Aqui é o lugar, esta é a hora

Aqui é o lugar, esta é a hora

A Fazenda Sal da Terra era uma daquelas propriedades cujo dono têm dívida de sangue com o povo. Nela, muitos homens, mulheres e crianças sofreram os horrores da escravidão. E isso percorreu o império até chegar aos governos ditos “democráticos”.

É público que, até bem pouco, na fazenda ainda dominava a chibata do feitor. O tronco e a senzala, reconstruídos, funcionavam plenamente. Nenhum trabalhador, por mais necessitado que estivesse, aceitava oferta de trabalho lá. Os trabalhadores eram trazidos de longe, a maioria da Bahia.

Após inúmeras denúncias, uma inspeção do Ministério do Trabalho constatou as irregularidades, mas nada fez. Comenta-se na cidade que os fiscais foram comprados a peso de ouro pelo latifundiário Moacir, conhecido como Bunda Larga. E os próprios camponeses explicavam:

— A gente chama a família dele de Bunda Larga há várias gerações. Eles, porque não fazem nada, só exploram o trabalho alheio, ficam assim, barrigudos e bundudos.

II

Era manhã. À frente, a polícia. Também vieram um representante do Incra, da Vara de conflitos agrários e o oficial de justiça. Com os rostos cobertos e foices em punho, uma comissão de mulheres recebeu esses asseclas do latifúndio. Mulheres com os filhos, corajosamente desafiaram a polícia e demais integrantes da “comissão de gerenciamento de crises”.

E disseram:

— Só saímos se for para uma terra nossa.

A comissão afirmou que havia uma terra próxima para onde eles poderiam ir provisoriamente. Que já estava tudo arrumado. Levaram até fotos do local.

A comissão de mulheres não aceitou a negociação. Queria garantia de que a terra seria efetivamente deles. A comissão pediu um tempo para solucionar o caso com o Incra. Voltaram após o almoço, trazendo um documento, já assinado pelo superintendente do órgão, afirmando que eles poderiam ficar numa determinada área até que uma fazenda fosse encontrada para a desapropriação. As mulheres solicitaram levar o documento à Assembléia para aprovação.

A Assembléia rejeitou o acordo. Queriam uma terra definitiva e não uma provisória. Num governo de latifundiários, de especuladores e do imperialismo não se confia, mesmo com acordos assinados que, a rigor, faz questão de quebrar.

A comissão de “gerenciamento de crises” ouviu o relato das mulheres. Disse que retornaria no dia seguinte com uma nova proposta.

Os policiais foram embora. Mal caiu a noite e o clima no acampamento amenizou. Agora era esperar o dia amanhecer para uma nova rodada de negociações. A guarda permanecia atenta.

Às duas horas da madrugada os cães começaram a latir de forma insistente. A guarda observou a movimentação de veículos. Havia mais de quinhentos policiais, muito bem armados.

Ao estourar dos foguetes os camponeses improvisaram armas com que tinham à mão. Lutaram bravamente. Um helicóptero sobrevoou o acampamento, jogando um pó químico que feria a pele, provocava intensa coceira e irritação nos olhos. Todos os barracos foram destroçados pela selvageria policial. Ao final, a polícia ateou fogo ao acampamento.

III

Após o despejo, uma parte das famílias desistiu da luta. As que persistiram ficaram ainda mais unidas. Fundiram-se numa única e grande família.

Elas estavam agora numa área já conquistada, pertencente a outros camponeses. A situação não era das melhores. Tinham que vender sua força de trabalho para o latifúndio vizinho e podiam apenas plantar pequenas hortas porque toda a área agricultável já estava utilizada.

Mas o desânimo era duramente combatido.

As famílias se preparavam para ocupar o latifúndio novamente. Empenharam-se em mobilizar mais famílias e organizar melhor a luta. Quando os macacos as expulsaram, aprenderam mais sobre a resistência, já que renunciar significa morrer.

O senhor Francisco (Chico, para os mais próximos) era um baiano arretado. Quando se decidiu pela luta, teve de convencer a esposa, Zilda. Agora que ele vacilava, pensando em deixar o acampamento, era ela que o convencia a ficar.

Zilda era alegre e adorava a vida no acampamento. Ela e Chico tinham duas filhas da cor da noite, puxando a mãe.

No início, ela relutou. Ficar sem banheiro com vaso sanitário e chuveiro, sem fogão a gás, sem televisão… Na área, há meses, nem se lembrava mais do que antes lhe parecia como algo extremamente indispensavel à vida, única maneira de conduzir as coisas — como chegou a pensar.

No entanto, no meio de toda aquela gente, pisando aquele chão, surgiam-lhe fatores muito mais importantes e convincentes. As mulheres — as mesmas da comissão que recebera a polícia antes da expulsão — estavam organizando um curso de alfabetização e um grupo de ajuda mútua de produção de tapetes.

Na área também havia uma cozinha coletiva — que já tinha gerado muita confusão, mas agora funciona perfeitamente — uma prática que reduz bastante o trabalho doméstico invisível que recai sobre a mulher.

A vida na área era totalmente diferente daquela que levara desde criança. Além de companheirismo inquebrantável, nunca faltava comida porque todos se uniam para resolver os problemas de abastecimento e também outros que aparecessem. Não havia violência, drogas e bebida. As crianças podiam brincar, livres e alegremente pela área.

Agora Zilda pensava em tudo que poderia perder se voltasse para a cidade. Perderia o sossego e a esperança de uma vida um pouco melhor para as filhas. Perderia a oportunidade de conquistar uma terra e isso ela não queria mesmo.

Ela viu o pai e o irmão mais velho morrerem de tanto trabalhar para o latifúndio e, na cidade, outros deixarem a última gota de sangue para o patrão estrangeiro. Às vezes, serem explorados até o fim por um brasileiro rico que entregava todo o seu lucro para o gringo. Não queria o mesmo destino para as crianças, para si nem seu companheiro.

Depois de muito matutar, ela tomou coragem e se dirigiu ao Chico nesses termos:

— Olha Chico, no início eu não queria vir. Agora que nossa vida mudou você quer ir embora? Tá certo que sofremos, que a polícia maltratou todo mundo, mas não vamos desistir. É isso que eles querem. Nós temos é que ocupar de novo a Fazenda e mostrar que conquistaremos nosso pedaço de chão.

E concluiu com um longo suspiro :

— Chico, se tu quiser, pode ir. Eu fico aqui com as meninas.

Chico ficou escabreado, até parecia mineiro. Saiu calado e adentrou o pequeno barraco de lona preta. Sentou-se na cama improvisada com paus e ali ficou pensativo por horas. Zilda deixou-o sozinho a tarde toda.

No cair da noite, ela foi se deitar ao lado do marido, que muito carinhoso falou-lhe:

— Olhe nega, tu tá mesmo certa. Nós não vamos dar esse gostinho para os “homi”, nem para esse presidente ladrão que vive prometendo terra para o camponês e não cumpre. Eu vou ficar com você e quando conquistarmos nosso pedacinho de terra, vamos dar o nome do teu pai.

E Chico ficou. O que se sabe é que eles conquistaram a terra. Como os demais, deram muito trabalho para os capangas fardados e para a tal “comissão de gerenciamento de crises”. Mas aí já é outra história.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: