Manifestação dos 100 mil, Rio de Janeiro
Zuenir Ventura é um senhor muito simpático. Velho de guerra do jornalismo brasileiro, costuma ser reverenciado pelos jovens que ingressam na profissão. Chamam-lhe "mestre Zuza". De fato, para muitos, o que ele fala ou escreve é lei. Zuenir é um auto-proclamado "meia-oito", ou seja, define-se como legítimo representante da geração que viveu intensamente os acontecimentos de maio de 1968. Sim o Maio. A série de acontecimentos protagonizados pela juventude e pelo proletariado de Paris, na França, e cujos desdobramentos na época se espalharam pela Europa e alcançaram o mundo em uma vaga de entusiasmo e de força revolucionária que ainda hoje é capaz de incendiar as massas.
"Mestre Zuza", no entanto, não se refere a nada disso quando fala ou escreve sobre o Maio. Seu blábláblá sobre aqueles acontecimentos é uma peça exemplar do revisionismo sobre 1968 que vem sendo ventilado por aí pelos arautos das classes dominantes. Falando para o jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, Zuenir comparou o maio de 68 à Parada Gay de São Paulo, disse que entre as principais heranças do Maio estão a liberdade sexual e o "direito ao prazer". Não satisfeito, disse que a luta armada contra a ditadura militar no Brasil foi uma "herança maldita" do Maio. Assim, o velho jornalista, que aos desavisados soa ter ares progressistas, revelou-se enfim um belo de um reaça!
Mas na verdade ele é apenas um vira-casaca a mais a repetir aos quatro ventos que maio de 68 é sinônimo de sexo, drogas e rock’n roll. Nada de lutas proletárias, greves, levantes anti-capitalistas, exigências das massas etc. Nada. Ao lado desta tentativa de retirar os trabalhadores da cena do Maio, há ainda por trás deste esmero revisionista a intenção de desqualificar a amplitude que os levantes revolucionários de Paris alcançaram na Europa e no mundo. É preciso denunciar que uma coisa e outra não estão de acordo com a verdade sobre o Maio.
No Maio, a força dos trabalhadores
Mostrar o Maio sem os trabalhadores é uma empulhação desmentida quando se observa logo o raiar daquele grandioso mês, quando dezenas de milhares de trabalhadores participaram do desfile do 1º de maio depois de 14 anos de proibição das manifestações nesta data. No dia seguinte, estes mesmos trabalhadores conseguem uma vitória frente ao patronato: a Assembléia Nacional francesa vota pela quarta semana de férias remuneradas. No dia 13, greve geral e um milhão de proletários ocupam as ruas de Paris. No dia 15, os taxistas da capital fazem greve de 24 horas.
No mesmo dia a fábrica da Renault é tomada de assalto e as massas em greve listam suas exigências: aumento dos salários, revogação das disposições que amputam a segurança social, pleno emprego e respeito e ampliação das liberdades sindicais.
Operários de Osasco são presos ao final da greve
Uma última reivindicação dos trabalhadores, a reforma democrática da Universidade e do ensino, demonstra de forma cabal a profunda solidariedade que se estabeleceu entre o proletariado e os estudantes ao longo dos acontecimentos — solidariedade que foi a marca maior do Maio de 68, como A Nova Democracia assinalou em sua edição número 41.
É que o oficialismo faz questão de não lembrar, mas por trás daquelas imagens clássicas dos combativos estudantes do Maio parisiense — barricadas, multidões de jovens nas ruas, cartazes anti-capitalistas nas igrejas e nos prédios públicos — havia uma cidade tomada pela força e pelo protagonismo do mundo do trabalho, com os transportes parados, serviços interrompidos, empresas públicas paralisadas pelos funcionários e fábricas ocupadas pelos operários organizados para a luta contra o capital.
No dia 21 de maio é a vez de os funcionários do Banco da França entrarem em greve. No dia 23 acontece algo marcante: naquela quinta-feira, os sindicatos de trabalhadores da Direção Geral da Polícia Nacional, representando 85% da polícia parisiense, emitem um comunicado no qual lia-se:
"Compreendemos os motivos que movem os trabalhadores em greve. Desejamos que o poder público não oponha a polícia de forma sistemática às lutas reivindicatórias. Em caso contrário, reservamo-nos o direito de não cumprir algumas das missões por questões de consciência".
No dia 24 acontece o apogeu do grandioso Maio, quando um total de 10 milhões de trabalhadores franceses entram em greve, organizados e em luta contra a burguesia gaulesa.
De Paris para o mundo
É claro que esta mobilização articulada entre a fábrica e a universidade, construída sob a base forte da solidariedade de classe, não surgiu do nada no 1º de maio de 1968 (ver Box) e nem tampouco deixou de existir no dia 31 daquele mês.
As greves, passeatas e embates continuaram em junho com todo vapor, transcorreram ao longo de 1968 e marcaram profundamente o povo francês nas décadas seguintes e até os dias atuais com a centelha da combatividade. É o que provam levantes recentes protagonizados pela juventude francesa — como as revoltas que derrubaram o famigerado Contrato do Primeiro Emprego que o patronato queria impor — e mobilizações convocadas pelos trabalhadores — como o movimento que derrubou pelo voto popular o projeto da Constituição Européia patrocinado pelo poder econômico.
Movimento estudantil no México
Da França, a centelha se espalha pelos vizinhos europeus e ganha o mundo. Explodem manifestações estudantis na Itália, na Bélgica e nos Países Baixos. Estes protestos além das fronteiras da França mostram como de fato o Maio parisiense repercutiu rapidamente, repetindo e expandindo a solidariedade revolucionária entre estudantes e operários, que em Paris se estabeleceu de forma incontestável como herança imediata e futura. Esta aliança foi a tônica de muitas mobilizações em países europeus e latino-americanos.
Foi assim, por exemplo, na Alemanha e na Itália. Neste último país, o movimento estudantil e o movimento operário alcançaram uma integração só comparável ao que se viu na própria Paris.
A maioria dos fatos mais significativos que se seguiram aos acontecimentos do mês de maio na França ocorreram logo em junho de 1968.
USA: estudantes se manifestam contra a invasão ianque ao Vietnã
No Uruguai, a reação oficial chegou a decretar estado de sítio para tentar conter estudantes e trabalhadores. Houve greves estudantis na Argentina, na Venezuela e na Colômbia. No Brasil, a passeata dos 100 mil acontece no dia 26 daquele mês, na cidade do Rio de Janeiro.
Em outubro de 1968, às vésperas dos jogos olímpicos da Cidade do México, a juventude mexicana rebelada promove levantes pelo país. A repressão assassina 300 estudantes de uma só vez, na praça das Três Culturas, no centro histórico da cidade sede das olimpíadas. "Mestre Zuza" e outros reacionários tentariam nos convencer de que os mortos estavam ali atrás de sexo, e não para se posicionarem contra a moderna exploração imperialista.
Mas desde quando a reação desperdiça 300 balas com jovens gritando por "direito ao prazer"?
1966 e 1967: os antecedentes imediatos do Maio
Os acontecimentos de maio de 68 inscreveram-se em uma longa história de embates do proletariado e dos estudantes contra as classes dominantes. Foram, em seu tempo, a atualização e o levante mais marcante de uma tradição secular de lutas protagonizadas pelas massas contra a exploração e a opressão.
Mas ainda que a compreensão do que foi o Maio demande digressões no tempo e no espaço, os fatos que eclodiram naquele ano de 1968 tiveram sim seus antecedentes imediatos, que agora, 40 anos depois, vêm sendo escamoteados pelo oligopólio dos meios de comunicação a fim de respaldar a visão superficial das revoltas que os revisionistas de plantão querem impor.
Pode-se dizer que as condições para que o Maio emergisse com aquele grande fulgor começaram a ser forjadas em março de 1966, quando Charles De Gaulle anunciou a retirada da França do comando militar integrado da Organização do Tratado do Atlântico Norte.
Ao contrário do que reza a cartilha dos adoradores do general integrados nas fileiras da falsa esquerda, a intenção de De Gaulle não era desafiar o USA ou abalar a estruturas da poderosa OTAN. Seu objetivo era relançar a política externa francesa sobre bases independentes, mas com objetivos não menos imperialistas.
As classes populares do país souberam identificar a importância da retirada das tropas ianques do território francês (as bases militares do USA foram transferidas para Bélgica, Itália e Espanha). Era na verdade uma vitória para o povo da França. Mas no seio das massas não houve ilusões em relação às verdadeiras intenções de De Gaulle. O jornal comunista L’Humanité refletiu esta compreensão, conforme mostra um editorial de então:
"A nossa oposição ao pacto atlântico tem um caráter fundamentalmente diferente da do poder gaulês. Nós denunciamos o bloco atlântico, desde a sua criação, como uma nova Santa Aliança reacionária".
E em seguida:
"Sejam quais forem as razões que inspiraram a declaração do general De Gaulle ao presidente Johnson, nós a aprovamos, visto ela ir no sentido da desmilitarização e da coexistência pacífica".
Estas passagens foram trazidas à atualidade pelo articulista de um outro jornal francês, o Le Monde Diplomatique, em sua edição do último mês de abril. Dominique Vidal lembra também que, por outro lado, o jornal que ainda é o principal porta-voz da direita francesa, o Le Figaro, na época não gostou nada da atitude de Charles De Gaulle. No dia 11 de março daquele ano de 1966, podia-se ler nesta publicação a seguinte peça reacionária:
"Mao Tsé-tung é um outro Hitler. Em seu lugar pode surgir um Gengis Khan, um Tamerlão, um Maomé, que, apetrechado com armas atômicas, levará atrás de si as populações esfomeadas da Ásia e de África ao assalto dos povos ricos e prósperos, ao assalto dos brancos e da sua civilização".
O terrorismo da imprensa é a prova maior da importância da saída da OTAN do país, e o ataque do jornal a Mao é significativo sobre os tempos que corriam: o maoísmo era a principal referência da juventude revolucionária que protagonizou o Maio.
Daí em diante as mobilizações se acirraram. Em maio de 1966, dois anos antes dos acontecimentos de 1968, a França é paralisada por uma greve geral de largo alcance. Os movimentos operários se intensificam em 1967: em março, paralisações nos setores naval, metalúrgico e de aviação; em abril, greve dos mineiros; em dezembro, greves e levantes contra a supressão de dois mil empregos na Rhodia.
Ainda em 1967, no mês de outubro, acontece em Washington uma grande manifestação das massas contra a invasão ianque do Vietnã — mobilização ferozmente reprimida pelos aparatos repressivos do USA. Também em outubro, Che Guevara é assassinado pelo exército boliviano. Em novembro, 60 mil jovens marcham em Paris contra a Guerra do Vietnã, atendendo a um chamado do Movimento da Juventude Comunista.
Já em 1968, no mês de janeiro, começam as revoltas de estudantes do ensino médio contra as condições do ensino e por uma educação voltada para a democracia. Em fevereiro e março surgem os comitês de estudantes do ensino médio, em geral de natureza revolucionária. Crescem as reivindicações por uma reforma universitária democrática. Têm início as ações estudantis na faculdade de letras de Nanterre.
Também em janeiro de 1968 acontece um momento crucial dos antecedentes do Maio: a Ofensiva do Tet. Foi a série de contra-ataques dos vietnamitas do Norte e da Frente Nacional para a Libertação do Vietnã, do sul, contra o exército invasor ianque.
O Tet não apenas marcou o início do fim da agressão imperialista naquele país do sudeste asiático, mas também intensificou e consolidou a solidariedade das classes populares de todo o mundo ao bravo povo vietnamita — solidariedade que alcançou no Maio e em seus desdobramentos a força suficiente para fazer o governo do USA reconhecer a derrota a que seu poderoso exército foi submetido.
Esta foi, resumidamente, a escalada de fatos, tendências, agitações e articulações revolucionárias que desembocaram no Maio. Sim, revolucionárias, uma vez que em conjunto constituem um importante capítulo da tradição de lutas das classes populares pela supressão da ordem arquitetada pelas classes dominantes. Maio foi revolucionário no sentido anti-capitalista e anti-imperialista, ainda que o revisionismo tente apresentá-lo ao distinto público apenas como uma "revolução dos costumes" da sociedade burguesa.
Quando você for convidado pela capa de um jornalão qualquer para ler um texto sobre o Maio, ou quando uma chamada da Rede Globo chamar sua atenção para um programa especial sobre os fatos que antecederam os acontecimentos daquele mês de 1968, provavelmente será (des)informado que a deixa daqueles movimentos foi a ascensão da pílula anti-concepcional. Fazem isto para dar credibilidade à versão deles: de que se tratou de milhares de moleques que ousaram pedir sexo, drogas e o direito de fazer o que bem entendessem com a mesada dada pelos pais.
Quando tentarem lhe empurrar esta farsa, lembre-se das verdadeiras e grandiosas histórias de luta, coragem e solidariedade que aqueles anos nos legaram.