A reforma ou a revolução – Chile: 30 anos de golpe

A reforma ou a revolução – Chile: 30 anos de golpe

O 11 de setembro de 1973 no Chile foi um duro golpe nos anseios das massas populares chilenas e latino-americanas, que viam com imensa simpatia o governo da Unidade Popular (UP) de Salvador Allende.
No entanto, tanto o golpe quanto o terror e a repressão que o seguiram, em grande parte, foram o resultado das ilusões depositadas numa legalidade hipócrita em seus propósitos, leviana na teoria e na prática. A pugna e o conluio entre o imperialismo e o social-imperialismo russo foram imediatamente desmascarados pela força da própria repressão do imperialismo. Esse não foi o único exemplo da fusão entre o revisionismo e a reação que resultou, ao fim, no custo de milhares de vidas tragadas pela repressão e de milhões de seres humanos aprisionados no grande campo de concentração em que se transformou o Chile.

Bastou a eleição vitoriosa de Allende em 1970 para que se acendesse em Washington o sinal vermelho

Foi nesse caldeamento de acontecimentos que se processou a trágica experiência de transição pacífica empreendida por Salvador Allende. É indiscutível que os acontecimentos ocorridos no Chile — naquela época cheio de esperanças e decepções, de bravuras e traições, de enganos e acertos — estão intrinsecamente ligados a esse tema: reforma e revisionismo ou revolução.

Não se trata tão somente do governo de Unidade Popular nem dos militares no comando intermediário de Augusto Pinochet de imporem duas políticas distintas para o Chile, como faz crer a censura da Nova Ordem imperialista. Trata-se do caráter da revolução em marcha no Chile e da contra-revolução que procurou detê-la em 1973, da composição das classes do campo revolucionário e do campo contra-revolucionário, dos interesses do imperialismo e do seu suporte social interno (as classes contra-revolucionárias nativas) e dos interesses das classes que compõem o campo revolucionário, formando uma contradição antagônica irreconciliável e a cada dia mais aguçada.

Trata-se dos traidores oportunistas e revisionistas, da política de conluio e pugna com o imperialismo imposta ao Movimento Comunista Internacional pelo social imperialismo russo, onde, por um lado, os partidos comunistas tradicionais apregoavam a vitória das traiçoeiras teses das três pacíficas: a emulação pacífica, coexistência pacífica e transição pacífica para o socialismo — mesmo sabendo que nunca e em lugar nenhum, tais teses, na prática, saíram vitoriosas — e por outro, novas organizações oriundas destes partidos e capitaneadas pelo castrismo/guevarismo apregoavam teses como o foco guerrilheiro, no Chile representados pelo Movimento de Isquerda Revolucionaria (MIR), todos, mesmo inconscientemente, servindo ao social imperialismo.

Eleição e posse de Allende

Bastou a eleição vitoriosa de Allende em 1970, depois de várias tentativas, para que se acendesse, em Washington, o sinal vermelho: “Não vejo razão pela qual se deve permitir o Chile se tornar marxista pela irresponsabilidade de seu povo”, disse Henry Kissinger.

No dia 18 de setembro de 1970, realizou-se na Casa Branca uma reunião de Kissinger com Donald Kendall, presidente da Pepsi Cola; David Rockfeller, do Chase Manhattan Bank; Richard Helms, diretor da CIA e Richard Nixon, presidente do USA, na qual decidiram, na voz de Nixon: “Allende não assumirá a Presidência sem preocupação dos riscos que possa ter! Dez milhões de dólares disponíveis; mais, se for necessário. Trabalho em tempo integral, os melhores homens que temos. Utilizar pressão econômica; 48 horas para um plano de ação. Não deve haver participação da embaixada.”

Foi organizado um grupo em Langley (Virgínia), com o propósito expresso de executar uma política de “dupla via” para o Chile: uma de diplomacia aberta e outra oculta — uma estratégia de desestabilização, sequestro e assassinato a fim de provocar um golpe militar.

Enno Hobbing, agente da CIA; Álvaro Puga, articulista do El Mercúrio e depois do golpe assessor da Junta Militar, em conexão com Claude Villarreal, da embaixada do USA; Paul Goodis Allred, chefe das operações psicológicas da CIA em Santiago; Fernando Lévix, ex-gerente geral e ex-presidente do El Mercúrio e depois Ministro da Economia de Pinochet e mais Agustín Edwards, proprietário do mesmo jornal, foram os principais executores do plano de desestabilização, segundo documentos da CIA e de outras agências do governo ianque.

Aliás, o insuspeito jornal New York Times publicou em sua edição do dia 20 de setembro de 1974: “Milhões de dólares, destinados à desestabilização de Allende pela CIA, entregues a El Mercúrio”.

Sessenta dias era o prazo imposto pela Constituição Chilena para que o Congresso confirmasse Allende na Presidência. Para o golpe militar era imprescindível a participação do Exército. Acontece que o chefe das forças armadas era o general René Schneider, soldado profissional incorruptível e integrado inteiramente ao dever patriótico. Foi decidido, então, em Washington, assassinar o general Schneider e colocar a culpa na Unidade Popular por intermédio do jornal El Mercúrio. Para isso, a CIA organizou separadamente três grupos, fornecendo-lhes armas, munição e dinheiro. Coube ao grupo do general Roberto Viaux Marambio conseguir a execução de Schneider. A CIA pagou ao grupo 50 mil dólares.

O programa da UP

Embora tivessem assassinado Schneider, o golpe de Estado programado para aquela época fracassou e Allende foi empossado no dia 3 de novembro de 1970. Mas, para assumir a Presidência ele se submeteu a assinar secretamente o “Estatuto de Garantias”, no qual prometia que seu governo respeitaria o Estado e deixaria intactos aqueles instrumentos que a burguesia havia desenvolvido para defender seus interesses de classe: o sistema educativo, a Igreja, os meios de comunicação e as forças armadas. O “Estatuto” era uma promessa de não realizar nenhuma transformação fundamental na sociedade chilena.

Não havia nada de revolucionário no programa da Unidade Popular. Seguia o plano ortodoxo keynesiano para reavivar a economia, não trazia nenhum desafio ao capital privado. Pelo contrário, deu à burguesia industrial um conjunto de garantias e aos proprietários de terras concedeu generosas indenizações.

Mas, a direita, em especial o latifúndio, se via em perigo. Ela decidiu, como objetivo estratégico, desarticular por todos os meios possíveis o bloco das forças políticas e sociais. Mesmo porque, o governo da UP estava conseguindo importantes transformações dentro da legislação vigente. Dentre elas, a Reforma Constitucional, que passou a considerar como propriedade do Estado todas as riquezas do subsolo, o aprofundamento da Reforma Agrária, a redistribuição das riquezas e a mais relevante: a nacionalização das minas de cobre. À primeira vista, pode parecer importante que os recursos do subsolo sejam nacionalizados, mas quando se analisa para quem é vendido este minério depois de extraído, e a que preço, não representa um avanço tão grande.

A ação das massas e seus “dirigentes”

Ao analisarmos os mil dias da Unidade Popular, uma questão fica patente: a dissonância entre a disposição das massas em seguir avançando e a vacilação e traição de sua direção. Em sucessivos levantamentos no campo e nas cidades, as massas tomam terras em poder do latifúndio e aprofundam a reforma agrária, bem como assumem a direção de fábricas, evoluindo para organizações mais gerais. Os “cordones1 passam por cima de organizações sindicais atrasadas que propunham a conciliação de classes devolvendo as fábricas conquistadas a seus antigos donos. Às greves puxadas pela direita e assessoradas pela CIA, como a dos transportes ocorrida em 1972, contrapunha-se uma ampla mobilização para impedir a paralisação do país. Improvisava-se o transporte, recebia-se diretamente em dinheiro quando os bancos fechavam suas portas. Enfim, a qualquer ameaça ao governo lá estavam as massas prontas para o combate.

Por outro lado, como se comportavam os líderes da UP? E o MIR? Como se preparou à resistência ao tão anunciado e ensaiado golpe?

Em fevereiro de 1972 realizou-se uma conferência da Unidade Popular em Lo Curro, onde, por um lado, o Partido Comunista do Chile e a ala direita do Partido Socialista pregavam que o governo deveria frear a expansão do setor estatal e reafirmar sua disposição de negociar com a burguesia. Por outro, os “radicais” MAPU (Movimiento de Acción Popular Unificado — esquerda cristã; organização semelhante na origem e nos atos à Ação Popular, do Brasil) e a ala esquerda do Partido Socialista apoiado pelo MIR, defendiam que as massas trabalhadoras estavam prontas para levar adiante a luta e que seus dirigentes não deveriam se colocar na sua frente; as reformas deveriam aprofundar-se.

Como resistir ao golpe iminente? Nem uma palavra. Em outubro do mesmo ano, Miguel Enriquez, secretário geral do MIR, afirma que o Chile se encontrava em um período pré-revolucionário e que se deveriam criar germes do poder popular e o controle operário, mas nunca nenhum representante desta organização explicou como organizar e realizar este controle. Em fins de junho, o MIR, o MAPU, e o Partido Socialista chamam o povo a defender o governo com armas na mão, sem, no entanto, preparar e organizar esta resistência.

Um problema é essencial de ser entendido: o governo Allende assume com o compromisso de não mexer com a base do Estado, sendo, portanto continuísta. Uma tarefa se impunha aos revolucionários chilenos: avançar além da legalidade burguesa para demolir o Estado Burocrático.

Rompe-se a frente popular

As divisões internas no governo, formado por partidos e grupos diferentes — tais como o Partido Socialista e o Partido Comunista que seguiam a linha da via pacífica para o socialismo empreendida por Allende e o MIR, que desejava a luta armada, sem, no entanto empreendê-la —, enfraquecia a estrutura governamental.

Após o golpe de 11 de setembro de 1973, comandado por Pinochet, os grupos de esquerda, inclusive o MIR, foram desmantelados. Uma direção revolucionária que apontasse claramente o caminho da destruição do Estado e de fato organizasse a luta pelo poder popular era a única capaz, inclusive, de puxar o próprio Allende e seus seguidores para o caminho revolucionário. Os fatos que se sucederam mostram que isso era possível.

Houve reação popular seguida pelos massacres nos bairros operários e nas fábricas, o que resultou em mais de 10 mil mortos e milhares de prisões, principalmente nos bairros populares.

No Palácio de la Moneda, cumprindo suas palavras de uma semana antes — “Que o saibam todos, que o ouçam, que se lhes grave profundamente: somente crivando-me de balas poderão impedir a minha vontade, que é a de fazer cumprir o programa do povo.” — de metralhadora nas mãos, Allende resistiu durante horas aos ataques dos comandados de Pinochet, até que um pelotão, comandado por um conhecido general entreguista, Javier Palácios, o assassinou.


(1) A ação conjunta dos trabalhadores agrícolas e industriais abriu novas e diferentes possibilidades. Da luta unida nasceu uma nova forma de organização, forjada no curso das greves de Cerillos, que se autodenominou “Cordon Industrial”. O Cordão de Cerillos publicou uma declaração demandando o controle da produção pelos trabalhadores e a substituição do Parlamento por uma Assembléia de Trabalhadores.
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