Anunciada com toda pompa e circunstância por Ciro Gomes, Ministro da Integração Nacional da gerência FMI-PT, a decantada transposição do Rio São Francisco — alentada por todas as administrações servis ao USA, desde o período militar — ameaça se tornar realidade apoiada por intensa e mentirosa campanha no monopólio dos meios de comunicação e nas farsantes audiências públicas que buscam apoio popular ao projeto, mas que devido aos protestos não têm sido realizadas.
Banhando os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, a bacia abrange 9 % dos municípios do país (504) e, segundo o censo do IBGE de 2000, 13 milhões de pessoas. A história dessa região densamente povoada é a própria história do rio, um dos principais fatores do desenvolvimento em suas margens.
Ainda assim, a bacia do São Francisco ainda é uma das regiões mais pobres do país, onde o latifúndio montou praça forte, sustentado, claro, pelas relações de trabalho semifeudais. Durante décadas, os ribeirinhos assistiram a volumosa migração dos flagelados pela seca e pelo latifúndio do semi-árido, que desciam pelas águas do São Francisco até Pirapora, Minas Gerais, de onde partiam de trem principalmente para São Paulo. A água era limpa, a piscosidade um tesouro, assim como os diamantes. A cultura popular salta aos olhos dos visitantes, mas a música, a poesia, o artesanato, a comida, as festas são tradições para os autóctones. Hoje degradado, o rio ainda despeja, em média, 2.700 m³/s de água na foz, entre Alagoas e Sergipe.
Projeto antigo
— O projeto da transposição não é do Lula nem do Ciro. O próprio PT ajudou a derrotar a transposição na época do Cardoso. O projeto original é do (ex-ministro) Mário Andreazza, apresentado em 1982 — revela Apolo Heringer Lisboa, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Projeto Manuelzão, da mesma universidade. O projeto abrange toda a bacia do Rio das Velhas, um dos principais afluentes do São Francisco.
No dia 13 de março, em cadeia nacional de rádio e televisão, Ciro repetiu várias vezes a tese de que “apenas” 1% da água que o São Francisco joga no mar seria utilizada na transposição, dizendo com todas as letras que “hoje (essa água) não é usada para nada”.
Pura ignorância, uma vez que, em absoluto, o rio não é responsável por desperdício de água. Ele cumpre sua função de carregar sedimentos e alimentar a fauna e a flora dos mangues no litoral, berçários da vida marinha. Além disso, o volume de água do rio determina até onde ele pode avançar mar adentro, sendo que a diminuição ocasionaria o avanço do mar sobre o rio, impedindo o transporte tão necessário ao litoral.
Apolo explica ainda que ninguém pode ser contra uma transposição de bacia por princípio, mas que é preciso investigar todas as possibilidades e consequências, além da viabilidade de qualquer projeto desse tipo.
— Quando posso fazer transposição ou irrigação de bacia para irrigação? Quando tenho uma bacia hidrográfica com muita água, que não é o caso do São Francisco (que já vive stress hídrico), e não tenho terra boa para irrigar. Ao meu lado tem uma bacia com uma terra ótima sem água. E a altitude entre elas é mínima, 20, 30 metros, 50 metros no máximo. Eu tiro água de onde tem muita e levo ali para o lado. Agora, tirar água do São Francisco, elevar a 167 metros, ou mais de 360 metros, para ir para Pernambuco e Paraíba… Além disso, são 2.200 km de canais, com 30 km de aquedutos e outros tantos de túneis e montanhas. Setecentos quilômetros desses canais são de concreto, com profundidade de 5 metros. Isso é uma loucura total. Isso é um crime de lesa-pátria contra o Brasil.
Humanitarismo servil
Outra justificativa ao projeto é “humanitária”. Levar água às mais secas regiões do Nordeste para “matar a sede” da população. No mesmo pronunciamento, Ciro disse se tratar de uma obra apoiada por “todos que sempre se indignaram com a revoltante, com a vergonhosa indústria da seca”. Apolo pensa diferente:
— Esse projeto de transposição é um projeto suspeito de estar a serviço das empreiteiras, de interesses eleitorais, manipulado pela secular indústria da seca no Nordeste. A indústria da seca primeiro trabalhou com os açudes, ganhando muito dinheiro, beneficiou famílias de latifundiários; depois começou a trabalhar caminhão-pipa, estão fazendo até trem-pipa. O lobby do cimento e do aço está nisso. Se o PT fizer isso, ele vai ficar 20 anos sendo financiado por essas empreiteiras.
E emenda:
— Armam uma pressão onde quem é contra a transposição é contra os nordestinos. Eu não conheço nenhum técnico nacional, gente da SBPC, pessoas de todo sistema de geólogos, hidrogeólogos, entidades como o CREA (conselhos regionais de engenharia e agronomia) e Associação Brasileira de Engenharia Sanitária que seja a favor. Todo mundo é contra. Só os técnicos empregados pelo Ministério da Integração Nacional é que são a favor desse projeto. E o pessoal do Ministério do Meio-Ambiente, porque a Marina Silva se transformou na pior ministra do meio-ambiente de todos os tempos.
O projeto prevê a construção de cerca de 700 quilômetros de canais de concreto de 25 metros de largura por 5 de profundidade, túneis através de montanhas e a elevação da água a 370 metros no eixo leste, com captação em Cabrobó, PE, e 170 metros no eixo norte, em Sobradinho, BA. A idéia é aproveitar os leitos secos dos rios e direcionar a água transposta para os açudes que, transbordando, perenizariam os demais rios.
— A solução para o Nordeste não é concentrar mais água nos açudes. É como atender a demanda por água espalhada pela região toda, onde estão fundamentalmente famílias de camponeses pobres. A única forma de fazer isso é pela chuva. Não é possível colocar um cano em cada casa daquela região imensa. Se um canal de água, que vai para os açudes e sai dos açudes indo para os rios secos, resolvesse os problemas, não haveria miséria no Vale do Jequitinhonha, que é perene e tem muita água. Por que há miséria no Norte de Minas, na Bahia e nos demais estados onde passa o São Francisco? — indaga Apolo.
Não falta chuva
O problema da água no Nordeste, segundo Apolo, não é a falta de chuva, uma vez que a precipitação anual em todo semi-árido é de cerca de 700 milímetros anuais, mais do que o necessário para a população. Acontece que essa chuva cai apenas durante três meses e, devido ao terreno cristalino aflorante de grande parte da região, escoa toda para os rios. Sobre isso ele é enfático: — O homem é que precisa se adaptar ao semi-árido. A princípio, eu não posso mudar o clima e a geologia do semi-árido. Tenho que me adaptar e produzir estudando a região e descobrindo características que possam ser desenvolvidas lá.
Tal poderia ser feito com a construção de cisternas que captassem e armazenassem a água da chuva nos meses de seca. Poderiam ser construídas pelos próprios camponeses e seu custo seria de 600 milhões de dólares (1,5 bilhão de reais), bem menos que os 4,5 bilhões de reais previstos para a execução da transposição. Porém, Apolo alerta ainda para o fato de que esse cálculo do ministério está errado:
— A transposição do São Francisco é um projeto caríssimo. Eles estão mentindo mais uma vez quando dizem que vão gastar 4,5 bilhões de reais. A primeira fase é que vai consumir esse montante, quando vai ser feita a tomada de água. A energia elétrica para bombear a água é o equivalente a 1,5 Usina de Três Marias. Depois que subir isso, tem que subir em alguns outros lugares (mais energia elétrica), é preciso furar quilômetros de túneis nas montanhas. É uma obra para mais de vinte anos, não vai acabar nunca. Como eu tirei água daqui, vai ter menos água para produzir energia elétrica nas usinas hidrelétricas que estiverem adiante. Somando o que eu gasto para fazer a transposição com o que eu perco na geração de energia, eu tenho uma perda de 540 mw. E aponta um cálculo mais realista:
— Na verdade, o custo real será de 10 bilhões de dólares, calculado pelo CREA. Eu acho que o cálculo varia entre 7 a 10 bilhões de dólares somente para a construção da estrutura, sem manutenção, sem pagar os juros desse dinheiro, sem contabilizar o custo do pagamento da energia elétrica. A água fornecida para irrigação no Nordeste Setentrional é cinco vezes mais cara do que a água captada no São Francisco. A terra lá é pior. Então, não tem sentido científico (todo mundo que mexe com irrigação fala isso).
A técnica do atraso
Claro está que o principal problema não é técnico — em que pese todas as dificuldades nesse sentido —, mas político. Não é preciso se deter muito no projeto para perceber que os seus beneficiários serão os que sempre se beneficiaram de políticas públicas no campo: os latifundiários. Vendo-se ultrapassados pelo latifúndio de novo tipo, designado de agro-negócio pela atual tecnocracia, os antigos coronéis do Nordeste vislumbram na transposição uma oportunidade única para valorizar suas terras especulativamente, intensificar a expropriação e a exploração da força de trabalho camponesa.
Os latifúndios, pela força dos jagunços e das relações atrasadas de produção, sempre se localizaram nas margens dos rios e dos açudes, comportando-se como proprietários da água ali contida. Os camponeses pobres sempre tiveram que contar com a “benevolência” dos coronéis para ter acesso à água.
Toda demagogia de que a transposição irá beneficiar os flagelados pela falta d’água se constata ao perguntar qual será seu destino após a execução do projeto:
— No eixo norte, mais de 80 % da água está prevista para irrigação do agro-negócio, produção de frutas por empresas exportadoras e criação de camarão — no Ceará e no Rio Grande do Norte. Quatro por cento dessa água, no máximo, vai atender algumas famílias por aí. Inclusive existe uma proposta de fazer uma pequena reforma agrária nas margens do canal, alguns quilômetros, para dividir o movimento camponês e conseguir mais apoio. Para fragilizar e dividir o povo. O movimento camponês de maior expressão na região, a Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas, tem combatido e denunciado os beneficiários e os que se escondem por trás do projeto: — O que é preciso denunciar é que com essa transposição os ricos vão ficar mais ricos, o governo vai roubar mais, e os pobres vão ficar mais pobres!
A grande burguesia, através do Banco Mundial, suas empresas protegidas e suas concessionárias, vão ganhar. Como aconteceu no Projeto Jaíba. Milhões de dólares investidos, emprestados para o Estado reacionário brasileiro. Tudo que foi utilizado foi comprado de empresas japonesas. O dinheiro veio do Banco Mundial, passou por aqui e ficou a dívida.
Ou seja, sem terra no Projeto, sem terra em volta dele, e com oferta ao latifúndio de trabalho semi-escravo. É isso que vai significar a transposição do São Francisco para os camponeses pobres!” (trechos da carta aberta da LCP-NM divulgado por e-mail em 11 de abril de 2005). O geógrafo Aziz Nacib Ab’Sáber, ex-presidente e membro efetivo do conselho da SBPC, também não tem ilusões sobre o projeto:
“O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da chapada do Araripe —com grande gasto de energia!—, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria.” (A quem serve a transposição do São Francisco, Folha de São Paulo, 20 de fevereiro de 2005)
Fracassam as audiências
Para dar uma fachada democrática ao projeto e responsabilizar a sociedade pelo fracasso que advirá dele, os ministérios do Meio-ambiente e da Integração Nacional têm promovido audiências em várias localidades. Porém, nos dias 25, 27 e 31 de janeiro, em Belo Horizonte, Salvador e Aracaju, respectivamente, protestos de índios, movimentos camponeses, comitês de bacias hidrográficas e outros setores impediram a realização das audiências. Seguiram-se Pirapora e Montes Claros, em Minas Gerais.
— Nós estamos enfrentando as pessoas do Ministério do Meio-Ambiente nas audiências públicas que eles tentam fazer e não conseguem. Em Montes Claros a derrota foi pior que em Belo Horizonte. Elas se surpreenderam: tinha 200 pessoas lá e eles não conseguiram abrir a boca, diz o coodenador do Projeto Manuelzão.
Soluções como as cisternas, entretanto, só serão possíveis em um outro tipo de Estado, em uma nova democracia onde as forças produtivas tenham espaço para se desenvolver, com os conhecimentos científicos e os meios de produção que não estejam monopolizados por classes reacionárias e entreguistas.
A mensagem final de Apolo Heringer Lisboa não deixa dúvida sobre a disposição dos camponeses pobres, das organizações classistas e demais setores da sociedade que efetivamente “sempre se indignaram com a revoltante, com a vergonhosa indústria da seca”: — Nós temos que barrar esse projeto. A transposição não pode sair de jeito nenhum. Tudo que for possível fazer para impedir tem que ser feito.