A privatização do Estado

A privatização do Estado

Aqui, as situações descritas têm como fonte funcionários públicos estupefatos ante o disparatado e a afronta ao “bom senso”. Acrescente-se ainda a sonegação de informações para a sociedade e as suas aflitivas posições, pois estão bloqueadas sem terem ouvidas as suas experiências e não podendo, nem mesmo, se manifestar ou aparecer, devido ao intenso patrulhamento nos órgãos públicos.

Há no Brasil um grupo de oportunistas se locupletando com recursos governamentais, paralelamente à estrutura oficial, entidades particulares assumindo funções de governo para abocanhar a grossa fatia dos impostos (participação público privada) ou existe mesmo uma estrutura administrativa envolvendo todos os setores importantes da administração como um governo de ocupação disfarçado?

Ao que parece, a última avalanche começou com a proposta de reforma do Estado, há cerca de dez anos. Houve uma mudança total nos ministérios e surgiu o tão divulgado Plano de Aposentadoria Voluntária (!?). A desculpa era a de diminuir os gastos do governo, mas na realidade, afastaram os experientes, os antigos, aqueles que passaram a vida dedicada ao trabalho no Serviço Público e que nele ingressaram por concurso integrando a sua existência com a atividade estatal. Livraram-se do pessoal especializado da saúde, da educação, da previdência para, passo seguinte, pôr um fim na estabilidade do funcionário público.

Foram, então, criados os cursos de capacitação para servidores, na área federal. A aparência era inatacável: vamos treinar os nossos funcionários mas (vejam só!)… nos Estados Unidos!!! Ainda por cima todo o treinamento em inglês, esquecendo até a Constituição: “o idioma oficial da República Federativa do Brasil é a língua portuguesa. Art 13”. Mas, fazia tempo, Brasília só entende algo quando vem escrito em inglês. Por outro lado, evidente que também não se tratava de realizar treinamento do funcionalismo em geral.

Como fizeram? Escolheram dois técnicos de cada ministério, de preferência na área de gestão e planejamento. Reuniram oriundos da saúde, política, educação, previdência, trabalho, etc. Foram grupos de 50 (cinqüenta) técnicos que, de três em três meses, iam para Washington. Tudo coordenado, diretamente, pela Casa Civil da Presidência da República.

Conteúdo?

Cursos de “gestão pública”, “planejamento estratégico”, elaboração, acompanhamento e avaliação de projetos. Todos eles, ministrados no idioma da metrópole, com carga horária de 12 (doze) horas diárias para que os participantes, ao retornarem ao, atuassem como “multiplicadores”. Na ENAP — Escola Nacional de Administração Publica, o curso foi e, ainda é, multiplicado para estados e municípios, com o mesmo conteúdo e a mesma carga horária.

Os cursos eram autoritários e de nítida doutrinação, gravados, televisionados. Não se admitia nenhum questionamento, simples perguntas que fossem. A vigilância era total. Todas as salas eram sempre filmadas.

A orientação geral era de focalização das políticas públicas, ou seja, permitir apenas projetos “focais” e fugir de toda universalização em qualquer tipo de atendimento. Uma doutrinação intensa para irresponsabilizar o papel do Estado passando a sua atuação a limitar-se, apenas, em fiscalização e controle.

Com isto, abriram campo e estimularam que as ONGs (as chamadas organizações não-governamentais) passassem a realizar as políticas públicas. Em conseqüência, aparecem transferências diretas sem licitação pela União, “ao terceiro setor”, em 2003 de quase R$ 1,3 bilhões. No último ano do governo Cardoso, algumas ONGs receberam R$1,4 bilhões e estados R$ 2,4 bilhões em repasses. Os ministérios que mais fizeram transferências em 2003, foram o da Saúde e o da Educação (251 milhões e 138 milhões respectivamente). Diante do achatamento salarial dos servidores, há muitos anos sem receber aumentos, tais “cursos” de aperfeiçoamento vêm a calhar, pois os transformam em “consultores” que podem ser assalariados pelas ONGs, direta ou indiretamente, por pagamentos para elaboração de “projetos”.

Durante o curso no exterior formavam-se equipes de cinco ou seis pessoas, obrigadas a apresentar uma monografia, na orientação do curso e sobre atividades li gadas ao seu trabalho. Havia uma idéia fixa em não universalizar, e a preocupação em apenas demonstrar que existia atuação, sem contudo resolver, realmente, o problema de toda a população.

Assim, se havia um trabalho na saúde, por exemplo, e o projeto do estudo mostrava um milhão de vulneráveis que deveriam ser beneficiados, o projeto abordava apenas cerca de cem mil, talvez os mais afetados ou com indicação política.

Ao que parece, tratava-se, apenas, de manter um nível “suportável” do problema.

Estes cursos e projetos sempre são financiados em dólar, mais uma contribuição para aumentar nossa dívida.

Olhem o absurdo: aumentamos a dívida para financiar cursos sobre administração pública do Brasil, em Estados estrangeiros! E em que Estados? A quem interessa isto? Será que aos brasileiros? E que propósito! O que acontecia?

Depois dos cursos, feitos no exterior, os participantes viraram consultores e seu órgão de origem no ministério passava a contratar consultorias e a utilizar, cada vez menos os técnicos do quadro ministerial.

Quanto custa um projeto que recebe o apelido de “avaliação e acompanhamento”?

Como definem os itens que merecem ser avaliados?

Buscam aquilo que é realmente do interesse nacional ou se limitam a papaguear e a repetir o que é imposto pelo exterior?

Há muitos projetos de planejamento estratégico rolando há um bom tempo, alimentando consultorias, consumindo financiamentos em dólar sem apresentarem um único produto de interesse nacional. Com uma aparência inatacável para enganar a opinião pública, o Fundo Monetário Internacional FMI e o Banco Mundial BIRD sempre condicionavam a liberação de pedidos de empréstimos para o Brasil. Declaram que o Brasil precisa desenvolver programas sociais, mas eles são incrementados pelos “gestores” treinados no exterior e por consultorias estranhas que mostram, na prática, um processo de bloqueio do crescimento necessário de tudo o que poderia se chamar projeto.

O pessoal dos ministérios verifica que:

  • Não pode ampliar metas;
  • Não pode contratar pessoal;
  • Não pode ampliar per capta;
  • Não pode aumentar o alcance social;

Mas…

  • Pode contratar consultoria caríssima;
  • Pode contratar pesquisas (terceirizadas);
  • E fazer financiamento em moeda estrangeira à vontade

— Vamos aumentar a dívida!

Pasmem, brasileiros! Uma vez por mês, vêm funcionários do exterior. Questionam tudo e nem ao menos falam português.

Os estrangeiros chegam, são funcionários do BIRD ou de outros órgãos internacionais. E os brasileiros dos ministérios não podem senão abaixar a cabeça para eles. Isto é um absurdo. Nós sabemos mais que eles. Afinal de contas é o Brasil em vivemos e trabalhamos, mas não temos o poder de operar. Tudo vem da Casa Civil, pela coordenação de políticas públicas. A realidade gritante de hoje é a que ficou muito pouco servidor público de qualidade (aposentaram ou estão encostados). Estão contratando, por serviços prestados — burlando a lei que obriga o concurso público —, as consultorias a peso de ouro. Quase sempre os contratados por serviços prestados são muito inexperientes sem força e sem afinidade para qualquer objeção ao absurdo que apareça e as consultorias estão dominadas pelos “treinados” no exterior.

O quadro do serviço público foi esvaziado e desrespeitado.

Antes, para ocupar um cargo num ministério era exigido um perfil profissional e uma história de experiência no setor. Agora, qualquer menino, com indicação política, assume atividade sem ter nenhuma competência e vai se submetendo aos gritos, à imposição dos “gestores” adestrados fora. Então, o que acontece? Suas atuações dirigem-se para as intermediações com as ONGS, são criadas comissões, entrelaçamentos e participações nas organizações, relegando os funcionários experientes e sérios, de preferência.

Cabe neste instante a pergunta: Por que os brasileiros aceitam essa situação de subserviência, submissão e mesmo traição nacional?

No século XX o dinheiro deixou de ser a representação de riqueza para tornar-se a própia riqueza. O sucesso é o objetivo delineado na mente de todas as pessoas.

Porém, que sucesso? Assim, há uma intensa divulgação abertamente colonial sobre a hipotética necessidade do inglês como promoção social, status. Na realidade, mais um aspecto da consolidação do domínio cultural espúrio, da política de submissão nacional. Criam-se ilusões de nacionalidade e as exploram — o funcionário deve fazer curso no exterior. Há uma supervalorização do treinamento (lavagem cerebral), travestido em curso “superior”.

Como os salários dos servidores estão achatados, há uma desesperada busca por conseguir algo que amplie, ou equilibre, a renda. Chega, então, o aceno de que, com o seu curso no exterior, poderá desenvolver projetos com organizações não governamentais, pagos pela elaboração e durante o acompanhamento, além de ser aquinhoado com funções altamente gratificadas — ainda que nada gratificantes do ponto de vista moral.

Além disso, como consultores, há sempre chances de excelentes retribuições pelas “opiniões” emitidas ou omitidas.

Pronto, o atoleimado funcionário ficou preso ao sistema. Está aí estruturada uma maneira de ganhar dinheiro. Esta é a a forma de enriquecer que permitem ao funcionário. O funcionário que caiu na malha deste esquema não permitirá que nada o modifique. É a sua maneira de sobreviver, de ganhar dinheiro.

Nessa situação, não há valores, não há ética, não há objetivos sociais e desaparece o funcionário que cuida dos interesses nacionais. Nós não podemos permitir tanta corrupção! Alerta!


Rui Nogueira é médico e escritor
End. eletrônico: [email protected]
Portal: www.nacaodosol.org
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