A rendição consumada

A rendição consumada

Medidas das últimas semanas aprofundam processo de desnacionalização da economia e entrega do país. Estrutura do Estado sob ataque e direitos dos trabalhadores na mira. Governo elimina as últimas diferenças com o programa econômico tucano

No dia 25 de julho, pressionado pela gritaria armada pela imprensa monopolista em torno do acidente do aeroporto de Congonhas, Luiz Inácio destituiu o ministro da Defesa, Waldir Pires, e colocou no posto o ex-ministro da Justiça e ex-ministro do STF, Nelson Jobim.

Aos 81 anos, Pires não mostrava o pulso necessário para o cargo e há muito estava desprovido de efetivo poder decisório. Nem por isso deixa de ser digna de nota a medida, ao menos sob o ponto de vista simbólico.

O ministro sainte, em que pese a gestão desastrada, é um homem digno, com uma biografia forjada nas lutas democráticas e nacionalistas do último meio século.

O entrante, além de haver-se notabilizado — como advogado, deputado, ministro da Justiça e ministro do STF — pela defesa dos piores interesses, é homem do círculo íntimo de Cardoso. Alguns ainda se lembram da ridícula cena em que os dois — sendo então um o chefe do Executivo e o outro ministro do Supremo — aparecem tomando banho de mar em Ilha Grande, em 2002.

Simultaneamente, foi anunciada a privatização de metade da Infraero, como vinha sendo exigido pelo capital transnacional e associado através de seus porta-vozes autorizados na imprensa monopolista. Um deles o ex-ministro Delfim Netto, declarara-se, uma semana antes, arrependido de haver participado da criação da empresa.

A anunciada entrega dos aeroportos não foi a única concessão de relevo que o grande capital arrancou da administração federal. Na realidade, ela apenas coroa uma sequência de acontecimentos que vinha se desenrolando em ritmo acelerado nas semanas anteriores.

Diferenças eliminadas

Se a gerência petista assumiu desde seu início o papel de administradora do sistema de poder vigente, mantendo as linhas mestras da condução econômica sob Cardoso e desdobrando-se para agradar o setor financeiro — força hegemônica do pacto de poder forjado na década de 90 —, é certo, por outro lado, que subsistiram, durante seu primeiro mandato, diferenças secundárias relativamente à orientação tucana. Como exemplo, pode-se citar a interrupção das privatizações e a recomposição parcial do serviço público, devastado pelo coquetel de terceirização, sucateamento e suspensão de concursos durante os anos Cardoso.

São justamente essas diferenças — resultantes, talvez, do maior peso relativo da burguesia burocrática sob a gerência Luiz Inácio, ao passo que na de Cardoso prevalecia a dominação externa em sua forma mais direta. Essas diferenças agora estão praticamente liquidadas, com a rendição definitiva da grande burguesia nativa como um todo, conseguindo ceder ainda mais às imposições de fora, num arranjo que tem no PAC — Programa de Aceleração do Crescimento sua expressão maior. O que os passos do governo nos últimos meses indicam é a adoção do programa econômico do PSDB — fragorosamente derrotado nas urnas em 2006.

O que se revela paradoxal é que, se no mandato obtido em 2002 — quando sua condução à chefia do Executivo federal teve como preço a infame carta de compromisso com os banqueiros — Luiz Inácio conseguiu preservar alguma diferença face ao seu antecessor. No mandato de 2006 — quando dizia ser contrário às privatizações —, essa diferença se anula.

Privatização retomada

A privatização do setor elétrico — que Cardoso e sua trupe haviam deixado engatilhada, mantida em banho-maria entre 2003 e 2006, é agora retomada. No dia 23 de julho, foi publicado o Decreto 6.161 — editado três dias antes —, incluindo nove linhas de transmis são de energia no Programa Nacional de Desestatização.

Pelo decreto, será privatizada a importante interligação Tucuruí-Manaus, que abrange o Amazonas e o Pará. Trata-se de um sistema integrado constituído por cinco linhas (Tucuruí-Xingu, Xingu-Jurupari, Juru-pari-Oriximiná, Oriximiná-Itacoatiara e Itacoatiara-Cariri) e quatro subestações (Juru-pari, Oriximiná, Itacoatiara e Cariri). A interligação Tucuruí-Macapá (AP), composta por duas linhas (Jurupari-Laranjal e Laranjal-Macapá) e duas subestações (Laranjal e Macapá) terá o mesmo destino.

Serão privatizadas mais dez linhas de transmissão: a Colinas-Ribeiro Gonçalves, que vai de Tocantins ao Piauí; a Ribeiro Gonçalves-São João do Piauí; a de São João do Piauí a Milagres, no Ceará; Jardim-Penedo, ligando Sergipe e Alagoas; Maggi-Juba, no Mato Grosso; Nova Mutum-Sorriso, também no Mato Grosso; Sorriso-Sinop, no mesmo estado; Presidente Médici-Santa Cruz 1, no Rio Grande do Sul; Bateias-Pilarzinho, no Paraná e São Luis II-São Luis III, no Maranhão (esta juntamente com a subestação São Luis III).

Enclaves de exportação

Também no dia 23, foi publicada a Lei 11.508, que estabelece o regime jurídico das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs). As ZPEs são, literalmente, áreas cercadas concedidas pelo Estado brasileiro a empresas privadas para que estas fabriquem produtos para exportação. A pretexto de estimular a venda de produtos ao exterior para captar dólares, foi aberta a possibilidade de criação de verdadeiros enclaves privados — inclusive estrangeiros — em território nacional.

Embora a lei diga que apenas empresas brasileiras podem instalar-se em ZPEs, é necessário lembrar que, desde 1995, não existe mais diferença entre a empresa de capital nacional e as transnacionais instaladas em território brasileiro. A exigência de que o capital social da empresa a ser instalada seja formado "com o produto da conversão de moeda estrangeira" e/ou "com a internação de bens de origem externa" claramente favorece as últimas em detrimento das primeiras.

Pior que isso: a lei obriga a empresa que quiser operar numa ZPE a adquirir no exterior os bens necessários a suas atividades — o que as transnacionais têm muito mais facilidade para fazer.

Para piorar, o Executivo vetou o artigo que previa necessidade de cobertura cambial dessas aquisições, o que terá como efeito estimular a evasão de dólares em vez de sua atração. Também contribuirá para isso um outro veto, aposto ao artigo que impunha às empresas a obrigação de realizar gastos mínimos no país. A justificativa foi de que a imposição "poderia afetar compromissos assumidos em acordos internacionais".

Como se não bastasse, 20% da produção das ZPEs — bem como a totalidade da energia elétrica gerada nelas — poderão ser destinadas à venda em território nacional. Usufruindo de tamanhas vantagens econômicas, as transnacionais concorrerão em vantagem com o que resta das empresas brasileiras também no mercado interno.

Em troca, muito poucas obrigações são impostas às empresas beneficiárias do regime. Uma delas é a de "atender às instruções dos órgãos competentes do Ministério da Fazenda quanto ao fechamento da área, ao sistema de vigilância e aos dispositivos de segurança". Feito isto, não precisarão de autorização federal para nada que se pretenda fazer nas áreas delimitadas. Cada ZPE tem duração prevista de 20 anos, prorrogáveis por mais 20.

Drenagem de recursos

Definitivamente conformada com a condição de sócia menor do capital estrangeiro, a burguesia burocrática contenta-se em financiar-se com o dinheiro do Estado e dos trabalhadores para evitar o completo desaparecimento. E faz isso num arranjo que, por tabela, favorece ainda mais o sócio maior em detrimento dela própria.

A Medida Provisória 382, publicada no dia 25 de junho, é um claro exemplo da maneira como se dá essa transferência de recursos. Ela permite ao Estado entregar recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) a empresas dos setores calçadista, têxtil e moveleiro. Além disso, isenta da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) empresas importadoras de bens de capital desses setores.

Trata-se, sem dúvida alguma, de setores de alguma importância na economia nacional e que têm sido duramente golpeados, nos últimos anos, pela concorrência predatória das importações, bem como por outros fatores (contenção da capacidade de consumo interna, altas taxas de juros). Todavia, ao invés de taxar as importações — para não falar em ampliação do mercado interno —, o que o governo faz é: i) tirar dinheiro dos trabalhadores para entregar a essas empresas; ii) reforçar um dos mais antigos pontos de estrangulamento da economia brasileira, a importação de bens de capital.

Durante mais de trinta anos, a produção interna desses bens foi um objetivo incessantemente buscado pelos que almejavam a emancipação econômica do Brasil. Primeiro, porque a importação deles era um dos principais fatores de evasão de dólares. Segundo, porque essa produção é necessária até mesmo para que o país tenha autonomia para formular políticas industriais.

O que se apresenta como estímulo à indústria nacional é, na realidade, reforço da submissão: favorecem-se setores econômicos que nunca tiveram contradição com o imperialismo (à exceção do têxtil, em tempos idos) quebrando o que resta de uma das indústrias mais estratégicas para qualquer economia, a de bens de capital — já quase completamente dizimada durante o período Cardoso.

Sucateamento do Estado

Paralelamente, atuam outros instrumentos de transferência de renda das classes trabalhadoras para o capital externo e seus sócios menores. A liberação do uso de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) no mercado financeiro, estabelecida no início do ano no âmbito do PAC, é uma clara amostra. Outro exemplo é a campanha de ataques à Seguridade Social, insuflada por instituições financeiras interessadas em apropriar-se do dinheiro descontado mensalmente pelos trabalhadores para o INSS e apoiada por entidades da burguesia burocrática, desejosas de compensar com o fim dos encargos previdenciários a sangria que o sistema financeiro lhes impõe com seus juros extorsivos.

Neste processo de aprofundamento da dominação externa, o próprio Estado perde força como elemento de mediação e torna-se, cada vez mais, alvo da rapina desses setores.

A mais clara expressão disto é a tentativa de desmantelamento do arremedo de serviço público existente no Brasil e sua transformação em fonte de lucros para entidades privadas.

Favorecida pela reforma administrativa de 1998, a contratação de funcionários públicos sob o regime celetista em vez do estatutário foi o primeiro golpe desfechado pela administração Cardoso contra a estrutura do Estado (antes, Collor já havia demitido milhares de empregados de diversas entidades da administração pública). A substituição de servidores concursados por pessoal terceirizado — sem garantias e sem concurso — foi o passo seguinte.

O terceiro passo — e mais grave — até então, não havia sido tentado em âmbito federal. Trata-se da delegação a empresas privadas da administração de repartições públicas.

Esta foi a receita aplicada em São Paulo pelo PSDB nos últimos dez anos. O sistema público de Saúde, por exemplo, passou a ser gerido por seus concorrentes da rede privada — uma das marcas da gestão Alckmin. Não há mais concursos: as administrações privadas contratam e demitem quem bem entendem.

Com a proibição da terceirização no serviço público federal pelo Tribunal de Contas da União, observou-se, a partir de 2003, uma tímida recomposição, com a abertura de concursos e a priorização da contratação pelo regime estatutário. Agora, a administração federal dá uma guinada: o Projeto de Lei Complementar 92, enviado ao Congresso em junho, autoriza o exercício de funções públicas por fundações de direito privado em diversas áreas.

Duas delas merecem destaque: Saúde (com expressa menção aos hospitais universitários, que o governo deseja ver transformados em Oscips — Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, a exemplo dos hospitais paulistas) e Assistência Social (o que, aliado à campanha contra a Previdência, denota uma clara disposição em desmantelar o sistema de Seguridade Social estabelecido pela Constituição de 1988). A gerência FMI-PT parece definitivamente empenhada em eliminar qualquer vestígio de diferença entre sua administração e a de seu sinistro antecessor.


1 A Infraero — Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária é uma empresa pública federal brasileira, criada pela Lei nº 5862, em 12 de dezembro de 1972, vinculada ao Ministério da Defesa, que administra infra-estrutura aeroportuária e aeronáutica, com 67 aeroportos, 81 unidades de apoio à navegação aérea e 32 terminais de logística de carga.
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