Déa Trancoso veio de uma família musical que fazia um sarau à sua maneira, em Almenara, onde nasceu, ao norte do Vale do Jequitinhonha. Quando todos se encontravam, um puxava uma seresta, outro um samba canção, um congo, e assim passavam momentos inesquecíveis, que ajudaram a formar a cantora e compositora que é hoje, sempre envolvida com pesquisas do universo da cultura popular, que resultam em belas canções.
— Meu pai é um violonista amador, que tocava grandes clássicos, fazendo a marcação com os pés. Meu avô materno era sanfoneiro, cantador de coco nordestino, acostumado a se apresentar nos circos que passavam pela cidade. Minha mãe não fica atrás quando o assunto é música, sendo uma cantora nata e de muito bom gosto. Foi caixa de banco durante muitos anos e seu apelido no trabalho era ‘bem-te-vi’, porque cantava o tempo todo, e o povo que frequentava a agência gostava. Hoje ela canta no coral da cidade de Almenara — fala.
— Estou falando do povo do Vale, que é o meu pessoal, mas creio que o brasileiro de uma forma geral é muito musical. Na verdade, o Brasil tem esse artigo de luxo que é a música brasileira, algo extremamente bem acabado, com grandes artistas — acrescenta.
Déa teve o privilégio de ser formada com o que há de melhor na história da música brasileira. Através de seu pai, que sempre teve e até hoje aprecia os seus ‘vinis’, conheceu toda a obra de Cartola, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho e Pixinguinha. Já a sua mãe amava samba e tinha suas preferências por Clara Nunes e Elizeth Cardoso.
Na adolescência foi estudar em Montes Claros e se formou em jornalismo. Nunca estudou música, tudo que aprendeu foi através da audição.
— Também é um tipo de estudo. Fui aprendendo com os mestres que encontrei na vida, sendo meu pai o primeiro deles, que me ensinou a ouvir música de maneira que pudesse destacar cada instrumento que estava sendo tocado. Ele só tem até a terceira série primária, mas possui grande sensibilidade. Costumo dizer que minha aptidão vem dele — confessa.
— Também cheguei a pegar bons programas no rádio, como o do Adelzon Alves, que é um apaixonado por João Nogueira, e proporcionou que eu conhecesse toda a obra desse grande cantador de samba, que dizia que ‘o samba a gente não canta, a gente diz’, sensacional. Em minha obra há reflexo de todo esse meu passado e do sertão brasileiro, do Vale, com as manifestações culturais populares — continua.
Pesquisando as coisas do povo
Déa diz que a palavra sempre foi muito importante em sua vida, lendo muito, desde bem pequena, grandes clássicos da literatura. E esse seu hábito a influenciou a desvendar detalhes de cultura popular através de pesquisas que faz por conta própria.
— Gosto de entender as coisas do povo. Um determinado mestre canta algo em Bocaiúva e outro mestre lá em Pernambuco, que nunca viu aquele outro, canta a mesma coisa, tudo isso fora da mídia. E o que a cultura popular tem de mais bonito é a capacidade de passear pelos lugares e se modificar de acordo com cada um. Uma loa de congo que gravei no Tum-tum-tum o beija-flor, é cantada de um jeito no congado e de outro no maracatu. E vamos descobrindo os personagens fortes da cultura popular, e um deles é o pássaro, muito presente na fala do povo e em sua cantiga — conta.
— Esse universo me fascina, e indo atrás disso cheguei a um tipo de encantamento com o universo indígena, com sua cultura, a sociedade que eles montaram e o jeito que estiveram e ainda estão, mesmo capengamente depois de tudo que sofreram por parte daqueles que os quiseram ‘civilizar’ dentro dos seus padrões — acrescenta.
O Tum-tum-tum, primeiro disco solo de Déa, é fruto dessas suas pesquisas e recebeu quatro indicações para o Prêmio Tim em 2007. O disco foi gravado de forma independente e é vendido em seus shows e pela internet, através do sítio da Sons & Sons, e já está na terceira tiragem.
— A música de artistas que gravam de forma independente sempre encontra obstáculo, porque estão fora do "mercado", e dentro desse grupo estou eu que faço algo mais específico ainda, a música de pesquisa. Mas meu trabalho é prazeroso e luto para que possa sobreviver dele, tirar meu sustento, porque tenho um filho para criar e contas para pagar — fala.
— Estou com quarenta e cinco anos de idade e vinte e cinco de estrada, e já tenho um certo prestígio aqui em Minas, pelo tempo de trabalho e o selo Tum-tum-tum disco que criei, porque atualmente temos que batalhar cotidianamente espaços e shows para mostrar o nosso trabalho e para quem vive disso é como ‘matar um touro por dia’ — acrescenta .
— Mas tenho trabalhado muito no Brasil e exterior. Há pouco fiquei encantada com a maneira como fui tratada em um concerto na França, com tradução simultânea para uma platéia de franceses interessados em conhecer a nossa cultura. Em dezembro fui para o Chile a convite da fundação Violeta Parra para divulgar meu CD por lá. Também tenho feito shows pelo Brasil todo, participado de projetos de música daqui de Minas e estou planejando um novo disco— conclui Déa.