Na proporção em que aumenta o desemprego no país, cresce a violência do estado contra o povo pobre em luta pela sobrevivência, como é o caso dos vendedores ambulantes, uma categoria que aumenta desmesuradamente pelas mesmas razões.
Em julho, após um violento choque entre a guarda municipal e camelôs na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, Carlos Moraes Antunes declarou à imprensa que pretendia intensificar a repressão contra os camelôs, taxando-os de marginais. “A ação não foi violenta. A reação é que foi. Estamos lidando com marginais, contrabandistas, que têm até segurança, mas todos acham que são coitadinhos excluídos do mercado. O comércio ambulante mudou sua face. Vamos intensificar cada vez mais a repressão. Queria ocupar todo o espaço, mas não tenho efetivo para isso”, afirmou ele (jornal O Dia, 07/06/02).
Apesar da resistência, os ataques e constrangimentos permanecem. Alertados por amigos ou passantes, homens e mulheres, à menor suspeita da chegada do “rapa”, envolvem rapidamente suas mercadorias em toalhas e se afastam dos locais de vendas. Então, mesmo que não hajam apreensões, de uma ou de outra forma, o resto do dia pode estar perdido, porque a Prefeitura obriga os guardas a se comportarem como predadores, atacando sempre que têm fome, de tal forma que, sem dispor de uma vigilância, não é prudente realizar a venda de um único cortador de unhas.
Um depoimento
Trabalhando como camelô na cidade do Rio de Janeiro, J. D., casado e com filhos, sabe o que é ser tratado como um marginal. Em depoimento ao AND, falou sobre o mais recente choque ocorrido entre a camelotagem e a guarda municipal carioca, no dia 7 de outubro (um dia após as eleições), o qual culminou na desesperada atitude de um ambulante que, vendo-se sem a sua mercadoria — sua única fonte de renda — ateou fogo num guarda. Além disso, J. D. esmiuçou as causas desses conflitos, os interesses que correm por detrás da repressão, a vontade de trabalhar das pessoas que, em sua maioria nordestinos, são banidos do sistema, e se vêem obrigados, para sobreviver, a compactuar com uma humilhante rede de extorsão — avalizada pelo governo municipal.
Devido a repressão, o camelô não consegue se instalar no ponto por muito tempo. Tem sempre que mudar de ponto, sendo obrigado a ficar doze, quinze horas na rua para poder completar a diária, que chega a 15, 20, 25, 30 reais no máximo. Além disso, existem as suas despesas: ele almoça, bebe refrigerante, bebe água — o camelô tem fome, o camelô tem sede.
Fogo no guarda
O episódio se deu da seguinte forma: o policial tomou dois guarda-chuvas do camelô e ficou rindo, zombando dele. Depois, dirigiu-se para a viatura. Os dois guarda-chuvas eram a única mercadoria que o camelô possuía. Ele saiu andando pelo centro da cidade, quando, num determinado ponto, viu o indivíduo sentado no interior do carro. Arranjou uma garrafa de álcool, jogou no corpo do policial e ateou fogo — pegou do tórax para cima.
Segundo o raciocínio de J.D., o desenrolar desses fatos decorre, dentre outras coisas, do fato de que a guarda municipal é preparada para oprimir os ambulantes. Eles querem atuar como policiais, prendendo, espancando e reprimindo ao máximo os camelôs. Roubam suas mercadorias para, em seguida, revendê-las em outros municípios, em outros locais, haja vista que em todos os municípios existem camelôs.
Quando as ruas estão repletas de camelôs, os dirigentes lojistas cobram uma atitude do prefeito, que cobra uma atitude do comandante da guarda, que, por sua vez, baixa uma ordem para reprimir os camelôs. A mercadoria roubada pela guarda vai para um depósito, e, como o valor da multa para recuperá-la ultrapassa o seu valor, o camelô acaba perdendo o produto para a prefeitura que o distribui.
Da barraca ao pára-quedas
Conforme explica J. D., todos são camelôs, porém, o mais sofrido é o que está na calçada com o pára-quedas ou com o pequeno tabuleiro. Os que estão assentados, geralmente têm a banca de 1,10m, ou dispõem de um box, que é o caso dos camelôs da Scacem, da Central do Brasil, da Presidente Vargas, etc. Esses já são barraqueiros, assentados com o consentimento do poder público.
A prefeitura tem uma visão de que existem determinados pontos inviáveis para venda, mas está sempre errando. Foi o que aconteceu em relação ao camelódromo da rua Uruguaiana — um tiro pela culatra da primeira gestão do prefeito César Maia. Como havia muitos conflitos no centro da cidade, ele resolveu fazer o assentamento num terreno abandonado na Uruguaiana. Seria uma forma do camelô falir e ele se justificar. Só que eles não viram que ali era o centro da cidade, e por ali caminhavam a pequena e a média burguesia, que passou a comprar em razão do baixo preço. Assim, o comércio do camelódromo da Uruguaiana frutificou, e hoje eles já estão numa situação remediada, bem instalados e com freguesia pronta, onde um espaço já custa uma pequena fortuna. Passaram a sofrer, no entanto, um outro tipo de repressão, devido ao fato de serem vizinhos do comércio legal do Saara.
E J. D. diz taxativamente: “Os assentamentos, hoje, são concedidos pelo chefe da fiscalização juntamente com a prefeitura, e por trás desses assentamentos se organizam grupos cujos líderes são sempre policiais ou ex-policiais. Eles cobram uma taxa exorbitante de cada camelô, semanalmente, sem prestar contas. É o caso da Cabem, uma associação dirigida por um sargento da P2 chamado Paulo César. Nessa diretoria se encontram pessoas que sempre estiveram envolvidas na arrecadação de dinheiro para policiais, trabalhando com mercadoria e ferro-velho. O presidente era proprietário de um ferro-velho na Central do Brasil.
Na Uruguaiana, existem dois mil camelôs assentados; isso significa que eles têm uma arrecadação muito alta, ou seja, isso virou uma empresa para esses grupos que aterrorizam camelôs. E o vendedor fica acuado, se sentindo impotente para reivindicar. Ele só tem deveres nessas situações, e se submete a isso porque quer continuar trabalhando.”
Na Central
“Na Central do Brasil, os camelôs em frente à supervia, são extorquidos pela Guarda Municipal, e à noite, tem dois guardas municipais que chegam lá à paisana, ex-PMs do nono batalhão: fazem a extorsão na cara-de-pau. Pela manhã, tem dois negões, e nem sabemos o nome deles, só andam à paisana, pegando o dinheiro do camelô — ou dá ou desce, ou paga ou não trabalha. Como os camelôs estão desorganizados, individualizados, são obrigados a se submeter a essa situação. Mas já existe, no centro da cidade, um grupo de camelôs que se organizam entre si contribuindo com um real semanalmente. Esse grupo tem assegurado para si o empréstimo imediato logo que perdem a mercadoria para o guarda municipal ou para a fiscalização. Isso já vem acontecendo há cerca de três anos e tem dado resultado.” “Tem camelô há mais tempo na rua, está mais estabelecido, e como o sistema oferece a ele a perspectiva de crescer, ele acha que com duas, três barracas, vai ficar rico. Ledo engano. O camelô não é dono do ponto, ninguém é dono de nada, pois quando chega a fiscalização, todo mundo tem que sair correndo. Existe, no entanto, um respeito, uma ética entre os camelôs. Se eu me estabeleço num ponto e todo dia estou ali trabalhando, o meu vizinho respeita o meu espaço. Esse é o respeito ético que existe entre os camelôs, cada qual respeita o seu espaço, mas ninguém é dono de nada. Tem camelódromo em que os dirigentes levam os candidatos de barraca em barraca avisando: “esse foi o que ajudou a botar vocês aqui, portanto agora nós devemos votar nele, pra gente continuar aqui. E isso é uma enganação, até porque muitos camelôs hoje repudiam esse sistema eleitoral, eles sabem que os políticos não fazem nada para ninguém, e que o assentamento é provisório. A imprensa burguesa, por sua vez, tenta desmoralizar o camelô, dizendo que o camelô é violento, agressivo, faz do ponto um ponto de drogas, e isso é mentira, porque eu já estou há muitos anos na pista e nunca vi camelô vendendo tóxico”.
Camelô: o informal desmascarado em São Paulo
Tornam-se cada vez mais freqüentes as manifestações dos camelôs
A história do comércio informal no estado de São Paulo e, principalmente, na sua capital, tem início com a assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, resultado de séculos de luta e resistência dos negros do Brasil.
O primeiro conflito registrado entre comerciantes (donos de estabelecimentos) e vendedores ambulantes é de 1889, na região da Rua 25 de Março, zona central de São Paulo. Hoje, a chamada “feirinha” da 25 de Março, tradicional ponto comercial de São Paulo, emprega cerca de 20.000 pessoas entre ambulantes, fabricantes e montadores de bijuterias.
Apesar de sua importância, esse tipo de trabalho sempre foi marginalizado e as pessoas que estivessem envolvidas diretamente com ele eram rotuladas de desocupadas, criminosas.
Mas quem, de fato, são os desocupados e criminosos? Quem não se lembra da CPI da Máfia dos Fiscais, da gestão de Paulo Maluf e Celso Pitta, que acabou com dezenas de pessoas presas (grande parte, fiscais da prefeitura) e entre elas o ex-deputado Hanna Gharib? Ou então do atentado a tiros que sofreu o líder dos camelôs do Brás, Afonso José da Silva, no começo de 1999, por ter iniciado a denúncia de extorsão que os camelôs sofriam dos fiscais? Ou das diversas tentativas de retirada dos camelôs por parte da prefeitura – com o uso da tropa de choque –, a luta e resistência pelo direito de continuarem trabalhando?
É importante constatar que na maioria dos conflitos que aconteceram nos últimos anos entre camelôs e comerciantes, os camelôs foram tratados como animais pela PM. Quase sempre, idosos, crianças e jovens são espancados pela polícia em desocupações movidas pelas prefeituras.