O presidente Luis Inácio da Silva ordenou, através do advogado-geral da União, Álvaro Ribeiro da Costa, o encaminhamento de um recurso judicial cujo objetivo é impedir que o Exército seja obrigado, judicialmente, a revelar seus arquivos secretos sobre uma das mais importantes e censuradas lutas do povo brasileiro, a Guerrilha do Araguaia, ocorrida entre os anos de 1972 e 1975, nos estados do Pará e Tocantins.
Passados trinta e um anos deste dramático e marcante episódio nacional, os familiares dos guerrilheiros mortos e desaparecidos continuam sendo desrespeitados e cerceados no seu legítimo direito de recolher os restos mortais de seus parentes. Ainda que, cinicamente, o governo diga, no seu recurso, que preserva este “legítimo direito das famílias dos desaparecidos”, na prática lança mão de uma manobra jurídica tão “legal” quanto torpe, negando o imprescritível e inalienável direito das mães, pais e filhos velarem dignamente seus mortos e o da sociedade brasileira de conhecer a verdade dos fatos históricos.
No mês de julho, a Justiça Federal havia, então, determinado a quebra do sigilo das informações submersas nos arquivos do aparato repressivo do Estado. Informações estas referentes a todas as operações de combate à guerrilha do Araguaia — movimento armado que opôs militantes comunistas e camponeses à tropas das Forças Armadas, da Polícia Federal e das polícias militares da região. A sentença foi proferida pela juíza federal Solange Salgado, titular da 1ª Vara Federal do Distrito Federal, em processo de nº 82.00. 24682-5, instaurado no ano 1982, por familiares de 22 dos 61 guerrilheiros, militantes do Partido Comunista do Brasil, contabilizados pelo Ministério da Justiça como desaparecidos no Araguaia.
No seu despacho, a juíza Solange Salgado deu prazo de 120 dias para a União dizer onde estão sepultados os restos mortais destes guerrilheiros determinando, para isso, uma “rigorosa investigação no âmbito das Forças Armadas” e intimando a prestar depoimentos “todos os agentes militares ainda vivos que tenham participado das operações, independente dos cargos ocupados à época”, ou seja, de generais de reserva a militares de patentes inferiores.
A juíza determinou ainda o fornecimento de informações detalhadas sobre a totalidade das operações militares de combate à guerrilha. Desde os enfrentamentos armados com os guerrilheiros até as capturas e detenções de pessoas com vida, o recolhimento dos corpos dos guerrilheiros mortos, os procedimentos adotados para sua identificação e o destino dado aos corpos.
Formalmente, até que se abram os arquivos lacrados dos militares, não foram feitos prisioneiros no período. Embora camponeses e ex-soldados tenham testemunhado a prisão de guerrilheiros, nem estes nem os que morreram em combate têm suas mortes reconhecidas oficialmente.
A luta dos familiares dos desaparecidos em busca de notícias tem sido longa e dolorosa. E ainda que seja um exemplo de respeito à memória daqueles que viveram uma das mais importantes experiências de luta armada brasileira, tanto esforço não foi suficiente para superar a barreira de silêncio imposta por setores das Forças Armadas, com a conivência da direção nacional do PCdoB e, agora, do governo de Luis Inácio.
Capituladores X famílias
Em entrevista ao Jornal do Brasil no mês de novembro de 2002, João Amazonas — membro do Comitê Central do PCdoB no período da Guerrilha do Araguaia, que assume a direção nacional do partido após o Massacre da Lapa — ao falar dos mortos e desaparecidos do Araguaia afirmou, categoricamente, que não existia nada mais a fazer e conclamou militantes do PCdoB e familiares a acreditarem na versão do coronel-aviador C. Cabral, participante ativo da repressão à guerrilha e autor do livro Xambioá, onde se pode ler que os corpos foram incinerados na Serra das Andorinhas, estado do Pará. João Amazonas avalizou, assim, antes de falecer, a versão dos militares (veja AND nº 8, de abril/2003).
Por sua vez, o ex-guerrilheiro do Araguaia, José Genoíno, atual presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), acusado de delação, em detalhadas reportagens publicadas pelo Correio Brasiliense (12 e 13/08/ 2003), não defende com firmeza e convicção a memória dos combatentes brutalmente torturados e assassinados, preocupado em sustentar a gerência de Luis Inácio e resguardar a imagem deste velho e podre Estado, em particular das Forças Armadas.
Por tudo isso, acreditar que o Estado brasileiro, por sua iniciativa própria concordará em ter “obrigação jurídica e ética para com todas as famílias de desaparecidos políticos”, como reivindicam alguns neste momento, é ingenuidade. A sua ética é a das classes dominantes, cujo interesse é manter amordaçada, definitivamente, a história da Guerrilha do Araguaia.
Assim como os anistiados, principalmente os de origem proletária que pegaram em armas contra a ditadura militar de 64, enfrentam hoje uma nova batalha em busca de seus direitos, os familiares dos combatentes do Araguaia também se preparam para continuar a luta na busca dos meios concretos que permitam encontrar os restos mortais de seus parentes.
Diferentemente da Argentina e Chile, onde o movimento tem peso e avança para levar aos tribunais os assassinos e torturadores, tanto executores como mandantes dos crimes políticos, no Brasil isto não acontece porque os anistiados “bem nascidos” e os renegados, em sua maioria, estão no poder, e são eles próprios que interferem para que a verdade não venha a público.
A frustração deu lugar às duras críticas ao governo de Luis Inácio, que, em discurso, reconhece o direito dos familiares, desde que estes não possam exercê-lo, de fato.