Argentina: ainda falta muito para que se faça justiça 

Argentina: ainda falta muito para que se faça justiça 


Nilda defende punição para torturadores

No final de outubro, a Argentina condenou à prisão perpétua 12 torturadores que atuaram no regime militar. Outros quatro receberam penas de 25 a 18 anos e dois foram absolvidos. O povo argentino tomou a Plaza de Mayo em comemoração. Mas, apesar de comemorar o fato, não se esquecem de que ainda há muitos torturadores por julgar e que não se pode dizer que a justiça foi feita. Nesta edição de AND, entrevistamos Nilda Elloy, da Associação de Ex-detidos e Desaparecidos da Argentina.

AND: Qual a sua opinião sobre a Comissão da Verdade, no Brasil?

Nilda: Na Argentina houve um processo semelhante que investigava, mas não punia ninguém.

Nós fomos contrários, até que percebemos que era uma ferramenta que te permite, por um lado juntar as provas e por outro trabalhar com as pessoas, fazer com que o sobrevivente se reconheça como tal e desde aí impulsione as ações penais.

AND: Frente à instalação da Comissão da Verdade, o que diria aos organismos de defesa dos direitos do povo, grupos de ex-presos políticos brasileiros?

Nilda: Que é preciso denunciar. Hoje temos que reclamar pelo cumprimento de outro direito, que é o direito à justiça. E quando você cria uma comissão que investiga, mas não pune, você está cumprindo com uma parte do que obriga a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que é o direito à verdade, mas falta o direito à justiça, que é um direito essencial. Eu entendo que a denúncia tem que ser por todas as vias possíveis. A via é a judicial, ainda que possa parecer estéril. É preciso apresentar causas no país e no exterior, em todos os lados onde seja possível. E, por outro lado, a via é a reconstrução do tecido social através da manifestação popular nas ruas. As ruas são o lugar histórico da resistência.

AND: Repercutiram muito no Brasil os resultados da chamada Mega Causa ESMA. Como foi esse processo?

Nilda: A Mega Causa ESMA ainda não chegou. Esse julgamento foi uma coisa muito pequena referente aos processos abertos entre 86 e 87, no qual havia 16 processados por cerca de 95 vítimas.  Essa primeira grande condenação foi simbólica porque eram pessoas que representavam a impunidade. Alfredo Astiz não apenas não mostrou nenhum arrependimento, como aqui pousava para revistas de celebridades sem nenhum pudor. Além do simbólico, é mostrar que é possível. Agora queremos que se faça justiça de verdade. Dezesseis pessoas não fizeram funcionar um centro clandestino pelo qual passaram cerca de 5 mil companheiros, como foi a ESMA. Então, para dizer que se fez justiça em relação aos companheiros que passarem pela ESMA, ainda falta muito.

AND: Houve duas absolvições, como vocês se sentem ao verem os verdugos livres?

Nilda: As duas absolvições ocorrem porque eles foram processados por poucas causas e havia poucas provas. Caso os torturadores houvessem sido julgados por todos os desaparecidos pelos quais são responsáveis, seriam condenados. Essa é a bronca de muitos companheiros por verem torturadores que eles reconheceram em seus testemunhos, que participaram nas torturas que eles sofreram saírem livres. Isso é o resultado do que nós chamamos de fragmentação das causas. Fazer os julgamentos por pedacinhos gera essa possibilidade.

AND: Com os processos fragmentados, os julgamentos levarão muitos anos para terminar.

Nilda: A fragmentação das causas é funcional à manutenção da impunidade. A diferença de números entre os que deveriam estar processados e os que realmente estão, é impunidade. Há pessoas que não estão sendo julgadas. O julgamento não deve servir só pra gerar uma condenação, mas para gerar verdade, para gerar justiça e no caso do nosso país como uma medida de saúde.

A polícia segue com as mesmas práticas da ditadura, por isso seguimos tendo, não na mesma quantidade da época da ditadura, mas seguimos tendo torturas nas delegacias. Continuamos com sequestros em delegacias, continuamos tendo desaparecidos e não só o caso de Jorge Júlio Lopez, a lista é muito grande de desaparecidos em ‘democracia’. Não falamos de 30 mil, mas a lista é grande.  Quando falo de dar o exemplo é dar o exemplo claro, é mostrar que é preciso conduzir as coisas de outra maneira.

AND: Vocês acreditam que pode haver retrocesso nas condenações, como já houve antes?

Nilda: Eu não acredito que possam parar os julgamentos. Uma das diferenças, em relação aos julgamentos anteriores, é que as famílias são partes no processo agora.

AND: Você acha, então, que essas pessoas não serão liberadas?

Nilda: O problema é que elas estão livres. Temos 229 condenações, mas isso não significa que sejam 229 presos. Como o que se julga é a cadeia de hierarquias, há pessoas emblemáticas que já chegaram a ter quatro ou cinco condenações de prisão perpétua. O problema é que em muitos casos estão cumprindo a prisão perpétua em casa. Eu não posso te explicar o que se sente quando você assiste a um julgamento, ao julgamento do seu torturador e ele é condenado à prisão perpétua, mas sai caminhando como você e eu.

AND: Então são meias verdades, meios julgamentos?

Nilda: Assim como não foram “saneadas” as forças armadas, o poder judiciário, as forças de segurança também não se limparam os poderes. Em vários julgamentos, o promotor vinha da ditadura, era secretário de juízes que haviam tomado declarações sob tortura e seguem em atividade.

AND: Quantas pessoas ainda poderiam ser processadas? O Centro de Estudos Legais e Sociais estima em torno de 1700 pessoas.

Nilda: Aqui funcionaram 600 centros clandestinos. Não podemos aceitar esse número. Diante da magnitude da repressão, avaliamos que milhares de pessoas estiveram envolvidas. 

AND: Então ainda podemos esperar quantas causas grandes como a ESMA?

Nilda: Apenas está começando a etapa das grandes causas. A ESMA ainda tem dois tramos que esperamos que sejam julgados no ano que vem. São quase 200 processados pelo assassinato de 900 companheiros, aí sim vamos falar de Mega Causa. E da mesma forma temos outras causas que continuam.

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