A voracidade do estado brasileiro

A voracidade do estado brasileiro

A carga tributária imposta aos brasileiros nos dias atuais é mais pesada até do que a dos tempos da Rainha Louca de Portugal, que condenou Tiradentes à forca por ter liderado a revolta contra a derrama — tributo muito semelhante à CPMF1 criada durante a gerência FMI-PSDB, a pretexto de arrecadar mais recursos para a assistência à saúde. A retribuição do Estado em termos de serviços essenciais prestados à população — principalmente saúde — é irrisória. É imperativo lembrar que essa forma de pagamento despontou sob a forma de tributo, exprimindo uma relação de força que um povo vencido devia a seus dominadores. Na Idade Média, prevaleceu a idéia de que o imposto, uma solicitação do rei, não podia ser estabelecido sem o consentimento dos contribuintes. Hoje, no Brasil, para se criar um imposto basta expedir uma medida provisória para o acordo (conluio) de lideranças sacramentá-lo.

No corrente ano, cada trabalhador empregado está sendo forçado a trabalhar 138 dias para satisfazer as exigências fiscais dos três níveis de governo, contra 135 dias em 2003 e 133 em 2002, segundo estudos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário.

De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), as famílias acumulam carga tributária de 18,5% de sua “renda” somente em impostos diretos. Se forem contabilizados os tributos que se pagam embutidos nos preços das mercadorias, essa carga tributária pode chegar a 36,5% dos recursos obtidos pela maior parte da população, ou seja, pelas classes que produzem trabalho socialmente útil, sobre as quais recaem todos os impostos.

Pode-se dizer que a voracidade fiscal brasileira conseguiu gerar o contribuinte virtual, aquele que é tributado mesmo sem ter existência registrada. Do útero da mãe ao túmulo, cada brasileiro deixa para os cofres públicos mais de um terço de sua renda. São tributados todos os artigos que a mãe compra em função da gravidez, assim como os exames (pré-natal, ultra-sonografia etc) a que se submete.

No caso de serviços, como o parto feito pelo obstetra, há incidência do ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza): são 5% para o município, que também ganha com a criança em fase pré-escolar (3 ou 4 anos), taxando a mensalidade. Claro, as atividades escolares, inclusive as da escola pública “gratuita”, geram impostos: a família adquire materiais escolares fartamente tributados pelo Estado, e o transporte, taxado pelo Município. No plano federal, a União não dispensa nem mesmo os insumos adquiridos no exterior para a fabricação de remédios e, de imediato, cobra o Imposto de Importação.

Costumes coloniais

A tunga ao cidadão se perpetra através de 54 impostos, entre tributos e taxas. Os que obtêm algum ganho de sobrevivência, a princípio safam-se do imposto de renda, mas ninguém escapa, por exemplo, do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias) que incide sobre qualquer produto.

A Justiça concedeu às empresas de telefonia um aumento de cerca de 7%, porém um litígio estabelecido há meses acabou fazendo-o retroativo e elevando a alíquota a mais de 10%. A carga ficou tão pesada para o usuário que as telefônicas, apavoradas com a possibilidade de uma onda de inadimplência, apressaram-se a propor parcelamento da cobrança. A decisão judicial, todavia, garantiu uma festa para os governos estaduais, pois a tributação (ICMS) de cada chamada é de no mínimo 40%. Para alimentos, a alíquota fica em torno de 17%.

No ranking dos países com as maiores tarifas de energia elétrica do mundo, o Brasil aparece na quinta colocação, apenas atrás de Eslováquia, Polônia, Portugal e Dinamarca. A conta dos brasileiros é considerada mais cara do que a de países como Japão, Holanda, Alemanha, Turquia e República Checa, que vem imediatamente atrás no ranking, segundo pesquisa do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina). O estudo tomou como base a tarifa de R$ 260 por megawatt-hora, verificando-se que a estrutura tarifária do Brasil, o que deixa aqui a conta mais cara do que em países como Canadá e Noruega, que têm matriz energética predominantemente hidrelétrica, assim como o Brasil.

No caso do ICMS, imposto indireto cobrado sobre produção, mercadorias e circulação, o brasileiro não sabe o quanto paga, por exemplo, sobre um pacote de arroz. É que, além do preço cobrado pelo produto, há o tributo embutido na mercadoria. Ao acordar e acender a luz, o indivíduo já paga imposto sobre o valor da energia — alíquota nominal de 25%, mas como o cálculo é feito “por dentro”, salta para 33%. Ao escovar os dentes, o cidadão deixa 31,72% do creme dental para o governo. Paga 36,49% sobre o papel higiênico, sem contar os impostos sobre a água do banho, o sabonete, a toalha, o creme de barbear e o desodorante. No café da manhã, o brasileiro paga 14,71% de imposto sobre o pãozinho e o café com leite. Se quiser biscoito, mais 25,71%. No almoço, indigestão tributária. Com arroz, feijão e frango, ainda os mais baratos, paga 14,71% de imposto. Se acrescentar ao cardápio uma macarronada, o encargo fiscal vai para 25,71%. Nos países mais adiantados, a nota fiscal vem com duas parcelas: a primeira corresponde ao preço do produto, e a segunda o imposto cobrado. Exatamente como ocorre no Brasil com as contas telefônicas, mas, ao que parece, ninguém presta muita atenção, e assim não há reação.

Bastam 30 dias ao jovem felizardo que conquista o primeiro emprego para constatar que, mesmo órfão, solteiro e sem filhos, tem um dependente: o INSS, que faz desaparecer algo como 10% do salário combinado com o empregador. E se o rendimento ultrapassar R$ 12.696 anuais, estará convertido em mais uma vítima do “leão” da Receita Federal, o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF).

Na década de 50, nos “anos dourados”, pagava-se Imposto de Solteiro. Este tributo foi extinto, mas no casamento paga-se taxa judiciária mais o que os cartórios cobram a seu bel prazer pela certidão. Nem com a morte o cidadão se livra das taxas. Atestado de óbito, velório, cremação ou sepultamento, jazigo e outras despesas não saem por menos de R$ 1 mil. Tudo pago, o morto descansa, todavia apenas por três a cinco anos. Ao cabo desse tempo, a família terá de pagar mais R$ 120 para exumação dos ossos e abertura do respectivo espaço para outro sepultamento.

Taxação esmaga o povo

Os gastos do governo federal foram responsáveis por 73% do aumento de 28,5% para 33,5% na carga tributária, verificado entre 1987 e 1991, ano em que as famílias brasileiras pagaram de impostos o correspondente a 11,5% do produto Interno Bruto (PIB). O tributarista Fernando Garcia observa que a retirada dessa parcela da renda familiar pelo governo, sob a forma de impostos, reduz a capacidade de consumo das pessoas, que é o que movimenta a economia e possibilita o desenvolvimento do País.

Ao longo do tempo, a omissão do estado na assistência à população se expande ainda mais rápido do que o bolo dos impostos. Agravam-se as carências na razão direta dos aumentos concedidos para os transportes, os telefones, a energia, os remédios, os planos de saúde. Ao distribuirem à imprensa os resultados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), a Fundação IBGE e a Agência Brasil informaram, em comunicado, que “as populações mais pobres vêm, há décadas, enganando a barriga”.

Os gastos dos brasileiros com alimentos caíram quase 10 pontos percentuais entre 1974 e 2004, as três décadas que separam o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef, de 1974-75) da POF 2002-2003. A alimentação das famílias brasileiras, em 1974, consumia 33,91% da renda familiar. O percentual caiu para 20,75% nos dias atuais. Isto ocorreu em função do aumento das despesas com habitação e dois transportes.

A Organização Mundial de Saúde constatou que 14,4% dos cidadãos não têm mais nenhum dente natural, 10,1% são obesos e 28,5% estão acima do peso, mas as maiores queixas estão associadas à saúde mental — depressão, ansiedade, tristeza, preocupação —, bem como dores no corpo, problemas com o sono, dificuldades de concentração. Os brasileiros já gastam 19% da renda familiar mensal com saúde, e 72% dos que pagam por um plano particular de saúde se confessam “insatisfeitos” e “muito insatisfeitos”.

Ainda assim, apenas 25,8% dos brasileiros têm acesso a esses planos e quase 10% dessa clientela teve de vender bens ou pedir empréstimos para pagar suas despesas com saúde.

O ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, buscando simpatia num almoço com 203 negociantes paulistas, comentou que “sempre que alguém fala em aumentar impostos no Brasil está jogando a empresa na informalidade”, mas até hoje o empresariado espera que ele mexa uma palha para rebaixar a carga fiscal, que agora corresponde a 40% do PIB.

Honestidade, a piada batida

Professor do curso de pós-graduação em Direito Econômico da Fundação Getúlio Vargas e secretário da receita Federal entre 1993 e 1994, Osíris Lopes Filho desabafou na revista Dinheiro:

“A honestidade está ficando inviável. Para sobreviver, a pequena empresa evade e a grande empresa usa o preço de transferência. A multinacional, por exemplo, costuma fazer isso de duas formas. Ao importar uma mercadoria que vale US$ 100 da matriz, registra pagamento de US$ 200, mandando para o exterior um acréscimo de US$ 100. Na exportação, alega que um bem vale US$ 50, quando na verdade o preço é US$ 100. No caso de empresas que têm somente fornecedores internos, parte-se para a evasão pura e simples. Deixa-se de pagar, cria-se caixa dois, frauda-se despesas e notas fiscais. A grande empresa tem instrumentos muito mais sofisticados para sobreviver à elevação de custos do que as pequenas e médias. Pode-se fazer registro de custos fictícios, uso de notas fiscais fictícias, declaração de bem que não foi comprado, abertura de empresas laranjas para praticar determinada atividade durante um prazo limitado. Depois, fecha-se a empresa. Quanto maior é a carga, mais sofisticados os instrumentos de elisão.”

Na opinião de Osíris, não haverá crescimento enquanto o País mantiver essa política tributária de baixa qualidade:

“A carga está alta, as empresas não estão conseguindo pagar, a sonegação é absurda e, no pior dos sintomas, a renda do brasileiro está arrochada. O resultado é que os contribuintes não conseguem consumir e os empresários não conseguem poupar seus lucros para fazer investimento. E a tributação caótica é a maior responsável por essa bagunça. Além disso, o sistema está pressionando em excesso a população pobre, limitando a poupança interna, e restringindo o consumo. Só que, sem consumo e aumento de produção, não há crescimento. Hoje, se comemora um aumento de 0,5% no crescimento do Brasil, mas temos que crescer em torno de 8% a 10%. O sistema tributário, hoje, é indutor à sonegação, dada a carga tributária absurda.”

Osíris condena o governo por esquecer de confessar que a maior parte do dinheiro arrecadado não vai para investimentos nem para os programas sociais, mas sim para honrar o serviço da dívida, que já está em R$ 1 trilhão.

“Está ficando impossível ao governo prestar os serviços públicos e ao mesmo tempo pagar essa dívida fantástica, principalmente fixando taxas de juros tão elevadas. O governo arrecada para pagar os credores e esquece que sua função é prestar serviços públicos. Perdeu-se a noção de que o governo é um prestador de serviço público essencial. Na verdade, este governo continua recorrendo à linha básica de aumentar a carga das tributações indiretas, de contribuições e impostos como a CPMF e a CIDE2. São tributos pagos pelo empresário mas acabam absorvidos pelo povo. Note que mais de 60% da arrecadação federal vem das contribuições. No Brasil, o governo se aproveita do fato de o povo só reclamar de impostos diretos como IPVA, Imposto de Renda, IPTU. Os outros ficam embutidos no preço final, e a população não vê.”


1 Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira, criada pela lei 9.311, de 1996, eternizada pela lei 10.892, de 2004, gerência FMI-PT.
2 Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação de petróleo e derivados, criada pela lei 10.336, de 2001, gerência FMI-PSDB.
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