Os guaranis, em Santa Catarina há cerca de 1000 anos, não possuem até hoje (à exceção de uma diminuta área em Biguaçu) um único centímetro do seu território homologado. O professor Werá Tupã Leonardo, um dos líderes da aldeia de Morro dos Cavalos, fala nesta entrevista ao AND do clamor maior de seu povo: a luta pela terra, que vem sendo travada valentemente, apesar do poder de fogo dos inimigos — gover-nantes, empresários e latifundiários — que querem expulsá-los das valorizadas áreas do litoral catarinense.
Werá Tupã Leonardo, esquerda, no lançamento da Campanha pela demarcação das terras indígenas, agosto de 2005
Werá Tupã Leonardo — Minha aldeia fica no litoral, no Morro dos Cavalos, município de Palhoça, a 35 quilômetros de Florianópolis. Sua área é de 1.988 hectares. A BR-101 passa bem no meio dela. Ali vivemos em 200 pessoas.
Nossa terra não está demarcada nem homologada. Na verdade nenhuma terra guarani em Santa Catarina, litoral ou interior, está legalizada. A não ser a aldeia de M’biguaçu, que é bem pequena, pouco mais de 50 hectares.
As aldeias estão em estágios de legalização, administrativo, diferentes. Tem algumas que não estão nem identificadas, que a Funai nem aceita.
Mas estamos unidos, a luta pela terra é uma só. E é inegociável.
Em outubro de 2001, a Funai criou um “grupo técnico” para estudar a questão do Morro dos Cavalos. Até junho de 2003 a Funai recebeu documentos de pessoas, empresas, prefeituras e governo do Estado manifestando suas posições sobre a demarcação de nossa terra.
Os pareceres foram favoráveis e, no dia 6 de outubro de 2003, a Funai enviou todos os documentos ao ministro da Justiça, pois é ele quem decide a demarcação.
O ministro tinha 30 dias para assinar a Portaria Declaratória, ou seja, até 6 de novembro de 2003. Mas não fez nada. Já estamos em janeiro de 2006 e a questão está parada. Não há nenhum impedimento administrativo, no papel está tudo certo, só falta o ministro Thomaz Bastos assinar.
Mas politicamente que é o problema. Porque o governo do Estado (Luis Henrique da Silveira, PMDB), empresários e fazendeiros não querem que se demarque.
A causa, a gente já sabe: inversão de capital. Como ali é um lugar que tem muita mata e está perto da praia, então o pessoal fica de olho. Para construir hotel, essas coisas. É um bom lugar para eles ganharem dinheiro.
Mas acontece que aquela é uma terra dos guaranis e isso é inegociável. Não queremos sair e não vamos sair. E acreditamos que vamos vencer.
Werá — Politicamente, para os governos, para o Estado, a questão indígena é complicadíssima para eles. Porque sabem que os índios, por serem originários, tem muitos direitos. E procuram tapar isso. Tanto que, ao longo desses 500 anos, já tentaram, e ainda continuam tentando, acabar conosco de todas as formas.
Para nós fica cada vez mais óbvio que os inimigos diretos dos índios são os governos, os latifundiários, os grandes empresários, os ricos. Os ricos em geral. Eles têm medo dos nossos direitos.
Por outro lado, sabemos que temos amigos e aliados. Mas precisamos escolher bem e tomar cuidado. Porque tem aqueles que começam nos apoiando, mas quando conseguem um destaque, mudam. Começam a mudar de lado. Muitas vezes a gente escolhe um caminho, acha que está certo e, de repente, estamos nas mãos dos capitalistas, fomos envolvidos por eles. Isso tem acontecido muito. Isso nos enfraquece e enfraquece a luta.
Mas um dos lados bons dos guaranis, um dos lados que nos fortalece, é que ao lutarmos pela terra, lutamos pela terra de todos. Como o Morro dos Cavalos, hoje. É uma luta daquela comunidade, mas o sentido dessa luta, para nós, é que a terra é para todo o povo guarani. O dia em que conquistarmos aquela terra, ela não será só dos que moram no Morro dos Cavalos, mas de todos os guaranis.
Além disso, quando a gente conquista uma terra, não a dividimos. Não dividimos e não cercamos. De fato, ela é de todos. As casas também são de todos. Se um dia uma família sai de uma casa, vem outra e mora lá, tranquilamente.
Se fizéssemos diferente, sairíamos de nossa cultura e cairíamos no individualismo, seguindo o mesmo padrão do capitalismo. Seria o fim!
Werá — Nossa aldeia existe, historicamente, há muito tempo. Na chegada dos juruás [portugueses, espanhóis, os não-índios], os guaranis já estavam naquela região. Ali ao lado do Morro, na baixada do rio Massiambu, havia uma aldeia grande. Ali tinha muita água, água boa, e era ali que os guaranis plantavam.
Hoje, o lugar onde estamos vivendo é totalmente morro, muito inclinado, não dá para plantar quase nada. E também pega muito vento. Então o milho e o feijão, eles vêm bem mas quando pega vento, caem todas as flores e os frutos não nascem. É o que tem acontecido.
Então só com a demarcação é que a gente vai ter um espaço de baixada para poder plantar, o que é quase impossível hoje. Até a banana não dá bem porque o vento pega, estraga as folhas e os frutos quase não vêm. Mesmo assim, a gente “sua” para ter um pouco de agricultura. Alguma coisa de aipim, banana, batata. E uma horta comunitária.
A nossa sobrevivência hoje vem da confecção de artesanato — que a gente não queria, não faz parte da tradição vender artesanato —, mas foi a única forma encontrada. Outro pouco do sustento que conseguimos vem daqueles guaranis que têm emprego [Obs: geralmente são contratados por órgãos públicos para trabalharem nas próprias aldeias, nas escolas e postos de saúde]. Quando eles recebem o salário, repassam uma parte, ajudam todo mundo.
Recebemos também merenda escolar e doações de comida e roupas.
Werá — A educação tradicional guarani está caminhando. Mas a educação escolar continua complicada. Tem muita coisa nela que não se identifica com a nossa cultura. A gente vai ter que mudar isso.
História, geografia, para nós teria que ser de outra maneira. Teria que ser explicado de outra maneira. Será que só o juruá é que tem ciência? E só se pode ensinar a ciência dele?
Isso prejudica o aprendizado de nossas crianças.
A escola ideal teria que começar mudando a estrutura toda. E nisso pensando também em como se relacionar com o Estado, com os municípios e o sistema de escolas não-indígenas [Obs: a maioria das escolas das aldeias só possui até a 4ª ou 5ª série do fundamental; a partir daí o aluno índio é obrigado a frequentar um colégio convencional].
Quanto ao conteúdo, ao currículo, era preciso que tudo fosse explicado na língua guarani e da forma guarani. Hoje não é assim. Nossas crianças não sentem que estão em escolas indígenas.
A gente também tem que ter livros didáticos próprios, compatíveis com a nossa cultura. Mas dizem que não há verba. Os livros didáticos que usamos são todos feitos por juruás. Vários professores guaranis lutam contra essa realidade, rompem isso dentro das salas de aula. Mas ainda é a minoria.
Porém a gente vai continuar lutando. Uma das coisas que a gente pensa é que tem que reforçar a cultura, porque a cultura é que nos fortalece.
Agora estamos pensando em fazer um novo modelo de organização. Queremos criar uma comissão que possa levar essa preocupação cultural a todas as aldeias do estado.
Dentre os aspectos da cultura que queremos reforçar, em primeiro lugar está a língua. Achamos que a língua já está correndo risco. Porque a gente já anda misturando muito com o português. Com o tempo, se isso continuar, os jovens poderão vir a perder a língua.
Queremos também reforçar a dança, a música, os outros hábitos, a vida dentro da aldeia. Enfim, viver mais de acordo com aquilo que chamamos o “nosso modo de ser”.
É preciso também continuar as práticas nas “casas de reza”, as opy. Não se pode perder esse costume. É bom explicar que as nossas opy não são como as igrejas dos juruás. A nossa religião é diferente e as opy são quase que como universidades. São lugares onde a concentração, os rezos, os cantos, levam a muitos aprendizados importantes. Os pajés repassam a sabedoria, o conhecimento.
Muita gente não nos respeita porque acha que não temos mais a cultura. Não vêem e não acreditam. Por isso, há alguns anos, os pajés autorizaram que nossas músicas começassem a ser mostradas aos juruás. Muitas aldeias gravaram CDs, e continuam gravando. Mas isso ainda é pouco. Muito pouco.
Perto do Atlântico
Segundo levantamento de 2004, chegava a 14 o número de aldeias guaranis no litoral de Santa Catarina. Devido à constante flutuação, não se tem uma idéia exata da quantidade de habitantes. As estimativas variam de 500 a 1000 pessoas.
Após a invasão espanhola e portuguesa, esses indígenas “desapareceram” das praias catarinenses no século 17 — levados como escravos pelos bandeirantes; mortos nesses ataques dos paulistas, pelas doenças ou fugiram para o interior.
Somente 300 anos depois os pajés autorizaram o retorno ao litoral, território de enorme importância histórica, religiosa e mítica para esse povo, em sua busca da Terra Sem Mal, que estaria situada no Atlântico ou em suas proximidades.
Por volta de 1920, grupos de guaranis começaram a chegar à beira do mar catarinense, tentando estabelecer-se nas mesmas áreas geográficas onde ficavam suas antigas aldeias, em 1500.
O Morro dos Cavalos começou a ser ocupado pelos índios aproximadamente em 1930, com uma família que viera conduzida por sua idosa avó, ao ordenar o retorno ao Atlântico.
Coincidentemente, ao lado do Morro fica a baixada do Massiambu, onde a história apontava a existência, no século 16, de uma importante aldeia guarani. A mesma que, em 1516, recolheu os primeiros homens brancos que viveram em Santa Catarina: os náufragos da expedição de Juan Diaz de Solís.
Entre eles estava Aleixo Garcia, que alguns anos depois seria guiado por aqueles índios até o império inca, nos Andes, através do Caminho de Peabiru, como relatamos no livro A saga de Aleixo Garcia, o descobridor do império inca (Coedita, 2005).
O líder Werá Tupã confirma que seus antepassados conviveram com Garcia no Massiambu, atestando a antiguidade da presença guarani naquela área.
Um povo sábio
A tribo guarani provavelmente formou-se na Amazônia, na região da atual Rondônia, mais de 3 mil anos atrás. Depois, migrou lentamente em direção ao sul, ocupando partes da Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e o sul-sudeste do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo).
Era uma extensa e poderosa nação indígena, talvez somando dois milhões de pessoas. Hoje, não passam de 130 mil.
Os guaranis eram (e ainda são) um povo extremamente sábio.
Seus conhecimentos astronômicos, desprezados e ignorados, começaram a ser investigados pelos não-índios apenas há poucas décadas. O respeitado astrônomo Ronaldo Mourão, por exemplo, conta num de seus livros que os tupis e os guaranis sabiam da influência do Sol e da Lua sobre o movimento das marés. Isso, segundo ele, foi registrado pelo francês D´Abbeville, que esteve no Brasil em 1614. Diz Mourão que somente em 1687, portanto mais de 70 anos depois, é que o famoso Isaac Newton chegou à mesma conclusão!
Na verdade, os guaranis investigam as estrelas até hoje.
O premiado astrônomo e físico Germano Bruno Afonso, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), sempre afirma, em suas entrevistas, que vai constantemente às aldeias para trocar informações astronômicas com os pajés guaranis. Em 2000, Afonso e uma tribo amazônica ganharam o Jabuti — o mais cobiçado prêmio literário brasileiro — pelo livro O céu dos índios Tembé.
Em 1500, quando os europeus — por culpa da ignorância da Igreja — não tomavam banho, quando suas cidades eram imundas e por causa disso viviam sofrendo pestes catastróficas, os guaranis tinham uma alta sabedoria em termos de higiene e saúde — como informa o professor Dionisio Gonzalez Torres, da Universidade Nacional de Assunção, Paraguai, na obra Cultura Guarani. Banhos diários, limpeza das casas, cuidado com o lixo, fabricação de repelentes contra insetos, realização de saudáveis jejuns. Naquele tempo — diz Gonzalez Torres — os guaranis também já aplicavam massagens terapêuticas e utilizavam até a hipnose para o tratamento de certas doenças.
Conheciam, ainda, ervas para evitar filhos. Quer dizer: os guaranis conheciam (e ainda conhecem) o anticoncepcional vegetal que os ricos laboratórios imperialistas estão, insistentemente, procurando descobrir há anos.
De acordo com o professor Gonzalez Torres, os guaranis dominavam a botânica e a zoologia com grande exatidão e precisão científica. Principalmente na descrição, classificação e propriedades de plantas, conhecimentos que apenas bem mais tarde foram “descobertos” e confirmados pela ciência ocidental.
Até os dias atuais, os melhores dicionários médicos do mundo trazem mais de 1.100 gêneros botânicos que foram ensinados aos cientistas ocidentais pelos índios brasileiros. Sabe o leitor o que isso quer dizer? Que a Medicina do planeta seria bem menos avançada, que muitas vidas não estariam sendo salvas, não fosse a rica contribuição dos indígenas do Brasil. Contribuição sem retribuição, diga-se de passagem.
Na sabedoria guarani, outro destaque é a agricultura.
Ao contrário do que diz a maioria dos livros escolares — que o nomadismo desse povo era significativamente veloz e que sua subsistência primordial vinha da caça, pesca e coleta de produtos no mato ou nas pedras à beira do mar — se está consolidando uma outra tese: a de que eles privilegiavam a agricultura. Muito mais do que se imaginava.
Enquanto seus parentes tupis baseavam sua atividade principal na mandioca, os guaranis a baseavam no milho. O milho, segundo a hipótese mais aceita, surgiu inicialmente no México. Mas na América do Sul quem ajudou a domesticar, preservar e expandir a planta, foram principalmente os povos dos Andes, entre eles os incas do Peru, e também os nossos guaranis.
Os estudiosos dizem que os guaranis estudaram, utilizaram, multiplicaram e difundiram no mínimo 13 tipos de milho. De todas as cores e tamanhos.
Esses antigos conhecimentos indígenas sobre o milho foram pesquisados pela geneticista estadunidense Barbara McClintock, já falecida, e deram a ela o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1983. Ela investigou os saberes dos mexicanos, andinos e guaranis e recebeu o Nobel. Fazendo justiça, poderíamos dizer que os nossos índios também foram os ganhadores desse prêmio internacional.
Com a ajuda das tribos, McClintock — que era da Universidade de Cornell, USA — identificou 10 cromossomas do milho, descobrindo elementos genéticos móveis. Sua análise celular da planta foi a primeira a demonstrar que o entrecruzamento de organismos é acompanhado por um intercâmbio físico entre cromossomas homólogos. Seu trabalho, com o milho, contribuiu para a compreensão de fatores hereditários nos seres humanos.
Mesmo perseguidos, escravizados, explorados, os guaranis guardaram boa parte das preciosas sementes originais. E assim o fazem até hoje.
Assumiram a missão de nunca perder o milho original, que eles chamam de “milho verdadeiro”. E o tratam como se fosse gente, um ser humano em forma de planta. Tanto que o nome desse vegetal, em seu idioma, é “abachi” ou “avachi”, que significa “pessoa com barba”. Os estudos de Bárbara McClintock comprovaram que eles sempre tiveram razão nessa comparação homem/vegetal, coisa que muitos não-índios, em sua ignorância, consideravam absurda e “folclórica”. Viu-se que entendendo a genética do milho, era possível também entender a genética do ser humano.
Mas isso os guaranis já sabiam há muito tempo. Mesmo sem terem estudado na sofisticada Universidade de Cornell…