Vítimas da Batalha de Corumbiara/Fazenda Santa Elina, que ocorreu há 12 anos em Rondônia, exigiram em Brasília — de 8 a 27 de agosto — a indenização e o corte da Fazenda Santa Elina devida pelo governo. A reportagem de AND acompanhou os camponeses.
A Batalha de Santa Elina — ou o massacre de Corumbiara — aconteceu em Rondônia. No dia 9 de agosto de 1995, cerca de 600 famílias que ocuparam a Fazenda Santa Elina foram vítimas de torturas e assassinatos no maior massacre promovido pelo Estado após o gerenciamento militar.
Doze anos após, camponeses organizados pelo Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina — Codevise, exigiram — na própria sede do governo federal, em Brasília — a cobrança da indenização e a imediata destinação da Fazenda Santa Elina para todas as vítimas.
Os camponeses também cobram uma promessa feita pelo atual presidente da República:
— Nós não somos bandidos. Viemos atrás dos nossos direitos. Após o massacre, o Lula foi a Rondônia e até ajudou a achar duas crianças escondidas no oco de uma árvore. No Colorado D’Oeste, ele foi nos visitar e falou que quando fosse presidente ia indenizar e cortar a terra da fazenda Santa Elina para todas as vítimas do massacre, que somos nós — explica o camponês Manoel José da Silva, membro do Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina.
Apesar da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos — OEA, até hoje nenhuma vítima foi indenizada.
O Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina exige a indenização de todas as pessoas — e não de apenas 27 vítimas, como faz a OEA. A tática do governo é oportunista e fascista. Oportunista porque ao indenizar as 27 pessoas da lista da OEA, o governo colocará uma pedra sobre o assunto e não mais se falará sobre Santa Elina. Fascista porque divide as famílias, colocando vítima contra vítima.
Estamos chegando
Cerca de 60 camponeses oriundos da batalha chegaram a Brasília, após três dias de viagem, no dia 8 de agosto. Sob intensa provocação do aparato policial que buscava impedi-los de montar suas barracas, os camponeses colocaram faixas no gramado em frente ao Congresso Nacional, delimitando a área, e passaram a noite no local.
No dia seguinte, o Codevise realizou manifestação em frente ao Congresso Nacional e iniciou uma jornada de contatos com parlamentares, órgãos, instituições de direitos humanos e entidades que pudessem colaborar com a luta das vítimas.
— A vinda dos camponeses de Corumbiara, companheiros da heróica resistência de Santa Elina, nada tem com os métodos dos movimentos oportunistas que vêm a Brasília. A chegada do Codevise desmoraliza as manifestações dos movimentos oportunistas e claramente revela a luta classista, popular, a questão agrária e esse sistema podre. Ao mesmo tempo, desmoraliza toda essa cantilena sobre governo democrático, porque revela o estado policial que há nele. Mostra que Santa Elina é uma luta que será lembrada como um acontecimento que contribuiu para os que desejam lutar de verdade encontrem seu verdadeiro caminho — explicou o representante da Liga dos Camponeses Pobres, Nilo Hallack.
Como resultado da cobrança enérgica dos camponeses, alguns parlamentares protocolaram, no dia 9, um pedido de audiência ao presidente. O pedido também foi assinado por várias entidades sindicais.
Na manhã do dia 17 de agosto, os camponeses participaram de uma reunião com o presidente nacional do Incra, Rolf Hackbart, com o ouvidor agrário nacional, Gercino José da Silva Filho, com o superintendente do Incra em Rondônia, Carlino Lima e representantes da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.
Os camponeses cobraram do Instituto, de forma imediata, a desapropriação da fazenda e a instalação de 80 famílias, vítimas do massacre, que não haviam recebido terras ainda — porque continuavam fugindo da repressão policial e da perseguição dos jagunços ou em busca de tratamento médico.
Promessas X provas
O Incra fez muitas promessas, mas os camponeses querem provas. Após dias protelando a entrega da ata da reunião com o Incra ela foi recebida pelos camponeses. Agora a ata servirá de instrumento comprobatório, porque nela está claramente expresso: o Incra deverá buscar a forma legal de desapropriar a Fazenda Santa Elina e as 80 famílias de vítimas, que ainda não possuem terra, receberão seus lotes.
Na tarde de 17 de agosto, o Comitê de Defesa teve uma audiência com o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e relataram o seu padecimento desde o Massacre e indagaram energicamente por uma atitude da Comissão.
No dia 21 de agosto, 21 camponeses reuniram-se com o secretário especial de Direitos Humanos da Presidência da República, ministro Paulo Vanucchi, além de um deputado de Rondônia, representantes do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos — Cebraspo e da Presidência da República. O ministro admitiu que a indenização deverá atingir todas as vítimas — não apenas as 27 reconhecidas pela OEA — e falou sobre a necessidade de desapropriação da fazenda. Apesar do compromisso de encaminhar a reunião com a Presidência da República para o dia 22, a resposta só chegou três dias depois.
O gerente Luiz Inácio se recusou a receber as vítimas de Santa Elina. As mesmas para quem ele prometera, há 12 anos, indenização e desapropriação da fazenda. Não teve coragem de olhar nos olhos dos camponeses e explicar-lhes porque, até hoje, não cumpriu sua promessa. Apenas encarregou seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, de encontrar-se com os camponeses. Ao final, prometeu “formar uma comissão de trabalho” que, em até 60 dias, iniciará em Rondônia a identificação das vítimas e agendar uma reunião com o Presidente, além da distribuição de terra às 80 famílias restantes.
Prevendo o engodo, a camponesa Maria Coimbra da Silva, 63 anos, também do Codevise, levantou-se dizendo ao Chefe de Gabinete:
— Vocês já nos enrolaram muito tempo. Queremos a indenização imediatamente. Depois que eu morrer não vou precisar mais dela.
O povo é perigoso
Nos ministérios, Câmara dos Deputados e Senado os camponeses eram olhados pelos exploradores do povo como seres perigosos porque traziam estampado no rosto e nos seus gestos a autoridade das massas conscientes e em nenhum momento se humilharam diante do Estado latifundiário, burocrático e semicolonial.
Esses bravos camponeses dormiram ao relento, sob o sol escaldante do dia e o frio cortante da noite, com dificuldades para fazer sua higiene pessoal e ter alimentação apropriada. Alguns ficaram mais doentes, mas nenhum desistiu de lutar. Sua maior vitória foi a de reacender a chama da luta e fortalecer sua unidade.
Também enfrentaram o oportunismo dos parlamentares, como a da senadora Fátima Cleide (PT/ RO), que se recusou a ajudá-los. Ao passar rapidamente pelos principais dirigentes do Codevise, criticou a decisão dos camponeses de cobrarem seus direitos em Brasília. Ao contrário, a senadora ofereceu passagens de volta para Rondônia. Mas os camponeses permaneceram ainda mais firmes.
— Temos força para lutar. Aquelas pessoas que mantinham certas ilusões, agora vão acreditar mais na luta. Algumas achavam que a Liga era igual aos políticos, que queria usar as pessoas. Mas viram que as coisas são muito diferentes. A Liga de Rondônia vai crescer muito. O próximo passo é mobilizar todas as vítimas de Corumbiara pela indenização e pelo corte da Fazenda Santa Elina e cobrar tudo que os camponeses têm direito. Vamos ter que fazer as coisas por nossa conta, como estamos fazendo, obrigando a nos dar nossos direitos — concluiu o camponês Elias Querino da Silva, do Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina.
No dia 27 de agosto, os camponeses voltaram para Rondônia, após ter em mãos, cada um, a cópia do compromisso firmado pelo Chefe de Gabinete da Presidência com o Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina.
12 anos de resistência
No sul de Rondônia, final da década de 70, camponeses de todo o Brasil chegam, atraídos pela promessa de terras férteis e ajuda do governo. A maioria se transforma em mão de obra barata para o latifúndio. Na década seguinte, os camponeses pobres da região começam a organizar-se para ocupar terras, obtendo várias vitórias, apesar da repressão.
Em 1995, cerca de 600 famílias camponesas ocuparam um dos maiores latifúndios da região, a Fazenda Santa Elina, com 18 mil hectares — que equivalem a 18 mil campos de futebol!
A direção do MST se recusou a apoiá-los, inclusive delatou os camponeses que estavam se mobilizando. No dia 15 de julho as famílias entraram na área. A notícia se espalhou e conquistaram o apoio de pequenos e médios camponeses, além de comerciantes locais.
No acampamento, as famílias começaram a produzir, organizar a escola, a autodefesa, a cozinha coletiva. No dia 19 de julho, uma liminar de reintegração de posse foi expedida. Rapidamente a polícia dirigiu-se ao acampamento e um posseiro foi ferido à bala pelas costas nesse primeiro confronto. Os trabalhadores fizeram uma barreira humana em frente ao acampamento. Cantando seus hinos e lançando palavras de ordem interromperam os policiais.
As investidas dos bandos armados de jagunços foram todas derrotadas pela resistência camponesa e a situação começou a preocupar os latifundiários e a seu governo estadual. A imprensa fascista e a União Democrática Ruralista, UDR, reclamavam uma “atitude enérgica”.
Financiada pelos latifundiários Antenor Duarte do Valle e Hélio Pereira de Morais (proprietário da Fazenda), a polícia recebeu veículos, alimentação, transporte de tropas, munição, armas e (até mesmo) aviões. O então governador Valdir Raupp (latifundiário com quem o PT se aliou desde as eleições estaduais em 1994, atualmente senador) planejou e autorizou a ação genocida da Polícia Militar.
Uma comissão foi formada, mas as negociações não avançaram. A polícia — acompanhada da imprensa, filmou o acampamento às escondidas — comunicou aos camponeses que eles poderiam sair pela manhã, sem represálias. Em assembléia, os camponeses decidem resistir, até que, em troca, fosse entregue uma outra área para eles.
Madrugada do dia 9 de agosto. Todos com os rostos cobertos — aproximadamente 400 policiais e 300 jagunços — cercaram o acampamento. Atacaram com bombas de gás lacrimogênio. Os policiais e jagunços usaram as mulheres como escudo. Os camponeses resistiram heroicamente com paus, foices e espingardas de caça. Mas tão logo foram vencidos, os bandidos deram início às torturas que se prolongaram por todo o dia 9, das quais não escaparam mulheres nem crianças. Para obrigar os camponeses a delatar os líderes, com o uso de moto-serras causaram mutilações e desferiram “tiros de misericórdia”.
A PM montou um campo de concentração. Mais tarde, os suplícios se prolongaram durante o transporte para Colorado do Oeste. Uma parte dos camponeses foi levada para um ginásio de esportes. Outra, permaneceu na delegacia, dando prosseguimento às perversidades.
Desorganizada, a população da cidade nada mais pôde fazer que providenciar roupas e alimentos para os presos.
O resultado oficial foi de 16 mortes (uma criança de seis anos, a pequena Vanessa, foi assassinada com um tiro pelas costas) e sete desaparecidos. Todos tiveram algum tipo de seqüela, física ou psicológica, sendo que em consequência vários camponeses faleceram depois, inclusive duas crianças recém nascidas.
A resistência em Santa Elina teve grande repercussão no país e no exterior, o que obrigou a gerência vende pátria de Cardoso/ACM (PSDB/PFL) — que não pretendia dividir a fazenda, mas as famílias — a assentá-las.
Em Porto Velho, uma comissão de negociação composta por membros da CUT, direção do PT e liderada pelo deputado estadual Daniel Pereira (hoje no PL), traficou com os interesses dos camponeses, aceitando a indicação do governo. Na mesma data, reuniam-se em Cuiabá — MT as lideranças perseguidas que exigiam o corte da fazenda Santa Elina. Eles receberam, pelo telefone, a notícia da traição: haviam dividido as 600 famílias e sequer cogitaram a possibilidade de cortar a fazenda.
Esses camponeses foram, depois de prolongadas negociações, distribuídos em três áreas diferentes: Rio Preto ao norte, próximo de Porto Velho; Vanessa, região de Corumbiara e Santa Catarina em Theobroma, onde se concentrou a maioria deles.
Os oportunistas com seus critérios “humanistas”, não perderam tempo de desfazer-se em choros e lamentações, desviando a questão principal que era a razão da resistência dos camponeses: a legítima luta pela terra e a extinção do latifúndio.