‘Antisenderismo’, a justificativa do crime e da corrupção no Peru

‘Antisenderismo’, a justificativa do crime e da corrupção no Peru

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Dia 5 de novembro passado teve início o que foi denominado de mega julgamento dos dirigentes do Partido Comunista do Perú, também conhecido como Sendero Luminoso. Este conluio visa responder, com uma farsa, à Corte Latinoamericana de Justiça que desqualificou os processos da era Fujimori/Montesinos, que instituiram os julgamentos feitos por juízes encapuzados e sem possibilitar o direito a defesa.

As várias frações que gerenciaram o Estado peruano nas últimas décadas aproveitaram a oportunidade para isentarem-se, umas às outras, do genocídio praticado contra o povo peruano, seja através do velho Estado ou através de bandos paramilitares. Para tanto, criaram a “Comissão da Verdade”, que, fazendo as vezes de polícia judiciária, montou uma conclusiva patranha atribuindo ao PCP, na pessoa de Dr. Abimael Gúzman, o Presidente Gonzalo, a responsabilidade principal pelas mortes ocorridas no Perú após o início da guerra popular naquele país.

Dr. Abimael não teve, até o momento, oportunidade de se pronunciar a respeito das “cartas de paz” atribuídas a ele e divulgadas por Fujimori/Montesinos como prova de sua capitulação. A tentativa de fazer um julgamento sumário surge no rastro de uma virulenta campanha antisenderista, orquestrada por Alejandro Toledo, Alan Garcia, os saudosistas de Fujimori e toda reação peruana. É o que vamos encontrar neste artigo de Luiz Arce Borja.

O “antisenderismo” é uma espécie de macartismo à peruana. Ou melhor, uma maldição da indecência política deste país. Seus mentores (os especialistas em luta contra-insurgente) usam esta invenção para justificar milhares de assassinatos, perseguições, crimes e torturas contra a população civil. Lutar contra o senderismo — o que certamente expressou uma etapa crítica para o Estado quando a guerrilha estava em seu melhor momento —, passou a ser o eixo da guerra psicológica contra o movimento insurgente que se iniciou em 1980.

Em torno desta estratégia elaborada com o apoio da CIA americana se uniram políticos, intelectuais, militares, delatores, polícias, paramilitares, jornalistas, empresários, padres, cardeais e toda essa falange da sociedade corrompida do Peru. Sob o pretexto da luta contra o Sendero Luminoso, Vladimiro Montesinos fazia reuniões permanentes em seu quartel do Serviço de Inteligência Nacional (SIN). Nesse lugar reunia a maioria dos diretores dos meios de comunicação do Peru, a hierarquia católica e chefes de partidos políticos.

Como resumiu Carlos Tapia, um dos fundadores da Esquerda Unida (IU), em 1993: “Se existe algum tema que requer a mais vasta unidade e que ponha em segundo plano as discrepâncias entre oficialismo e a oposição, é precisamente a luta pela pacificação”.1 Quer dizer, a luta contra o Sendero Luminoso. A luta antisenderista foi suficiente para impor um regime militarizado, com juízes encapuzados e centros de tortura onde os prisioneiros eram massacrados até a morte. Prova disso é que até agora se continua descobrindo centros de tortura e crematórios clandestinos em quartéis militares. Durante décadas, o antisenderismo serviu para que as forças de segurança sustentadas pelo governo americano eliminassem centenas de estudantes, operários, camponeses, intelectuais e humildes cidadãos. No auge da luta armada (1980 – 1998), o antisenderismo foi a camada protetora de autoridades corruptas e criminais. Os maiores e abomináveis crimes e genocídios de populações inteiras foram cometidos em nome da “luta contra o Sendero Luminoso”.

A história peruana, só conhece um caso semelhante de satanização de um movimento revolucionário. Se refere à grandiosa rebelião de José Gabriel Tupac Amaru (1738 – 1781). A revolução libertadora ocorreu em novembro de 1780, e como a qualificou um renomado historiador foi: “O maior motim que havia sofrido o Peru desde sua conquista”2. A derrota deste movimento se deu em abril de 1781. No mês seguinte (18 de maio), Tupac Amaru foi executado, mas antes de sua morte cruel foi obrigado a presenciar a tortura e a morte brutal de sua esposa e de seus familiares mais próximos (filhos, tios, tias, irmãos, etc).

Nem sequer os movimentos guerrilheiros que se desenvolveram entre 1962 e 1965 lograram a mesma sorte que a guerrilha maoísta de 1980. Após a derrota não houve consequência de satanização, e alguns dirigentes que sobreviveram a ruína da luta armada se reconfortaram no sistema político que antes haviam combatido. Para mencionar alguns exemplos: Héctor Béjar um dos chefes do FLN acabou como alto funcionário (ideólogo) do SINAMOS (Sistema nacional de Mobilização social), que os militares organizaram para corporativizar e controlar as organizações populares do país. Hugo Blanco, que tanta fama havia ganho como integrante do FIR trotskista, acabou como chefe parlamentar em 1978. Gonzalo Fernández Gasco, do MIR, foi outro dos guerrilheiros que terminou como candidato estrela nas fileiras dos ‘maoístas” do Pátria Roja.

Cidadãos bons e cidadãos maus

Desde 1980, com o início da guerrilha maoísta, o Estado fez uma divisão simples da sociedade peruana: O Peru ficou dividido entre “Senderistas e não senderistas”. Entre bons e maus cidadãos. Entre democratas e terroristas. Esta divisão não variou, apesar das mudanças na correlação na luta de classes.

Na margem dos “bons” se alinharam militares, polícias, paramilitares, rondas camponesas, rondas urbanas, partidos políticos (de direita e de esquerda oficial), a maioria das organizações não governamentais, “senderólogos” de todo calibre, as câmaras municipais, os sindicatos amarelos, os delatores, o lumpesinato, meios de comunicação (TV, rádio, diários e revistas), as cúpulas religiosas (Católica, Testemunha de Jeová, Evangélicos, etc.), o parlamento, o poder judicial, agentes do imperialismo e outros.

Este conglomerado foi a grande aliança de classe para salvar o chamado “Estado Democrático”, com o risco de acabar nas mãos da subversão. No lado dos “maus” estavam naturalmente os homens e mulheres comprometidos na luta armada. Estavam também os advogados democráticos, os familiares dos prisioneiros de guerra, intelectuais e jornalistas democráticos e éticos, os camponeses que lutavam pela terra, populações famintas, estudantes universitários, professores, etc.

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Arturo Chumpitaz Aguirre, 42 anos
Jorge Apaza Rivera, 43 anos

Arturo e Jorge foram presos
quando faziam propaganda
em defesa de Abimael Guzmán

O pretexto de lutar contra o “senderismo e o terrorismo” serviu para esgotar a sociedade peruana e fazer desaparecer os últimos vestígios do Estado de Direito. Sendo declarado o “estado de emergência” na maior parte do país, onde os militares se converteram em amos e donos da política e até da vida da população. Os grupos paramilitares foram legalizados (rondas camponesas, rondas urbanas, grupos de defesa civil, etc.) e as forças armadas utilizaram-nos como bucha de canhão na guerra contra insurgente. Os juízes civís se transformaram em servidores do poder central e dos militares. O parlamento cujo desprestígio histórico não se origina em 1980, se converteu numa vulgar instituição para proteger o crime e a corrupção no Estado. Os meios de comunicação (rádio, TV, diários e revistas) ampliaram sua mediocridade e foram simples porta-vozes dos governos de turno. Nesse contexto de implantação do terrorismo de Estado, as forças armadas militarizaram as universidades3. Em 1991, o exército tomou de assalto a Universidade La Cantuta (Lima) e a Universidade de San Marcos, consideradas pelo governo como “pró-senderistas”. A partir dessa data se deu início a uma série de sequestros e assassinatos de estudantes e professores destas universidades. O caso mais conhecido é o sequestro e assassinato de 9 estudantes e um professor (La Catuta) em julho de 1992. Mas não foram só os estudantes universitários que sofreram a repressão do governo, também os adolescentes de 12 a 17 anos de diversos colégios de Huancayo.

Com isso, somente no primeiro semestre de 1993 noticiaram o desaparecimento e assassinatos de 89 estudantes, a maioria foi encontrada degolada e mutiladoa nas margens dos rios da região. Com o lema de “deter o avanço senderista” e “defender a democracia”, tomaram de assalto pequenos povoados, bairros populares da capital e de outras cidades do país. Centenas de dirigentes populares desapareceram por terem sido acusados de “senderistas”. Arrasavam a sangue e a fogo povoados andinos, bombardeados por helicópteros de guerra. Bombas químicas eram descarregadas como no Vietnã e a população sobrevivente era executada no ato. Foram instalados os tribunais militares onde o acusado não tinha nenhum direito à defesa e nem sequer a ler suas correspondências. Em 1993, nos cárceres medievais do Peru eram mantidos aprisionados, aproximadamente, 10 mil pessoas acusadas de pertencer a guerrilha maoísta (senderista).

É sob o pretexto da “luta antisenderista” que o governo norte-americano apressava desde 1990 uma intervenção militar aberta no Peru. “Salvar o Peru do Sendero é algo que o Peru não pode fazer por si mesmo”, disse em julho de 1992 Jeremy Stone, presidente da Federação Americana de Científicos (FAS)4. Na mesma época que Wiliam Odon, militar americano, especialista em guerras internas e conselheiro da Subcomissão de Assuntos Hemisféricos da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos, declarava: “Se o Sendero triunfa, correrá muito sangue… O USA deverá invadir o Peru, estabelecer um governo militar, e lançar um regime de 10 a 20 anos enquanto se instala uma democracia tutelada…”5. Por parte de Robert Torricelli, presidente da Comissão parlamentar disse que a importância da dita reunião, foi que havia discutido que “um eventual triunfo do Sendero Luminoso constituía uma ameaça para a nova ordem mundial” 6.

Por que se segue agitando em grande estilo a propaganda antisenderista? Apesar da luta guerrilheira dirigida pelo partido Comunista do Peru (PCP) ter sido derrotada e seus principais quadros e chefes se encontrarem prisioneiros, mortos ou em desonesta situação de capitulação, o governo continua utilizando este elemento da guerra psicosocial como nos melhores tempos da luta contra a guerrilha maoísta, seus propósitos políticos são dois concretamente; primeiro, lançar uma cortina de fumaça na crise do governo relacionada a corrupção generalizada no seio da família presidencial, e a bancarrota social, econômica e política do país.

Segundo, o antisenderismo serve no imediato como justificativa dos planos repressivos do Estado dirigidos à conter as explosões sociais espontâneas originadas pela fome e a miséria no peru. Um exemplo concreto e recente é a ameaça do atual ministro da educação contra os professores que iniciaram mobilizações e greves em defesa de seus direitos econômicos e sociais. O ministro Javier Sota Nadal chamou atenção de forma conclusiva que os professores acusados de senderistas serão punidos com até 30 anos de prisão. Desta maneira, sob o pretexto de lutar contra o “senderismo no magistério”, se pretende deter a nova onda grevista que já se iniciou no seio dos trabalhadores da educação.

Como na época de ouro

Como na época de ouro de Fujimori e Montesinos, agora se assegura o antisenderismo para encobrir os planos repressivos e a corrupção. A imprensa peruana, especialista no sujo manejo da propaganda se situou na primeira “linha de fogo”. Seu objetivo imediato é distrair (desinformar) a população e encobrir a catástrofe econômica e social do toledismo.

Fundamentalmente se busca manipular a opinião pública e justificar qualquer tipo de repressão que o governo execute contra uma população faminta e em busca de soluções para sua miserável existência. Se encobre também o tremendo escândalo moral que rodeia a família presidencial. Quase todos os membros do clã Toledo estão sendo acusados por delitos comuns (jogos de azar, tráfico de influências, falsificação de documentos, roubos, violações, etc.).

Como nos velhos tempos, o diário La República — cujo fundador Gustavo Moheme Seminario (também dirigente da Esquerda Unida — IU) era um assíduo visitante do SIN (graças aos vladivídeos, agora se conhece estes segredos) —, lançou uma campanha para por em primeiro plano da conjuntura política a “luta contra o Sendero Luminoso”. Para começar pediu um “julgamento” sem absolvição para o chefe da guerrilha maoísta, que, como se sabe, está aprisionado desde 1992 em uma prisão 4 metros abaixo da terra, a qual somente têm acesso seus carcereiros.

O propósito do La República é claro. dar uma mão ao governo de Toledo, que o mesmo diário apoiou durante toda campanha eleitoral em 2000 e 2001 (na desgraça é que se conhece os amigos). Se antes os donos dos monopólios dos meios de comunicação iam cobrar seus subornos e salários nos quartéis do serviço de Inteligência nacional (SIN), agora o fazem através de negócios lucrativos (milionários anúncios publicitários, eliminação de impostos, regalias para a importação de papel e outros insumos, etc.) que recebem direto ou camufladamente do Estado.


* Luis Arce Borja é diretor do El Diario Internacional, um dos mais vigorosos e confiáveis jornais da imprensa de novo tipo no mundo
1 Carlos tapia, diário expresso, 25 de novembro 1993.
2 Daniel Valcárcel, A rebelião de Tupac Amaru, Lima 1973.
3 Somente entre 3 de dezembro de 1990 e 25 de março de 1993, a fiscalização Provincial de Huancayo, recebeu 61 denuncias de desaparecimentos. A maioria eram estudantes da Universidade Nacional do Centro acusados de pertencer ao “Sendero Luminoso”. Os cadáveres destes estudantes, despedaçados e com sinais de tortura, foram encontrados nas margens dos rios e em áreas agrícolas da região. 4 Publicado em Expresso, 30 de julho de 1992.
5 Declarações de Wiliam Odon, tenente geral USA e especialista em guerras internas. Conselheiro em 1992 da Subcomissão de Assuntos Hemisféricos da câmara de Representantes do Congresso dos Estados Unidos. Julho 1992.
6 Publicado pela revista Que fazer, setembro-outubro 1992.
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