Uma reflexão sobre a história das lutas e o fazer cinema
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Filme teve pré-estreia na sede do jornal A Nova Democracia, em março de 2018
Um dos momentos mais heroicos e dramáticos da história brasileira, a Guerrilha do Araguaia, deve chegar às telas este ano. O filme Araguaia, Presente! parte deste momento da história do país para fazer uma análise não apenas da luta armada travada na região amazônica, como também do processo histórico que culminou com o regime militar-fascista que se instalou no país após o golpe de 1964, e a resistência ao estado de sítio, com todos os seus acertos, erros e contradições.
Os realizadores do filme, o escritor, filósofo e cineasta André Queiroz, e o cineasta e historiador Arthur Moura, deram entrevista exclusiva ao jornal A Nova Democracia.
Por que vocês resolveram abordar esse tema?
André Queiroz: A ideia para a produção do filme surgiu a partir do convite de um ex- militante que esteve na luta do Araguaia. Eu estava exibindo outro filme nosso, “El Pueblo que falta”, no Instituto de Estudos Latino Americanos (IELA), em Santa Catarina, e ele, por conta da militância de muito tempo, falou sobre a importância desse período, e viu uma possibilidade de parceria entre nós. Então, fomos convidados a pesquisar sobre o processo histórico político que culminou na organização da guerra popular prolongada, que fora a forma como o PCdoB pretendia fazer operar, de forma tática.
No Araguaia, Presente! buscamos apresentar as razões que levaram os militantes do Partido Comunista do Brasil (sigla PCdoB) a organizar seu plano de libertação nacional com vista ao advento do socialismo em nosso país. Nesse sentido, procuramos esmiuçar o que foi a Guerrilha do Araguaia, o maior deslocamento de tropas militares em terras nacionais. A Guerrilha, que se deu entre abril de 1972 e o princípio de 1975, foi silenciada pelas autoridades militares durante mais de duas décadas, sendo que até o presente, o alto comando militar não divulgou o seu arquivo secreto acerca da Guerrilha do Araguaia. Daí, a importância do resgate de nosso passado histórico recente desde as vozes daqueles que foram silenciados, ex-guerrilheiros e familiares.
E nesse resgate se insere um dos momentos mais covardes e brutais durante o regime militar, o Massacre da Lapa…
Fizemos questão de abordar a fundamental autocrítica interna do PCdoB, seus avanços e limites, a partir da atualização daquele que ficou conhecido como o “Massacre da Lapa”, em dezembro de 1976, quando parte do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que se reunia no bairro da Lapa paulista para aprofundar os debates sobre a experiência do Araguaia, fora metralhado por forças militares e da segurança pública, fato este ocorrido em meio ao processo de abertura “lenta, gradual e segura” da gestão Geisel [1974-1979]. Naquela reunião havia duas posições antagônicas* que se apresentaram ao debate interno do PCdoB. A tese de Pedro Pomar e a de Ângelo Arroyo. Ambos foram executados pelo operativo militar. Tais teses se destinavam a pensar o que fora a luta no Araguaia. Sendo que, a tese que fora a mais votada pelo comitê presente à reunião fora a de Pedro Pomar, que aprofundava a autocrítica com relação aos erros de preparação da guerra popular que, segundo Pomar, não chegou a se construir de fato. Já a tese de Arroio era de exaltação dos feitos do Araguaia, e que se deveria tomar de exemplo imediato à construção de novos Araguaias.
A gente sabe que produzir um filme no Brasil é bastante caro, principalmente em se tratando de documentário independente. Como está sendo o processo de produção?
Arthur Moura: Começamos a produção em junho de 2016, e como a bibliografia é muito extensa, fizemos muita pesquisa, muitos debates, e tivemos muitas horas de discussão. Diferente de “El Pueblo que falta”, no Araguaia, Presente! nós tínhamos um caixa que foi destinado inteiramente para a produção do filme. Por isso, buscamos envolver as pessoas não só como mão de obra ou técnicos, mas como pessoas ativas na produção. Paralelamente à pesquisa, começamos a filmar os depoimentos que resultaram em mais de 300 páginas transcritas e dezenas de horas de material bruto. Em pouco tempo filmamos com José Genoíno, Crimeia Almeida, Victoria Grabois, Wladimir Pomar, Danilo Carneiro e Dagoberto Costa. O roteiro para as perguntas baseou-se na pesquisa e debate que fizemos previamente, onde lemos diversos autores como Romualdo Pessoa, Claudinei Rezende, Adelmo Genro Filho, Daniel Aarão, Jacob Gorender, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, entre outros. Terminada a pesquisa (na verdade a pesquisa obviamente continuou ao longo do processo), começamos a elaborar o roteiro das cenas de ficção, o que consumiu quase todo o recurso. Primeiro realizamos a cena inicial, que é a do guerrilheiro na mata, ideia que tivemos após filmarmos a entrevista do Dagoberto, onde ele relata sobre como conseguiu sobreviver após o ataque do exército contra a coluna que fazia parte. Construímos a cena em Lumiar [região serrana do estado do Rio de Janeiro] com apenas um ator (Carlos Oliveira) e quatro figurantes. Optamos por apenas construir as cenas sem incluir o relato em off para evitar certos clichês e dar mais vazão às trilhas sonoras que produzimos.
André Queiroz: É bom ressaltar que Araguaia, Presente! não é um documentário clássico. Nele acrescentamos cenas de ficção com roteiro e direção de atores. Além do trabalho de construção narrativa forjado por uma concepção de montagem que visa destacar – para além dos depoimentos dos entrevistados – elementos poéticos, sonoros, trilhas musicais de composição específica ao filme.
Arthur Moura: Todas as músicas do filme são originais, o que certamente trouxe todo um diferencial para a nossa proposta. Muitos músicos foram envolvidos nesse processo. O André fez questão de convidar o compositor Floriano Santos, que mora em Belém, para gravar as músicas aqui no Rio de Janeiro. Participaram do processo de composição e execução das músicas eu, Bernardo Fajoses, Floriano e Andréa Pinheiro. Foi importante a presença de mais compositores, pois isso trouxe novas riquezas sonoras ao filme. Em seguida, filmamos durante dois dias no Teatro Popular de Niterói, que certamente foi o mais trabalhoso, onde trabalharam mais de vinte pessoas no total. Ali geramos diálogos entre o ditador Geisel e o Tenente Coronel, produzimos o que chamamos “Teatro dos Horrores”, e fizemos diversos depoimentos ficciosos com atores, produzindo uma dramaturgia com textos selecionados de material que lemos. E, por fim, já num processo de enorme desgaste, filmamos no Parque das Ruínas [no bairro de Santa Tereza, região central da cidade do Rio] cena dos guerrilheiros fazendo um justiçamento. Também filmamos na manifestação da greve geral no dia 27 de abril de 2017 com seis atores representando os guerrilheiros presentificados.
Além do filme, vocês pretendem disponibilizar o material produzido para futuras pesquisas?
Sim, uma de nossas preocupações é disponibilizar o material bruto para pesquisadores. Essa é uma preocupação que para além de buscar uma preservação da história visa homenagear os lutadores. Além do mais, não dissociamos o cinema de um compromisso social revolucionário, mas que, para isso, necessita de uma árdua reflexão crítica sobre a teoria e a prática revolucionária. Nesse caso, a história, o cinema e a teoria revolucionária andam lado a lado. A crítica e a autocrítica compõem e norteia a narrativa do filme.
*Entendemos que o termo “antagônica” para se referir às divergências nos balanços de Pomar e Arroyo sobre a experiência do Araguaia não é adequada, uma vez que, apesar das diferenças de concepção, ambas apontavam para a necessidade de corrigir erros e persistir na luta armada revolucionária e repudiavam a capitulação.