É incrível a defasagem entre o discurso religioso de bondade e amor ao próximo por um lado, e a realidade que nos mostra uma segmentação constante da humanidade dividida entre senhores e escravos, escolhidos e excluídos.
Quantas "boas intenções", preocupações humanísticas entremeadas de frases luxuosas, preces que ecoam em vão, promessas que se juntam nos jornais e nas TVs, palavras que ricocheteiam na pétrea muralha da covardia, papéis que rapidamente amarelam, manifestações transbordantes de direitos humanos, principalmente do sagrado direito de explorar o ser humano e de submeter nações inteiras.
A autodenominada democracia européia, ainda camuflada sob o manto da Grande Revolução Francesa, usa o restante do mundo em seu proveito. As navegações, a instalação de entrepostos comerciais garantidos por fortalezas, aparatos financeiros e burocráticos — como há cinco séculos, viabilizados pelo fato de possuírem pólvora à vontade para enfrentar armas de madeira — sustentam um modo de produção colonial capaz de estabelecer trocas extremamente desiguais entre a metrópole e os países detentores da verdadeira riqueza, de abundantes produtos naturais e matérias primas, mas que se afundam na miséria.
… vai sair ouro com todas as isenções, mera transferência
de riquezas para o exterior e ficará buraco e miséria …
No século XX o Estado ao norte da América uniu-se ao grupo de "escolhidos" e conseguiu que sua moeda, hoje papel pintado sem nenhum lastro, se transformasse no veículo das trocas comerciais mundiais.
Os "escolhidos" preconizam uma forma de democracia em que há todo o direito de exercerem seus domínios sob os demais e promoverem sua democracia de escravidão. Sentem-se tranquilos monopolizando os conhecimentos para controlar e arruinar os pobres das nações colonizadas e semicolonizadas, seja pela dependência dos manufaturados rigidamente controlados por patentes, seja pela persuasão militar, pelo terror e pela chantagem das armas de destruição em massas, incluindo o armamento nuclear.
São quinhentos anos instigando as lutas tribais na África, recolhendo prisioneiros, atravessando o Atlântico submetendo-os a situações cruéis que ninguém admitiria para os animais inferiores. Milhões de agrilhoados atravessaram os oceanos para desembarcar nos trabalhos das monoculturas ou nas lavras da busca do ouro e dos diamantes.
Diamantina e seus cantos
Em nenhum momento, os chefes devotos e religiosos sofreram abalos morais, porque nunca foram suficientemente contestados pelas armas, e seguiram suas concepções jurídicas, éticas, religiosas etc., afirmando que mulheres, negros e índios não tinham alma. Nas terras da América, principalmente da América colonial, desde então, as súplicas dos oprimidos resvalam nos ouvidos refratários dos juízes, não constam nos falsificados boletins de ocorrência, nos fingidos processos cheirando a mofo, nem mesmo nos registros dos funcionários do divino.
No Brasil, a região Diamantina avolumou escravos na busca de riquezas logo transportadas para os territórios "civilizados", deixando aqui mortes prematuras, miséria, socavões, mas também sonhos de liberdade, quilombos, revoltas e conspirações.
A diminuição da produção dos veios dificultando a manutenção de número excessivo de escravos, relaxava os controles e da região Diamantina muitos oprimidos conseguiram, no final do séc. XVIII, se embrenhar pelas regiões cuja natureza não conheciam, muito diferente da distante África.
Arribaram na região do Córrego Rico, Paracatu e cercanias. Fugidos diversos, alforriados, sofrem a atração do ouro mas não podiam voltar para o ponto de partida e fixaram o seu viver na região, desenvolvendo alguma produção agrícola e criações de gado para subsistência.
De repente, um processo de inventário em 1855, já depois da Lei da Terra (1850), determinava os registros paroquiais da terra aproveitando a Igreja como única estrutura de âmbito nacional para um levantamento das propriedades ocupadas e as devolutas, desocupadas que seriam do governo. Lá estão documentados nos inventários os quilombolas, moradores há um século na região, já sabida aurífera mas agora propriedade e residência legal de todos eles.
Os anos correm e mais de um século depois evidencia que os quilombolas estão como "superficiários" proprietários de uma terra que possui em seu subsolo ricas jazidas de ouro. Em realidade a região do Córrego Rico, Morro do Ouro e adjacências é o que chamam de Mãe do Ouro: o local que acumula o metal que vai se fragmentando ao longo de milhões de anos, descendo pelas enxurradas para as areias e barrancos dos rios.
O correr da história revela que o ouro dos aluviões atrai aventureiros e garimpeiros que faíscam o ouro durante muitos anos usando o trabalho escravo. Na bateia a "riqueza", o minério valioso que deveria melhorar a vida de todos e permitir o surgimento de novas gerações pelas de dignidade.
Os olhos da corte portuguesa, entretanto, estão ali, espreitando. O metal vai para a fundição e é quintado. Vinte por cento fica para El rei. Mas ficou oitenta por cento na mão do garimpeiro. É muita riqueza!
Desapercebidamente, mas com firme estrutura de dominação, os "civilizados" tratam de recolher de volta tudo que tenha ficado na colônia.
Assim, precisavam de ferramentas, mas não tinham a tecnologia e apesar de caminharem dia e noite sobre minério, deveriam importá-las. Para se vestirem, os panos vinham dos dominantes, era até proibido haver teares na colônia com gravíssimas punições para os desobedientes. E os que produziam? Era fundamental a compra dos escravos, "peças" africanas que custavam muito caro.
Já no séc. XX, os quilombolas nas regiões auríferas são assediados. Figuras insinuantes, muito simpáticas e conversadeiras aparecem oferecidas para buscar "legalização" de suas fazendinhas. Descendentes semi-analfabetos ou analfabetos, crédulos, assinam procurações para a sua legalização e, de repente, vêm-se sem as suas terras.
Existem os renitentes, que não acreditaram nestas "bondades" e permanecem com sua propriedade. São os superficiários que têm prioridade legal para explorar o subsolo que é da União.
Os grande ladrões
Como agem as empresas de mineração? Fazem várias reuniões com propostas apenas verbais para um acordo que permita a exploração do minério. Segundo relatos, são proposições vis com valores inaceitáveis principalmente levando-se em conta que estão no local há séculos.
Simplesmente a mineradora entra na justiça com um processo mostrando que deseja explorar as jazidas da área, com estudos… dispensáveis para a burocracia e a corrupção propriamente, mas imprescindíveis no adorno da retórica fascista, no processo são enxertadas as mais descaradas promessas de emprego, respeito à natureza, desenvolvimento autônomo com ajuda de contratadores e investidores estrangeiros, rápida e elevada expansão econômica etc.
Baseado no Código de Mineração o juiz da comarca pode decretar a "servidão minerária" ou seja, é emitido um mandato judicial pelo qual a mineradora tem autorização para entrar, desmatar, passar trator nas plantações até derrubar a casa e exigir a retirada do superficiário, dono da terra. Enfim, todas as ações pertinentes à execução do projeto de mineração. Podem ser previstas indenizações, mas aqui estamos no capítulo da covardia social. Que poder de barganha tem o quilombola para encarar a mineradora transnacional? Quando recebe, são migalhas anuais.
Mineradora instalada, transnacional estrangeira que divulga uso de tecnologias sofisticadas e fala exclusivamente na produção do ouro reclamando, inclusive, que o teor local é muito baixo.
Se há um minério de determinado lote que é triturado, sendo recolhido amostras e analisado os contaminantes e intervenientes, nele pode haver ferro, alumínio, alguns grosseiros sem muito valor, mas podem aparecer alguns mais nobres como o paládio, platina, prata. É evidente que os que têm até mais valor que o ouro são aproveitados, mas nos relatórios há omissão total sobre o destino do que é aproveitável.
Quanto ao ouro há uma legislação própria desconhecida pelo grande público. A Lei 7766 de 11 de março de 1989 dispõe sobre o ouro, ativo financeiro. "O ouro em qualquer estado de pureza, em bruto ou refinado, (…) envolvido em operações de tratamento, refino, transporte, depósito ou custódia, desde que formalizado compromisso de destiná-lo ao Banco Central do Brasil ou à instituição por ele autorizada" — é um ativo financeiro.
Assim sendo, produzido o ouro numa filial no Brasil, sendo ativo financeiro pode ser simplesmente transferido para a matriz. Ficam apenas os custos de extrair.
Entretanto, se há a opção de ser exportado isto poderá ser feito com isenção total de impostos (Lei Kandir). O relatório da Mineradora de Paracatu fala do ISS pago resultante dos pagamentos das empreiteiras (transportadora do minério e outros serviços) e o CEFEM que se refere à taxa de utilização de recursos minerais (1% do faturamento líquido da empresa) em situação de controle e fiscalização quase impossível.
Hoje, as transnacionais apresentam relatórios e propagandas muito bem feitas numa fraude, que segundo Galbraith, as grandes empresas controlam os meios de comunicação e conseguem omitir explorações e crimes variados (as poluições por exemplo) em nome de lucros crescentes e incessantes.
O fruto de várias décadas de trabalho de nossos patrícios
foi usurpado e mina, estrada de ferro, usinas, pesquisas, portos, navios,
foram transferidos para mãos estrangeiras a troco de nada
No caso de Paracatu, todo ouro é transferido como ativo ou exportado com isenção de impostos.
Quanto a exportação, o relatório do setor econômico da Unesco, referente ao último ano, salienta que o gigantesco volume de exportações em todos os setores não é muito benéfico ao Brasil. Segundo os estudiosos, boa parte das exportações são realizadas por firmas estrangeiras que recebem os resultados das vendas. Eles não falam das isenções de impostos para exportação, mas dizem que no comércio internacional 60% das operações são feitas entre matrizes e filiais, com os preços fixados de acordo com suas conveniências.
Conclusão, Paracatu está fadada a ter o mesmo destino de cidades resultantes da mineração, vai sair ouro com todas as isenções, mera transferência de riquezas para o exterior e ficará buraco e miséria. O meio ambiente não será recomposto, os lençóis freáticos jamais se recuperarão e todos que levaram séculos na sua construção estarão excluídos de alguma benesse ou resultado da exploração do ouro e dos metais contaminantes sob absoluto controle das transnacionais estrangeiras.
Até quando será assim?
Cresce a importância
O professor Adriano Benayon, em artigo publicado em A Nova Democracia, janeiro/2006, alerta para o perigo de se aumentar as reservas em dólar, "tendência declinante que pode ser ilustrada por sua atual cotação em termos do ouro — o dólar vale hoje em ouro a metade do que valia em 2001".
"De fato, o dólar está supervalorizado em relação a várias moedas como o yene e o renminbi chinês".
Papel pintado que, hoje não tem lastro e não apresenta correlação com a real produção de riquezas, transformado em ser a própria riqueza e não uma representação dela, o dólar é a moeda de troca que multiplica-se em quantidades enormes de títulos e ordens virtuais de pagamento onde é apenas a referência.
O que aconteceria se, de repente, um número razoável de pessoas resolvesse fazer como o mineiro da história?
— Quero todo o meu dinheiro depositado neste banco em cima do balcão.
Alvoroço, correria, telefonemas, mobilizações, manda buscar, e o zeloso gerente amontoou o total dos depósitos do cliente mineiro em cima de duas mesas ajeitadas para a ocasião. A preocupação era sobre o que faria, levaria consigo, retirando do banco?
É bem conhecida, também, a disposição do general De Gaulle querendo ver o ouro que estaria depositado num forte americano como lastro do dólar. Acabou prevalecendo que a nota, papel moeda, não precisava mais ser um recibo correspondente em ouro mas, apenas, ter um valor legal.
Indicado pelo governo emitente passa a ter um valor designado e vale por ordem legal ou pela persuassão da força.
O inglês, em especial, e os europeus ocidentais há cinco séculos vêm se apropriando das riquezas naturais do mundo e minério é item importante.
No século XX, o USA uniram-se a eles na tarefa de dominação e exploração em todas as partes do mundo, visando a retirada das riquezas com custos o mais próximo possível da simples extração, como forma de manter o padrão de vida que apresentam mesmo que seja à custa da miséria e do sofrimento de grande parte da população mundial.
Ultimamente, as corporações financeiras ligadas à Inglaterra têm acelerado muito o processo de dominação com incorporação de jazidas minerais aos seus patrimônios. Ao que parece, têm em suas mãos mais de 60% das jazidas mundiais.
O inglês frio, calculista, estudioso, dono de invejável experiência, com amplo domínio de tecnologias e conhecimentos que não o repassa para ninguém, vai se assenhoreando das jazidas e não é difícil imaginar que o fazem porque, na hora em que o papel pintado sem lastro, muito multiplicado pelas ações especulativas, com valores que não existem efetivamente, virtuais, se esvair sob um impacto de realidade, vai prevalecer o "bem de raiz", a riqueza natural, o minério que não se desvanece e poderá ser transformado em produção e riqueza.
Mais uma vez, os ingleses, não mais como país, mas como gigantesca empresa financeira, também mineradoras, donas de patentes e cartelizando os principais produtos de consumo estarão com o domínio mundial e os povos ricos em recursos naturais cativos e com suas populações na miséria.
Aí revela-se toda a trama para conquistar e assumir a Vale do Rio Doce, estatal brasileira gigantesca, exploradora de minérios, mancomunados com "brasileiros" e dirigentes que não tiveram pejo, vergonha em trair a pátria e o povo brasileiro.
Neste conluio, o fruto de várias décadas de trabalho de nossos patrícios foi usurpado e mina, estrada de ferro, usinas, pesquisas, portos, navios, foram transferidos para mãos estrangeiras a troco de nada. Pior! tudo o que é exportado não paga imposto — a famigerada Lei Kandir— e sai em contratos com preço vil (minério de ferro, por exemplo, a 5 dólares a tonelada).
Surge, agora, no mundo um fato inusitado: o Irã está criando a bolsa de valores para o petróleo em Teerã, com as negociações em Euro — moeda européia -, não mais em dólares.
Quase todo o nióbio usado no mundo (98%) sai do Brasil. Por que seu preço é cotado na Inglaterra? É uma distorção absurda! O comprador é que impõe preços, não permitindo ao vendedor estabelecê-lo em patamares que propiciem, em especial aos que trabalham na área, uma vida digna.
A bolsa de Teerã, muito justa, em plena área principal do petróleo mundial, já tem amplo apoio no mundo já cansado da especulação do papel pintado.
…Vai valorizar o ouro!
Há séculos, o nosso ouro vai-se embora e observa-se que áreas auríferas e diamantinas incham pela ação dos garimpeiros e no esgotamento da incidência ressalta que foi riqueza para ficar buraco e miséria.
Há nítida evidência que o ouro e minerais estratégicos sustentarão a economia ante qualquer fragilização do papel moeda e observa-se, no quadro brasileiro, um descaso criminoso com o setor permitindo intensa exportação a preços vís impostos pelo exterior.
Que vírus atacou a mente dos nossos dirigentes ao alardear como vantajosos os grandes volumes de exportações quando há isenção de impostos e o seguro e o transporte são feitos por empresas estrangeiras. Os nossos marinheiros estão desempregados sentados em cordames de navios no cais.
Um recente estudo do setor econômico da Unesco aponta que não está sendo benéfico ao nosso país as exportações que fazemos pois, além das isenções e as taxas pagas no exterior boa parte é realizada por empresas estrangeiras que auferem os resultados das vendas e remetem para sua matriz no exterior.
Há uma alto grau de exploração e domínio externo, muita falta de governo, acentuada ausência de patriotismo e preocupação com a nossa população.
O mesmo estudo da Unesco denuncia que cerca de 60% das transações do comércio internacional são realizadas entre filial e matriz num jogo para beneficiar apenas os conglomerados financeiros transnacionais.
Há total omissão das informações sobre a maneira como sai ouro, titânio, platina, nióbio, quartzo com muitos incentivos lesivos ao país. Todos conhecem, pelo Brasil afora, as cidades que se desenvolveram com a produção mineral e se transformaram em ruínas com o seu esgotamento.
O que será de Paracatu quando acabar o Morro do Ouro, explorado por estrangeiros? A paisagem e o meio ambiente serão recuperados? Os lençóis freáticos reconstituídos?
Haverá o destino que se repete pelo Brasil afora: ficará apenas buraco e miséria.
Rui Nogueira é médico, pesquisador e escritor. [email protected]