Falar em "continente esquecido" é voltar a falar no "fardo do homem branco". Discurso sobre a artificialidade dos Estados africanos é desculpa para justificar sua destruição. Imperialismo jamais esqueceu um continente riquíssimo em recursos naturais — principalmente petróleo, minérios e diamantes. Potências intensificam o saque e promovem nova partilha.
Clique para ampliar |
Nos últimos anos, a imprensa européia transmitiu ao mundo a imagem de uma África à deriva. Veículos como a Radio Nederland e a Deutsche Welle cansaram-se de referir-se ao "continente esquecido", intocado pelas bondades da chamada globalização.
Em discurso proferido na Universidade de Wits, em Johanesburgo (África do Sul) em dezembro último, o primeiro-ministro francês Dominique de Villepin também usou esta expressão e ofereceu os préstimos de seu país para que a África abandonasse esse status. No mesmo discurso, Villepin procurou justificar a intervenção militar na Costa do Marfim, onde Paris mantém mais de quatro mil homens no âmbito da chamada Operação Licorne, iniciada em 2002. Oito meses antes, em entrevista à revista L’Express, a ministra da Cooperação, Desenvolvimento e Francofonia (o ministério francês para as ex-colônias), Brigitte Girardin, explicou os motivos da intervenção: "a França não tem o menor interesse nos setores-chaves da economia marfinense, como o cacau, o café ou o petróleo. Nós temos uma ligação histórica e afetiva com a Costa do Marfim".
É em virtude desta "ligação histórica e afetiva", provavelmente, que o governo francês mantém na África um dispositivo militar de mais de 10 mil homens estrategicamente posicionados em bases militares localizadas no Senegal, Costa do Marfim, Gabão, República Centro-Africana, Djibuti, Reunião e Mayotte — essa última, uma ilha pertencente a Comores por cuja ocupação ilegal a França foi condenada reiteradas vezes na Assembléia Geral da ONU.
E deve ser por não ter também "o menor interesse em petróleo" que o governo do USA anunciou, no início de fevereiro, a criação de um comando militar especialmente dedicado à África, o Africom. Desde 2002, o USA mantém 1800 homens numa base militar no Djibuti, próxima ao Canal de Suez e na entrada do Mar Vermelho, zona de mais intenso tráfego petrolífero no mundo.
Colonialismo humanitário
Não é a primeira vez que propósitos caridosos são esgrimidos para justificar o saque aos recursos do continente. O colonialismo do século XIX foi impulsonado pelo discurso de que cabia aos europeus cumprir uma missão civilizadora na África, missão que seria, na expressão do poeta Rudyard Kipling — partidário fervoroso do imperialismo vitoriano —, o "fardo do homem branco". Foram estes ideais filantrópicos que levaram Cecil Rhodes a iniciar o saque dos diamantes da Namíbia e da África do Sul, ainda hoje a principal fonte de sustento do monopólio fundado por ele, a De Beers, e da Anglo American. Um século depois, não são poucos os que se dispõem a seguir a trilha aberta por ele.
As companhias de petróleo estão entre os primeiros da fila. A crescente resistência antiimperialista no Oriente Médio faz com que a cobiça das corporações do setor e dos Estados aos quais elas estão ligadas volte-se para a África. Em sua Estratégia de Segurança Nacional apresentada em 2002, o governo ianque fala na necessidade de incrementar a exploração do petróleo africano. Hoje, aproximadamente 15% do petróleo produzido no mundo vem do Golfo da Guiné (que estende-se da Costa do Marfim até Angola). Prevê-se que esta proporção chegará a 25% em 2015.
O interesse do imperialismo não se limita às matérias-primas. Monopólios do setor de telecomunicações disputam os mercados africanos. Nos dois primeiros meses deste ano, várias transações importantes ocorreram. A Sonatel, sediada no Senegal e pertencente à France Telecom, venceu a Global Voice, do USA, na disputa pela exploração da telefonia celular na Guiné Bissau. A Maroc Telecom (que pertence ao truste francês Vivendi e negocia suas ações nas bolsas de Paris e Casablanca), engoliu a até então estatal Gabon Telecom. Pouco antes, a mesma Maroc Telecom havia açambarcado a Onatel, ex-estatal de Burkina Faso, vencendo uma disputa com a France Telecom e a alemã Detecon. A empresa controla também, desde 2001, a ex-estatal Mauritel, da Mauritânia.
Mitos desfeitos
Estes dados contradizem a imagem de um continente incapaz de atrair investimentos estrangeiros — aspecto apontado pela imprensa monopolista como causa da miséria africana. Outro mito diz respeito ao alegado fator de inibição desses investimentos: as guerras civis étnicas, que causariam instabilidade e prejuízos à infra-estrutura, afugentando os monopólios.
A África é, de fato, um lugar devastado. Mas essa devastação não é senão um mecanismo de que o capital estrangeiro lança mão para poder iniciar ou manter em curso seus empreendimentos.
Um exemplo de país arrasado é o Congo (ex-Zaire). Seu território é rico em ouro, urânio e petróleo e guarda as maiores reservas de coltan (colômbio-tântalo) do mundo. O coltan é vital para fabricação de aparelhos eletrônicos, principalmente telefones celulares.
No final dos anos 90, a pretexto de proteger a população tutsi do Congo, o exército ruandês invadiu o país. Em 99, um acordo celebrado em Lusaka, na Zâmbia, dividiu-o em duas zonas, uma controlada pelo governo de Kinshasa, outra nas mãos de grupos ligados à Ruanda.
O exército ruandês transporta o coltan até seu país e, de lá, o envia para a Europa. Através dos aeroportos de Entebbe (Uganda) e Kigali (Ruanda), companhias aéreas como a belga Sabena levam o mineral e trazem armas. Mas a gerência ruandesa não é senão o intermediário a soldo de capitais europeus.
Nas zonas sob seu controle, foram canceladas as licenças para exploração de coltan anteriormente concedidas a companhias ianques e instituído o monopólio da Sociedade Mineradora dos Grandes Lagos (Somigl), controlada pela belga Cogecom através de uma subsidiária. É a Somigl quem paga 10 dólares por quilo de coltán e o revende a 250 ou 300 dólares em Londres. Um de seus melhores clientes é a alemã Starck (subsidiária do monopólio químico-farmacêutico Bayer), que produz 50% do tântalo em pó no mundo. As operações financeiras relacionadas ao negócio são realizadas, em sua etapa africana, através do BCDI, correspondente bancário do Citibank (do USA) sediado em Kigali.
Em fevereiro, esteve em evidência o conflito de Darfur, no oeste do Sudão. Os ianques divulgam as cifras de 400 mil mortos e 2,5 milhões de desabrigados — impossíveis, se levarmos em conta que Darfur não tem 6 milhões de habitantes. O USA propaga a mentira de um conflito entre árabes e negros, chegando a falar em "limpeza étnica" — isto quando, segundo explica o professor Mahmood Mamdani, do departamento de Estudos Africanos da Universidade de Columbia (USA), em artigo publicado na revista Black Commentator, "todas as partes envolvidas no conflito de Darfur — fale-se em ‘árabes’ ou ‘africanos’— são igualmente autóctones e negras; todos são muçulmanos e todos são dali; os chamados "árabes de Darfur" são africanos que falam árabe".
Para compreender o interesse do USA pelo Sudão é necessário ter em conta que o país é riquíssimo em petróleo. O discurso sobre a "artificialidade" dos Estados africanos visa legitimar sua destruição no quadro de uma nova partilha colonial do continente. O fato é que o USA estimula o separatismo no Sudão e transmite a imagem de um país submerso em conflitos regionais de fundo étnico para tomar conta de parte do petróleo — hoje em mãos da francesa Total e da chinesa CNPC. França e China, obviamente, apóiam o regime de Cartum.
A dupla face da infâmia
A mentira gêmea desta sobre a ausência de conexão entre os conflitos armados e os interesses do capital monopolista é aquela que apresenta tais conflitos como "prova" de que os países africanos estão fadados à instabilidade ou à guerra por fatores internos.
De fato, minorias nacionais diversas convivem em vários países africanos e têm suas rivalidades — a exemplo do que acontece na França, Espanha e Bélgica. E realmente, as fronteiras de muitos Estados da África foram traçadas numa mesa de negociações — assim como as de praticamente todas as nações européias o têm sido desde a conferência de Westfalia.
Quem controla diretamente a política monetária de 15 países africanos é a França
As raízes da tragédia africana estão antes na prevalência do colonialismo do que em seu suposto fim. Mesmo porque não se pode falar seriamente em independência em países onde não se verificam requisitos elementares de soberania. Um deles: moeda nacional.
Quem controla diretamente a política monetária de 15 países africanos é a França. A moeda corrente nas ex-colônias francesas de Benin, Burkina, Camarões, Chade, Costa do Marfim, Gabão, Mali, Níger, República Centro-Africana, República do Congo, Senegal e Togo é o franco CFA (sigla de Comunidade Financeira Africana). Recentemente, a Guiné Bissau e a Guiné Equatorial, respectivamente ex-colônias portuguesa e espanhola, caíram na zona do franco, renunciando a suas moedas. Em Comores — país cujas matérias-primas sustentam a indústria francesa de cosméticos e onde a França já promoveu mais de vinte golpes de Estado nos últimos trinta anos —, circula o franco comorense, subordinado às mesmas regras: câmbio fixo, conversibilidade plena (primeiro ao franco francês, agora ao euro sob garantia do Tesouro da França) e cotação definida pela França, que também controla as emissões. Os bancos centrais africanos são meros conselhos da moeda (currency boards) à moda colonial, sem nenhuma autonomia para a formulação de políticas.
O Estado imperialista francês tem, assim, a chave do controle das economias desses países. Em 1994, a França, em conluio com o FMI, desvalorizou, unilateral e repentinamente, o franco CFA em 50% relativamente à sua moeda — o que significou quebrar, de uma canetada, as economias dos países atingidos, todos eles fortemente dependentes de importações.
Sangria desatada
Na África, como em todo o mundo, a ação do capital estrangeiro gera sangria de divisas, e não enriquecimento. Inclusive quando a exploração imperialista traveste-se de "investimento produtivo": Angola, segundo maior exportador africano de petróleo, enfrenta desequilíbrios em sua balança de pagamentos porque as transnacionais do setor importam os bens de produção que utilizam.
A "solução" encontrada pelo imperialismo e pelas classes dirigentes compradoras é a mais cruel possível: incremento da exploração do campesinato. A produção agropecuária é cada vez mais direcionada à exportação visando cobrir déficts. E aqui se desfaz outra idéia falsa sobre a África: o continente da fome exporta alimentos. A paupérrima Burkina Faso fornece açúcar à França, a faminta Etiópia produz carne para o mercado inglês. É verdade que os países africanos também importam comida — ou recebem-na do USA e da Europa em programas de "ajuda humanitária" que não passam de dumping contra os produtores locais. Mas só importam porque exportam: como toda sua produção é voltada ao mercado externo, faltam alimentos para seus habitantes. É exatamente por isso que um dos itens da pauta de reivindicações da greve geral que parou a Guiné em janeiro era a suspensão das exportações de gêneros de primeira necessidade.
Mais uma vez, o imperialismo lucra com falsas soluções para problemas que ele mesmo criou: recentemente, as fundações Gates e Rockefeller anunciaram um programa de modernização da agricultura africana à base de pacotes tecnológicos da chamada "revolução verde": pesticidas, sementes trasngênicas, etc.
De acordo com Eric Holt-Gimenez, Miguel Altieri y Peter Rosset, pesquisadores da Universidade de Berkeley (USA) e militantes do movimento Food First, o programa funcionaria como um instrumento de expropriação dos camponeses: obrigados a endividar-se para fazer frente aos custos desses pacotes, grande parte deles terminaria por perder a terra.
Mas os povos lutam
À medida que se aprofunda a exploração, avoluma-se também a resistência.
Em novembro último, a população de Abdijã, capital da Costa do Marfim, protestou em massa contra a intromissão da França nos assuntos do país. O Exército francês disparou contra os manifestantes, matando 64 civis.
Na Nigéria, maior exportador de petróleo do continente e responsável por 10% do fornecimento ao USA, o monopólio anglo-holandês Shell viu-se forçado, no último mês, a evacuar suas instalações e suspender a prospecção depois que algumas de suas áreas foram tomadas por camponeses armados.
No Senegal, os ferroviários estão na linha de frente da luta contra a desnacionalização da economia e deflagraram uma greve contra a privatização da linha Dacar-Níger. Mas onde o movimento sindical se mostra mais forte é na Guiné: a greve geral de janeiro arrancou da gerência do Estado a redução do preço do arroz e dos combustíveis e a suspensão das exportações de gêneros de primeira necessidade.