A questão básica

A questão básica

Só há uma questão básica que tem de ser resolvida pelos brasileiros com absoluta urgência. Desta todas as outras dependem: o poder está sendo exercido ilegalmente por pessoas cujos interesses estão fora do país e não têm legitimidade. De fato, a Constituição determina:

1 o Brasil é um país soberano (o que é negado diariamente nas atitudes do “poder público”);

2 a política econômica é da competência do Poder Executivo, com a participação do Poder Legislativo.

Um e outro desses Poderes limita-se a passivamente assentir no que o presidente do Banco Central e sua diretoria decidem, a seu bel-prazer, sobre assuntos vitais, como o nível das taxas de juros e a emissão de títulos de dívida pública. O endividamento segue crescendo, apesar do Tesouro Nacional ter mais de R$ 150 bilhões em caixa.

Essas práticas vêm de Executivos anteriores, e a elas a sociedade já deveria ter dado um basta há muito tempo. Como não o fez, tem de fazê-lo agora, mesmo porque a situação não cessa de se agravar.1 O presidente da República reitera, quase que diariamente, sua aprovação à política econômica aplicada pelos detentores ilegais do poder, os quais têm vínculos notórios com as finanças estrangeiras. A prova desses vínculos está na evidência dos prejuízos assombrosos que os atos da política econômica causam ao país.

Essa é, no essencial, a mesma de seu deplorável predecessor, a qual:

1 alienou graciosa e criminosamente o patrimônio do país;

2 facilita a extração dos recursos nacionais em proveito de oligarquias estrangeiras;

3 faz alastrar o desemprego e a miséria, à razão de quase dois milhões de pessoas por ano.

A violência, a desordem e a corrupção galopantes são algumas das manifestações de um processo a que o “governo” assiste como se o assunto não lhe dissesse respeito.

Para entender melhor a urgência do basta que tem de ser dado, analisei estatísticas oficiais e confirmei a degradação acelerada que se vê a cada instante na vida diária. Tomei o produto interno bruto (PIB) do Brasil, em dólares, ao câmbio médio de cada ano, de 1947 a 2003, corrigindo-os pelo índice de preços ao consumidor dos EUA. Calculei também o PIB por habitante em dólares de 2003. A análise mostra o desastre causado pelo modelo econômico e pela estrutura por ele formada, na qual as empresas estrangeiras dominam a produção e os mercados no país.

Em relação ao índice 100 em 1978,o valor verificado para a média 2002/2003 é 55,
ou seja, o PIB por habitante, em dólares, caiu 45 pontos percentuais.2 Esse é o resultado dos últimos 24 anos, nos quais as crises se têm repetido a intervalos cada vez menores e com intensidade cada vez maior.

O modelo leva à transferência dos recursos nacionais para o exterior. Sua implantação começou, em profundidade, a partir de 1954. Em menos de 20 anos, já no início dos anos 70, a estrutura econômica havia mudado: as empresas transnacionais tinham passado a controlar os principais mercados industriais. Disso provém a derrocada econômica e social a partir do final dos anos 70.

Não há, portanto, soluçãopara problema algum enquanto não substituirmos o modelo dependente por um autônomo.
Sem isso, a queda prosseguirá até que o Brasil deixe de ser um país, tornando-se uma zona de exploração mundial, desprovida de sociedade organizada.

Entre 1947 e 1978, o PIB em dólares por habitante teve crescimento apreciável. Não obstante, o declínio desde então foi enorme. Tal foi a extração de nossos recursos para fora do país, que em 55 anos o incremento não passou de 0,9% aa. (3,7 % aa. de 1947 a 1978), apesar das inovações tecnológicas surgidas em mais de meio século. Basta dizer que em 1947:

1a produção de petróleo era zero, e hoje a Petrobrás é, de longe, a maior empresa do país;

2 igualmente pífias eram as hoje consideráveis produções de energia hidrelétrica e da siderurgia.

São exatamente esses frutos das políticas nacionais, anteriores à instalação do modelo das transnacionais, que vêm sendo, ou eliminados ou transferidos para a propriedade destas.

A indústria e a agropecuária cresceram muito. Entretanto, a produção intensiva de recursos naturais foi prejudicial ao país, dadas as perdas na relação de troca com o exterior e as transferências nos “serviços” do Balanço de Pagamentos. Fatos tanto mais escandalosos quanto nosso país tem a melhor dotação de subsolo e de solo, o maior território aproveitável com sol e água em todo o mundo, bem como recursos humanos mais que satisfatórios. Como se já não tivesse feito estragos excessivos, o modelo econômico dependente tornou-se absoluto após 1990, decretando todas as decisões políticas. Daí as criminosas aberturas, desregulamentações e privatizações, cujos efeitos malignos aumentarão sem cessar, enquanto não se reverter a política econômica.

O inventário dos estragos não se esgota na brutal queda do PIB por habitante. Há mais:

 1. Tributos indiretos e PIB

No PIB, ao contrário do que o nome sugere, são incluídos nos preços dos produtos transacionados, os impostos indiretos e as contribuições incidentes sobre o faturamento. Esses tributos representam 20% do PIB, o que implica serem os bens e serviços somente 80% do PIB. Em 1978, ditos tributos constituíram 13,4% do PIB, e os bens e serviços 86,6%. Logo, em relação a 1978 = 100, o índice dos bens e serviços produzidos no país em 2003 foi 50,8%,3 a metade, pois, do valor de 1978.

 2. Produto Nacional Bruto

Uma parte enorme do produto interno pertence a não residentes, sobretudo às transnacionais, que a transferem para o exterior como despesas. Desse modo, o lucro contábil declarado por essas empresas é desprezível, e elas deixam de pagar imposto sobre a renda (lucro). As receitas líquidas das transnacionais concentram 55% do PIB.

No cálculo do produto nacional bruto, a receita líquida das transnacionais é subtraída do PIB. São somados os rendimentos obtidos no exterior por residentes no Brasil, inexpressivos ou não declarados.

Os residentes no país ficavam em 1978 com 75% do produto, e o índice deste se reduz a 86,6 com o expurgo dos impostos indiretos. Assim, o índice do produto nacional para aquele ano é 65. O de 2002/03, partindo de 50,8 em relação a 1978, reduz-se para 22,9, uma vez que só 45% pertencem aos residentes no país. O valor em 2002/03 corresponde a 35% do índice de 1978. Em outros termos, o produto em mãos dos residentes caiu 65 pontos percentuais.

Mesmo em relação a 1947, há diminuição no produto em mãos de nacionais em 2002/2003. Nesses anos, o índice do PIB por habitante é 165 em relação a 1947 = 100. Expurgado dos tributos indiretos, o índice de 47 cai de 100 para 88, enquanto o de 02/03 desce de 165 para 132. Em 1947 só 10% pertenciam a não-residentes, percentual que agora é de 55%. Portanto, os índices tornam-se: 79,2 em 47 (88.0,9) e 59,4 em 02/03 (132.0,45).

 3. Exportações

Com a miséria galopante e consequente retração do mercado interno, os últimos anos mostram progressão acentuada da participação das exportações no produto interno bruto. Ora, as exportações destinam-se a consumo ou a outro uso econômico no exterior, e não no Brasil. Os déficits de transações correntes do Brasil provêm principalmente dos serviços, embora o país também perca na relação de troca de bens. Os atuais superávits são decorrentes da brutal quantidade de exportações, mal pagas. Isso significa estupenda transferência de recursos reais para o exterior.

O PIB por habitante, expurgado dos tributos indiretos, cai de 100 em 1978 para 50,8% em 2002/2003. Em 1978 a produção para uso no país era de 93,7% (6,3% exportações/PIB), tendo descido em 2002/2003 para 85,7% do PIB (14,3% de exportações/PIB). Portanto, 85,7% de 50,8, ou seja, 43,5. Conclusão: em 2002/03 ficou no Brasil menos da metade do que em 1978 para consumir ou investir. O quadro é ainda mais tenebroso, considerando quanto tocou a residentes e a não residentes (item 2). Esse ponto crucial será abstraído também do item seguinte.

 4. Participação dos salários na Renda Nacional

Conquanto os empregadores de maior poder sejam transnacionais, ainda existem médias, pequenas e micro-empresas. Assinalando apenas de passagem a eliminação e o encolhimento de milhões dessas firmas, consequência fatídica da estrutura dependente, trato neste item da dramática situação dos assalariados. Mais dantesca do que essa só é a dos desempregados, mais de 25% da população ativa.

A participação dos salários na renda nacional em 2003 (31,5%) é a metade da de 1964 (62,1%). Estimando-a em 60% para 1947, e relacionando esse percentual ao de 2003, de 31,5%, verificamos que o índice de 2003 é 52,5 em relação a 100 em 1947. Em 1978, a participação dos salários ainda era de 57% da renda nacional. Assim, os 31,5% de 2003 equivalem a 55,3 para 1978 = 100.

 5. Depreciação do capital e produto líquido

O produto interno líquido (PIL) é mais relevante do que o PIB. Aquele se obtém deduzindo deste a depreciação do capital fixo (infra-estrutura, equipamentos, maquinaria e construções). Para renovar, a cada 17 anos, o estoque de capital, ter-se-ia de ser repor a cada ano 4% desse estoque, i.e., 14% do PIB. Essa é a depreciação a ser deduzida do PIB.

Dada a relação capital/produto = 3,5 seria preciso um investimento bruto de 20% do PIB, para que este crescesse a 1,2% aa., e o PIB por habitante, a 0,5% aa. O país estaria, pois, praticamente estagnado. Com investimento bruto de 18,5% do PIB, o crescimento deste seria inexpressivo, e do PIB por habitante, nulo. A 15% do PIB este teria incremento zero e o PIB por habitante regrediria 1% ao ano.

O que está acontecendo é que o investimento bruto caiu de 23,3% do PIB em 1978 para 17% em 1983. Ele ficou na média de 14,9% nos anos 90, e foi para menos de 13% aa. em 2003, o que significa o sucateamento acelerado do país. Isso reflete a deterioração contínua e acelerada causada pelo modelo sob comando externo ao país, que leva ao endividamento e a cortar despesas públicas para pagar juros, deixando de gerar produção e emprego.

Eis uma síntese dos efeitos do modelo: em 1995, os tributos federais já haviam subido a 16,2%, e os investimentos federais caído para míseros 1,8% do PIB. Que aconteceu de lá para cá? Em 2003 os tributos arrecadados pelo governo federal ultrapassaram 23%, e seus investimentos baixaram para 0,4% do PIB.

 6. Capital humano

Tão grave como o sucateamento da infra-estrutura e do capital físico produtivo é a destruição do capital humano. O modelo econômico a causa de vários modos:

1 pela supressão da demanda no mercado interno e o consequente desemprego de profissionais qualificados, bem como de empresários cujas firmas fecham, ou são alienadas em favor das transnacionais: uns e outros perdem seus conhecimentos, experiência e habilidades por falta de prática;

2pelo desemprego dos trabalhadores em geral;

3 pela emigração, uma vez que milhões de brasileiros tentam sorte menos degradante no exterior, em face de o país sofrer declínio permanente há mais de 25 anos: a emigração é uma das maneiras mais danosas de perder recursos para o exterior, pois com ela vai todo o investimento feito no crescimento das pessoas, em sua educação e formação profissional;

4 pela intervenção patrocinada por fundações e Ongs, sobretudo anglo-norte-americanas, a qual operou brutal redução da taxa anual de incremento demográfico (de mais de 3% nos anos 60 para os atuais 1,3%), mediante propaganda e pressões de todo tipo.

Quando os que trabalham para eliminar o Brasil como nação, fazendo dele mera expressão geográfica, argumentam que não haveria como dar condições decentes às dezenas de milhões de brasileiros pobres e remediados cujo nascimento impediram, estão arranjando um álibi fraudulento para o grande crime hediondo: o modelo econômico comandado pelos concentradores financeiros mundiais.

Num país com a dimensão e abundância em recursos naturais que tem o Brasil, se a política econômica não for desenhada para sugar as riquezas nacionais, o crescimento populacional se torna fator positivo para o progresso econômico e social. Durante os primeiros 60 anos do século XX, o PIB brasileiro cresceu a mais 5% aa., justamente quando houve alta progressão demográfica. A economia poderia ter avançado ainda mais, não fosse o serviço da dívida externa (até 1943, quando foi saldada, e retomado a partir de 1946) e haver empresas estrangeiras explorando serviços públicos. O apreciável e sustentado crescimento do produto foi possível porque a indústria, a agricultura, bancos e outros serviços não estavam sob controle de transnacionais.

A capacidade destruidora da política econômica da globalização é de tal ordem, que a renda por habitante desabou juntamente com a natalidade, quando passou a predominar a estrutura caracterizada pela concentração da produção e dos mercados nas mãos de empresas transnacionais, implantada gradualmente desde meados dos anos 50.

 7. Contas “nacionais”

1 O PIB por habitante em 2002 foi US$ 2.641.

2 para ter o produto interno líquido, deduz-se 14% (depreciação do capital): restam US$ 2.271;

3 para chegar à renda interna, abatem-se do PIB 20% referentes aos tributos sobre bens e serviços: o valor cai para US$ 1.743;

4 a renda nacional (pertencente a pessoas físicas e jurídicas residentes no país) não é mais que 45% da renda interna, i.e., US$ 784;

5qual foi a renda disponível? Subtrai-se o imposto de renda, para cuja receita total (6,4% do PIB) essas pessoas contribuem com 90%. Resultado: US$ 784 – US$ 152 = US$ 632. Este valor é igual a 23,9% do PIB por habitante. Não precisei falar em distribuição de renda. Que renda? A concentração dela está quase toda nas transnacionais e no exterior.


*Adriano Benayon é Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Autor de Globalização versus Desenvolvimento.
[email protected].

1 No governo do sr. Itamar Franco este reclamava das altas taxas de juros, o que deixava claro não ter ele poder sobre a política econômica: o Banco Central mantinha-a nas alturas que desejava sem qualquer atenção às queixas do presidente da República. No segundo mandato de seu inominável sucessor, este chegou a afirmar, numa tarde, em entrevista, que as taxas de juros estavam demasiado elevadas, e a tomar conhecimento, na mesma noite, de que o Banco Central havia baixado Resolução aumentando essas taxas.
2 Adotamos a média 2002/03, para evitar a distorção do câmbio do real, que sofreu desvalorização de 50% em 2002 e recuperação de 20% em 2003.
3 O índice é obtido do seguinte modo:
1) 1978: 100.(0,866) = 86,6;
2) 2002/2003: 55.(0,8) = 44;
3) 44.(100)/86,6 = 50,8.

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