A universidade nas mãos do FMI

A universidade nas mãos do FMI

Se depender do governo continuísta, a universidade pública, gratuita e de qualidade terá seus dias contados. Em entrevista à AND, Roberto Leher — professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Andes-SN (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior- Sindicato Nacional) — contou como e por quem a “Reforma” Universitária vem sendo implementada. Segundo Leher, essa verdadeira contra-reforma tem a mão do Banco Mundial (o caixa duro do Fundo Monetário Internacional – FMI) e faz parte de um processo maior de mercantilização da educação, sob o controle ideológico do imperialismo, e elimina os limites entre o público e o privado, decretando a morte gradual da produção científica brasileira.

 

Roberto Leher: “o objetivo do ministro Genro é extinguir a fronteira entre o que é público e o que é privado

A importação de modelos culturais e pedagógicos talvez faça parte de nossa história desde que os primeiros jesuítas portugueses impuseram a visão cristã e européia de mundo. No século XVIII, o liberalismo — notadamente o inglês — incutia na elite local os valores capitalistas. No século seguinte, era o padrão francês que contagiava os intelectuais: currículos foram se adequando e o positivismo ajudou a construir a idéia de nação burguesa.

No século XX, o dogma educacional e cultural europeu na América Latina é substituído por outro, durante a ascensão do USA, particularmente após a Segunda Guerra, quando o capital ianque passa a ter grande presença nas potências capitalistas.

Invocando a “modernização”, modelos pedagógicos correspondentes à tecnologia empregada pelos magnatas ianques passaram a ser impostos em toda a América Latina, impiedosamente. No contexto da chamada Quarta Estratégia do Imperialismo Ianque (1945 a 1975 — Guerra Fria) ocorre a mais terrível ofensiva anticomunista (de 1945 a 1961, quando funcionou a famigerada Doutrina Truman, centro da Guerra Fria, da chantagem nuclear, das perseguições aos comunistas e democratas, inclusive no USA). São firmados, entre os países sob o domínio do imperialismo ianque e o Departamento de Estado do USA, inúmeros e vergonhosos acordos, nos quais o Brasil foi incluído pelas mãos das classes dominantes internas.

Ainda que a primeira grande ofensiva ianque bem sucedida no Brasil tenha iniciado em décadas anteriores, particularmente no período da Política de Boa Vizinhança (correspondente à Terceira Estratégia — 1935-1945), é na sua quarta estratégia que o USA reúne as condições objetivas e subjetivas para se apoderar inteiramente do aparelho de Estado brasileiro.

Em meados do século XX, a economia brasileira já se encontrava em mãos dos magnatas ianques1. Somente dois anos após o golpe contra-revolucionário de 1964 é que se torna público o Acordo MEC-Usaid e já alguns termos aditivos, celebrado pelo Ministério da Educação (MEC) e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês United States Agency for International Development). Representantes do MEC receberam treinamento em universidades do USA e depois disseminaram a filosofia pedagógica útil ao imperialismo. O estudioso José Oliveira Arapiraca2 observa que o projeto tinha claras intenções de garantir o lucro do capital estrangeiro ao internalizar os valores competitivos do império.

Ao mesmo tempo em que se empunha a contra-reforma imperialista no ensino, outros planos foram desenvolvidos e praticados. Alguns deles surgiram na forma de ajustes estruturais para escravizar a imprensa brasileira e todos os setores da comunicação ideológica, ao longo desses 40 anos de domínio e aperfeiçoamento semicolonial ianque em “parceria” com as nativas oligarquia latifundiária e burguesia burocrática.

O garrote vil da “educação”

Mas, até que ponto a atual contra-reforma FMI-PT se aproxima do acordo MEC-Usaid? “A reforma MEC-Usaid tem como pressuposto que o ensino superior para um público maior seja privado — orientação seguida pelo governo Lula da Silva”, diz Roberto Leher. “Outra similaridade, é o processo de ‘modernização’, trazido a partir de forças externas, ainda que em aliança com setores internos. Mas há nuances que são importantes. Nos anos 70, o fortalecimento de certas estatais demandava pessoal qualificado e, por isso, os centros de pesquisa dessas estatais se fortaleceram. Acho que o período atual — de Luiz Inácio, Fernando Henrique e Collor — é marcadamente diferente, porque novamente há a supremacia da formulação liberal. Os setores dominantes, que estão representados no governo, não precisam da universidade. É o setor financeiro, de agronegócios e de exportação de commodities de forma geral. Nenhum deles precisa da universidade.”

No artigo A contra-reforma universitária de Lula da Silva, Leher alude ao papel da Ong francesa Orus (Observatoire International des Réformes Universitaires) na execução da reforma. Ele fala de um tripé formado por essa Ong, pelo governo “brasileiro” e pelo Banco Mundial, armado para construir “um falso consenso que poderá redefinir profundamente a universidade brasileira e, quiçá, de diversos países latino-americanos, representando a vitória de um projeto asperamente combatido (…): a conexão com o mercado e, mais amplamente, a conversão da educação em um mercado.” A presença da Orus serviria de fachada para legitimar uma reforma que tem diversos pontos espúrios, inclusive o fato de estar sendo arquitetada por um banco.

“A Orus foi chamada na época do Cristóvam (Buarque, ex-ministro da Educação) para dar um verniz epistemológico à Reforma. Porque a Reforma tem um rosto muito feio: é privatizante, retira direitos, enfraquece o ensino público”, alerta Leher. “O Cristóvam está ligado a essa organização, mas não muda muito com Tarso Genro (atual ministro da Educação). Talvez saia a Orus e entre outro tipo de assessoria internacional”, completa.

E como entender um banco interferindo em assuntos educacionais?

O professor responde: “O Banco Mundial não tinha vinculação maior com a educação: financiava parcialmente a Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization/Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), mas não tinha vinculação direta. Começa a se interessar por educação quando passa a operar não só na sustentação de modelos econômicos, mas entende que é preciso atuar na governabilidade dos países, no controle ideológico — sobretudo no período da Guerra Fria. E a educação entra muito nisso. Na década de 90, o Banco Mundial passa a atuar em consonância com a Organização Mundial de Comércio (OMC) para adequar o sistema de ensino superior à mercantilização.”

Parceiros no crime

O governo entreguista mostra-se um perfeito parceiro do Banco Mundial no crime de desnacionalização e sucateamento da universidade pública. Leher alude ao fato de que o processo de contra-reforma universitária faz parte do movimento maior de mudanças na estrutura de Estado.

“O objetivo do ministro Genro é extinguir a fronteira entre o que é público e o privado”, conta ele. “Um sistema de avaliação irá classificar as instituições que têm ‘interesse social’, as instituições públicas não estatais. Elas farão jus à verba pública independente do adjetivo anterior: se pública ou privada. Essa é a lógica da compra de vagas, tanto que ela é conceituada como uma compra de vagas públicas. Exemplo: as vagas da Gama Filho, da Estácio e da UniverCidade (universidades privadas do Rio de Janeiro) se convertem misteriosamente em vagas públicas.” De acordo com o professor, as públicas ficariam em maus lençóis, sendo obrigadas a competir de acordo com a lógica do mercado. Resultado: perda da qualidade que ainda resta nas universidades federais e estaduais.

Quando houver, o investimento em pesquisa ficará reduzido aos desejos do mercado. “As universidades que tiverem ainda alguma atividade de pesquisa na verdade não vão fazer pesquisa”, argumenta Roberto Leher. Farão, sim, “o que chamam de inovação tecnológica, pesquisa de desenvolvimento… Mas, sobretudo, adequação tecnológica: as empresas trazem pacotes tecnológicos e precisam fazer ajustes. As universidades são chamadas para fazer esses ajustes. Então não é produção de conhecimento relevante.”

E os órgãos de fomento à pesquisa já vêm dançando de acordo com o baile do mercado: “Cada vez mais eles estão sendo pressionados para uma pesquisa que apresente resultados palpáveis e imediatos. Isso aconteceu inicialmente com a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), que hoje é praticamente do setor privado. Mas também Cnpq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) vêm paulatinamente direcionando suas prioridades para áreas de interesse do mercado.”

Leher cita mais alguns exemplos presentes do processo de mercantilização das universidades públicas, como a proliferação de cursos pagos e fundações: “Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, 37 fundações privadas movimentam algo em torno de R$ 250 milhões. Aproximadamente 80 milhões ficam na universidade, mas ninguém sabe exatamente quanto dinheiro está circulando, porque aquilo tem uma lógica privada. Claro, nós temos, por meio das fundações, uma miríade de cursos de especialização paga e, além disso, uma adequação do currículo a uma formação que o mercado está demandando.”

A autonomia dos submissos

A questão da autonomia das universidades também faz parte das discussões sobre a Reforma. No entanto, Roberto Leher adverte para o tipo de autonomia pretendida: “O que a Constituição diz é que a universidade — pública sobretudo — como instituição autônoma, pode gerir livremente os seus recursos. Mas o artigo 211 exige que o Estado a mantenha. O que o governo está falando é que ela deve ter autonomia financeira. Uma coisa é ter autonomia de gestão financeira, para operar, utilizar o dinheiro; outra é a autonomia financeira, o que significa dizer que ela está se auto-sustentando.”

Para barrar a contra -reforma, Leher reconhece a importância do movimento estudantil. Para isso, critica a postura da UNE (União Nacional dos Estudantes): “Eu acho que a bandeira da UNE — ‘Reforma Já’ — confunde propositalmente. De que ‘Reforma Já’ estamos falando? O que existe de reforma na agenda do governo é uma contra-reforma. Então, teria de qualificar que somos contra essa reforma e que queremos uma outra reforma. É tudo um debate assim: ‘Olha, há pontos positivos e pontos negativos…’. Mas isso não é maneira de analisar as coisas. Existe um sentido geral.”

O ex-presidente da Andes-SN reconhece a importância do apoio de outros movimentos sociais, mas critica forças desmobilizadoras entre os trabalhadores: “Para que a gente tenha condição de fazer frente a essa política (que tem muito apelo popular, porque aparentemente estaria democratizando vagas) vamos precisar de uma densidade maior dentro da universidade para fazer manifestações públicas com visibilidade. Devemos nos unir a outras lutas que têm o mesmo objetivo profundo: combater a política de submissão ao imperialismo. Mas haverá grande dificuldade nos setores da Central Única dos Trabalhadores (CUT) ligados à articulação e às forças que apóiam a articulação sindical. Essas forças, hoje, estão organizando a desmobilização dos trabalhadores.”

Universidade revolucionária

Além de uma mobilização pungente, o que mais se faz necessário para salvarmos a universidade pública? Se essa contra-reforma que o governo propõe é vergonhosa, qual reforma seria ideal? “Uma reforma no sentido mais profundo, que pudesse promover descontinuidade em termos históricos, uma mudança revolucionária da universidade, infelizmente é algo que a gente não tem num cenário próximo”, admite Leher. “O que nós temos, agora, são condições de forçar reformas que sejam bases para fortalecer o pólo crítico da sociedade. E isso passa primeiro por arrancar verbas do Estado para fortalecer a universidade pública no sentido da ampliação. A bandeira da ampliação é forte. A sociedade brasileira quer mais vagas na pública.”

O professor faz uma análise sobre a política de cotas por etnias, clamando por um corte de classes: “Democratizar as formas de ingresso é fundamental. O debate sobre cotas tem atrapalhado uma solução interessante, ainda que tenha o mérito de levantar o problema de acesso. É certo que só a ampliação do número de vagas nas públicas não assegura, a priori, que os setores estruturalmente excluídos no mundo do trabalho vão ter um acesso melhor. É preciso dispor de políticas públicas direcionadas. Não fazendo cortes de uma suposta etnia, mas de classe social.”

Quanto à participação dos estudantes na gestão das universidades, ele é taxativo: “Acho que os estudantes devem ter seu poder dentro da universidade. Deve ser um governo compartilhado.” Mas o ponto fundamental a caminho de uma universidade diferente, segundo Leher, refere-se a mudanças na maneira de pensar, uma implosão dos consensos em torno do modo de produção capitalista: “Temos tradição que vem do colonialismo e que implementou uma mentalidade colonizada. Isso tem de ser muito questionado porque legitima o liberalismo, o modo de produção capitalista como a única maneira de existência humana. A crítica à colonialidade do saber me parece algo imprescindível. Não uma revisão curricular feita por sábios, mas uma nova episteme, uma nova maneira de pensar a produção do conhecimento.”


1 Em 1943, é implantado o Birô Interamericano no Brasil, com apoio de um comitê de empresários e políticos profissionais. Suas atividades, ligadas ao governo ianque, consistiam em realizar grandes investimentos monopolísticos na área cultural e de informação, além da base econômica, inundando o país com seus filmes, jingles, literatura, publicidade etc.
2 Arapiraca, José Oliveira. A Usaid e a Educação Brasileira; um estudo a partir de uma abordagem crítica da teoria do capital humano. Cortez Editora, 1982.

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