa-se a liberação provocada pelo envolvimento com o jogo em si. Neste caso, dois fatores chamam a atenção: o cuidado que se deve ter, especialmente com os primeiros dias de atividade para que não ocorram acidentes por desconhecimento dos limites físicos, aliados às condições médicas do paciente.
De outro lado, surge a boa surpresa, para o médico e para o próprio cliente, que é a liberação emocional provocada pelo envolvimento com o jogo em si, que afasta a tensão característica da própria doença, permitindo maior doação aos diferentes movimentos e ritmos impostos pelas diversas atividades. Além da atuação conjunta e de oposição (entre a equipe e na relação com a equipe adversária), que evolui da impassibilidade ou da irritabilidade para uma incrível dinâmica de inteligência, mobilidade, bom humor.
“O jogo em si mobiliza a atividade psicológica, porque o paciente procura executar a melhor jogada, correr, se colocar melhor, marcar certo, respeitar o adversário, as regras do jogo. Estabelecer um parâmetro, até para sentir como está. Se mais agitado ou mais calmo, se está dormindo menos ou mais e melhor, cientificando o médico de forma mais animadora e precisa. O futebol mexe com tudo. É realmente fantástico, sob todos os pontos de vista”, afirma o ex-craque.
Benefícios mais importantes
No programa desenvolvido no Instituto Philippe Pinel (IPP-RJ), as atividades são inteiramente abertas aos parentes, amigos, pessoas das mesmas localidades. Independente de sexo, idade.
“As adaptações simples às regras do jogo tornam possível a convivência social ampla, fundamental para os pacientes — quando afastado o estigma que normalmente persegue os usuários dos serviços de saúde mental”, explica o doutor Afonso Celso.
A tradicional festa de confraternização de final de ano, realizada no dia 18 de dezembro, foi um encontro de pessoas que não revelavam qualquer indício de estar sob cuidados médicos. “A presença de alunos da rede pública, como acontece às quartas-feiras, valorizou a festa de confraternização. Esse é outro lado importantíssimo do trabalho, pois, faz as crianças sentirem que podem conviver com usuários dos serviços de saúde mental, sem qualquer discriminação”.
É apenas o começo
“Esse trabalho pode ser desenvolvido em meio à prática especializada de outros esportes, como basquete, vôlei, natação. Mas, precisamos de mais recursos, de pessoal especializado em educação física, de tratamento psiquiátrico. É um mundo que se abre, que precisa ser incentivado. Tanto mais que, para isso, existem quadras, piscinas, campos à nossa disposição. Está mais do que provado que vale investir neste trabalho”, afirma categórico.
Mas, como o atual sistema de governo padece de dores terríveis sempre que medidas inovadoras surgem para resolver os problemas do povo, gente como Afonsinho vai implantando e, seguidamente, superando os seus próprios métodos. Ele, por exemplo, no seu automóvel, transporta equipamentos para a prática de vários esportes. No local de trabalho é professor, jogador, árbitro, médico para atendimento de contusões e… roupeiro.
Afinal, o que pretende Afonsinho? Mete-se em áreas que não lhe dizem respeito, inventa terapias, cura pelo futebol… O que pensa ser? Simplesmente, ele tem certeza de que é médico. E exerce a medicina, somada a outras oportunidades que teve.
Afonso Celso tem feito pesquisas no exterior, como aconteceu há dois meses, na visita que fez à Holanda e Suíça, onde visitou hospitais para intercambiar experiências. Mas, não conheceu qualquer atividade sistematizada, idêntica à que realiza há quase cinco anos, a convite dos colegas Onildo e Gina Ferreira, na área da psiquiatria e psicologia.
“Eu e o Onildo conversávamos muito sobre a idéia, há anos. Até que ele deixou a direção da Colônia Juliano Moreira, veio para o Pinel e, sabendo que eu era médico lotado no serviço público, me chamou. Ele e a Gina são duas cabeças extraordinárias”, considerou.
Ajuda aos alcoólicos
Os benefícios da introdução do esporte como terapia têm sido enormes, também, na ajuda de usuários da UTA — Unidade de Tratamento de Alcoólicos, através de uma resposta direta, muito eficaz, com a possibilidade de prática de atividade física. Do mesmo modo para alguns outros tipos de intoxicação. Demais fatores devem ser considerados, como o favorecimento da metabolização dos medicamentos pelo aumento da atividade corporal, afastamento da rotina de cafezinho, do cigarro, comuns aos internos, bem como a troca do desgaste emocional da convivência intramuros, pela relação freqüente com o ambiente aberto e iluminado.
“Esse trabalho é altamente gratificante. Tanto quanto a programação desenvolvida com as crianças negligenciadas, em localidades empobrecidas e nas escolas, que realizamos com os companheiros, como o Nei Conceição e o Osvaldo Vovô, há mais de dez anos. É uma troca bem equilibrada. Eu me sinto útil e gratificado. Isso me completa. Continuamos realizando o sonho da atividade esportiva como função social, instrução pública e saúde integral. Para isso, precisamos de espaço. É inadmissível não haver atividade esportiva e sistematizada para as crianças, associada à instrução pública e à saúde orgânica e mental. Evidentemente, assegurando o vínculo da criança e do adolescente com a família. É o nosso sonho. Até para ajudarmos a criar um Brasil novo, sem esse caos”, concluiu Afonsinho, um batalhador incansável onde quer que atue.
Daí se origina o seu talento. Sendo médico clínico ou, a exemplo do que foi no passado, um ídolo em outros campos — aquelas superfícies verdes em estádios repletos de espectadores que admiravam um Afonsinho atleta, artista, exímio e honrado desportista. Também pioneiro na conquista do passe livre como jogador de futebol, em 1971, depois de brigar na Justiça contra o Botafogo. Conquista que, hoje, ainda depende de aprovação pelo Congresso Nacional de uma Medida Provisória, acabando definitivamente com a escravidão do jogador de futebol no Brasil.
Pacientes são avalistas
Almir Carronzin, 55 anos de idade — há onze anos em tratamento —, residente do Lar Abrigado, diz orgulhoso que trabalha, estuda, pratica futebol, vôlei e freqüenta praias.
“Vim para o Lar Abrigado há dois anos e meio e já encontrei o professor Afonsinho. Foi quando comecei a participar das peladas sob seu comando. A partir daí, passei a me sentir melhor, muito animado, feliz mesmo. É que pude sentir o verdadeiro milagre que faz a prática de esporte. Hoje, posso dizer que me sinto muito bem, inclusive agarrando no gol (e bem). Posição que o professor me incentivou para jogar”, conclui.
O testemunho de Almir não deixa dúvida quanto à influência altamente positiva e recuperadora do esporte na área da psiquiatria. Almir, o “goleirão das nossas peladas”, conforme Afonsinho o chama, tem vida normal, embora continue sob acompanhamento dos médicos.
“Estou fazendo a segunda série do primeiro grau, trabalho numa barraca em Botafogo, vendendo CDs e livros, vou à praia e nado na piscina do hospital. Também bato um voleizinho. Tudo melhorou depois que aceitei o convite do professor. O futebol é maravilhoso, também, como terapia. Muito bom mesmo”, disse Almir.
Outro testemunho igualmente importante e emocionante, é o do advogado Édson Santana, 51 anos de idade, o “Gamarra” das peladas das quartas e sextas-feiras e ex-usuário da UTA.
“Não sei o que seria da minha vida se não fosse o futebol, principalmente na fase de recuperação. Fiquei sem jogar uns dez anos e tive a oportunidade de voltar com o professor Afonsinho. Quebrar esse jejum foi sensacional. Ajudou demais. No início, dava um chute e levava um tombo. Ao mesmo tempo, sentia que faltava algo que acelerasse o trabalho dos médicos para me recuperar. Com o tempo, tudo foi melhorando, inclusive a minha participação dentro de campo. Fiquei fininho, corado, correndo bem”, brinca Édson.
Separado de uma mulher com quem viveu muitos anos, Édson mora com uma irmã e garante não sentir-se totalmente feliz, porque não consegue aceitar tanta injustiça contra o povo. Principalmente o mais humilde: “Exatamente como dizia Jorge Amado, ‘a elite brasileira é a mais perversa do mundo’. Já viu como sobra comida nas mesas dos ricos e falta nas dos pobres? Não fosse isso, eu estaria me sentindo felicíssimo da vida”, garantiu.