Agentes de “reabilitação” torturam jovem até a morte

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Agentes de “reabilitação” torturam jovem até a morte

Embora seja intitulado Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas, o Degase em muito lembra um cárcere. Muros altíssimos, portões com policiamento, grades mesmo em portas do setor administrativo e algumas celas no Centro de Triagem. Exatamente nessa unidade Andrew Luiz da Silva Carvalho, de 17 anos, foi brutalmente torturado e morreu após ser agredido por cinco agentes estaduais, de acordo com os adolescentes que presenciaram o fato. 

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Andrew em casa: primeiro emprego como garçom

Segundo os depoimentos dos agentes, Andrew agrediu um deles, houve revide e ele teria morrido depois de cair do telhado enquanto tentava fugir. A causa da morte foi registrada como decorrente de ferimentos por concussão, hemorragia da meninge e traumatismo craniano. Os relatos dos adolescentes dão conta de chutes, pontapés, mesadas e cadeiradas. Além disso, os agentes teriam quebrado cinco cabos de rodo contra o corpo de Andrew e usado uma arma improvisada com um coco dentro de um saco plástico, formando uma espécie de arma medieval. As agressões teriam continuado mesmo depois que Andrew estava no chão. Os agentes envolvidos foram suspensos pelo diretor-gral Eduardo Pires Gameleiro por 30 dias e foi aberto um inquérito administrativo para apurar as responsabilidades.

Andrew foi levado para o Degase na madrugada de reveillón junto com o adolescente F. L. S., ambos acusados de roubar dois coronéis do Exército ianque, sendo que um deles era cônsul. Eles passaram a virada do ano na praia de Copacabana. Os bens declarados pelos militares estrangeiros são: um telefone celular Nokia 5200, um aparelho iPod, um celular motorola, um par de óculos, um relógio de pulso da marca Victorinox Army e R$ 57,00 em dinheiro. Entretanto, pela lei brasileira ninguém pode ser considerado culpado após ter sido processado e a sentença transitada em julgado.

Detido no Instituto Padre Severino, F. L. S. recebeu a visita da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa no dia 7 de janeiro. Estava muito machucado (provavelmente também foi agredido) e confirmou os relatos dos demais adolescentes: Andrew teria mesmo sido espancado até a morte. Sua mãe, Deize Silva de Carvalho, de 36 anos, concedeu longa entrevista ao AND. Extremamente abalada, chorou muito ao olhar para a foto do filho indo trabalhar pelo primeiro dia como garçom.

— Ele queria mudar de vida. Quem não quer mudar de vida não usa um sapato 43 calçando 45. Tinha vezes que ele chegava em casa mancando e tinha que colocar o pé na água quente. Seu sonho de consumo era juntar dinheiro pra conhecer o pai no USA, que foi trabalhar lá quando ele tinha 3 anos.

Deize afirmou que seu filho era muito querido pela vizinhança e pela família, o que foi confirmado por Luma Rodrigues, de 19 anos, estudante e vizinha de Andrew no morro do Cantagalo, em Copacabana.

— Ele era uma pessoa legal com todo mundo, brincalhão. Gostávamos de ir à praia, ao shopping. Antes disso acontecer, passamos o final de semana todo indo à praia de Copacabana.

A mãe de Andrew acredita que as agressões foram um revide dos agentes contra seu filho, que já tinha passado pelo Degase em 2006.

— Ele tinha falado que ali era um parque de diversão. E no decorrer dos 45 dias do Padre Severino ele se queixava de ter levado tapa na cara e outras agressões. E os agentes diziam: 'Agora vai falar pra mamãezinha que você está no parque de diversões. Porque depois você vai conhecer o parque dos horrores, o trem da bruxa e a casa mal assombrada'. Tem pessoas que me reconheceram e que falaram pra mim que ele foi violentamente espancado. Falaram que nunca viram o que aconteceu com meu filho. Estou revoltada porque sábado meu filho estava seguro, numa casa do Estado, num centro de internação, mas pessoas desqualificadas, que nem posso chamar de cidadãos… Ele já ia pagar pelo que ele fez. Não tenho palavras… Estou vivendo à base de sedativos — disse Deize, extremamente abalada.

Sidney Teles da Silva, que foi diretor-geral do Degase em 2002, ressalta o despreparo dos agentes.

— Essa tragédia só aconteceu porque aquele plantão priorizou a repressão em vez da contenção. Porque o agente com perfil de educador sabe conter o adolescente sem ser violento e nem agressivo, até porque lá dentro ele já está contido. A reação foi muito desproporcional à ação por falta de capacitação profissional.

Sidney aponta a responsabilidade do governo Sérgio Cabral no episódio:

— A postura desse governo legitima essas ações. Um governo que co-loca o caveirão pra entrar na favela, que fala que um tiro na favela da Coréia não é a mesma coisa que um tiro em Copacabana, esse governo passa a mensagem de que ações letais são permitidas.

Depósitos de pobres

O caso de Andrew é emblemático devido à violência direta, mais visível, mas também chama a atenção para a negligência do Estado em relação às unidades de detenção e de acolhimento de adolescentes, o que não deixa de ser um tipo de violência. Esses estabelecimentos, por sua vez, vêm perdendo, sucessivamente, a função educativa. Em seu lugar, é estabelecido um sistema de controle social através da repressão brutal direcionada aos segmentos de baixa renda. Como disse o subdiretor do Degase, Miguel Ângelo Vilella, responsável pelo Centro de Triagem.

— A maior parte dos garotos vêm de famílias desestruturadas, de renda baixa, criados por tios, avós, originários de comunidades. Quem é de classe média geralmente não passa por aqui, acaba sendo descaracterizado e o problema é resolvido na delegacia.

Essa forma de conter a pobreza ganha volume com o desenvolvimento do sistema neoliberal. Como afirma Alessandro De Giorgi, no livro A miséria governada através do sistema penal (Revan): "a economia pós-fordista parece depender cada vez menos da quantidade de força de trabalho diretamente empregada no processo produtivo. O pós-fordismo inaugura um regime de excesso. Parcelas crescentes da força de trabalho, expulsas dos contextos produtivos em reestruturação, foram, assim, alimentar o exército da população desempregada, não empregada e subempregada".

Segundo Sidney Teles da Silva, houve um grande aumento no número de adolescentes apreendidos no espaço de uma década (1995-2005), justamente o momento em que as políticas neoliberais foram implementadas com maior vigor no país. Nesse período foram construídas duas unidades, sendo que uma delas, intitulada João Luiz Alves, está superlotada. Com capacidade para abrigar 120 adolescentes, a instituição tem hoje 205 jovens em suas dependências. Além disso, o Instituto Padre Severino, o Centro de Atendimento Intensivo da Baixada e os Educandários Santos Dumont e Santo Expedito operam no limite.

O sociólogo Löic Wacquant completa este raciocínio. Embora refira-se ao sistema prisional, a análise vale também para as instituições que abrigam os adolescentes: "O encarceramento serve para neutralizar e estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, notadamente os membros despossuídos dos grupos estigmatizados que insistem em se manter 'em rebelião aberta contra seu ambiente social' " Punir os Pobres, Revan).

A mãe de Andrew, que não é socióloga, mas vendedora de quentinhas numa faculdade carioca, também identificou, à sua maneira, o cerne da questão:

— Rico quando comete alguma infração tem problemas psicológicos. Agora, quando é pobre não tem. 'Pobre é ladrão, sem vergonha, safado e tem que morrer mesmo'. É isso que nosso governador [Sérgio Cabral] fala nas entrevistas.

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