Manifestação durante o julgamento de Carlos Pedro Blaquier
Carlos Pedro Blaquier é, há 50 anos, um dos donos da Argentina. Embora viva entre Paris e a Cidade Autônoma de Buenos Aires, a fonte primária de seu poder e riqueza está nos povoados de Calilegua e Libertador General San Martín, na província de Jujuy, noroeste do país, para onde viaja uma vez ao ano. Ali, localiza-se o Complexo Agroindustrial Ledesma, coração de um monopólio açucareiro e papeleiro que espraia-se também pelos ramos de frutas, carnes, cereais, petróleo, gás e biocombustíveis, com filiais nas províncias de Salta, Buenos Aires, San Luis e Entre Ríos.
Em Jujuy e em Salta, Blaquier – dono de 155 mil hectares de terra – é um senhor feudal típico. Galgou essa condição por um caminho igualmente feudal: o casamento com Maria Elena Arrieta Wollman (“Nelly”), filha única do proprietário original do engenho.
Num país marcado por duros enfrentamentos entre frações das classes dominantes, Blaquier e a Ledesma passam incólumes por tudo. As expropriações com que o peronismo às vezes atacava alguns setores oligárquicos nunca o atingiram, mas isso tampouco diminuiu sua proeminência no interior do bloco patronal mais reacionário. Do mais (Videla) ao menos direitista (Cristina), Blaquier manteve boas relações com todos os governos argentinos dos últimos 60 anos. Por isso a surpresa quando, na metade deste ano, viu-se em risco de ter que dedicar-se a uma espécie menos doce de cana.
Sol de noite
Luis Arédez e sua esposa Olga são os protagonistas do filme Sol de noite, dirigido por Pablo Milstein e Norberto Ludin. O filme é um documentário; logo, sua história é real.
Eram naturais da província de Tucumán e mudaram-se para Libertador General San Martín em 1958 porque ele, médico, havia sido contratado pela Ledesma. Em pouco tempo, desentendeu-se com o gerente da empresa. O enfrentamento começou quando Luis cobrou melhores condições de saneamento nos locais onde os trabalhadores ficavam acampados na época da colheita. Mas o motivo de sua demissão, confessado pelo gerente, foi outro: “proporcionar demasiados medicamentos” aos cortadores de cana e a seus filhos, o que era visto pela empresa como demagogia e desperdício.
O prestígio conquistado junto aos trabalhadores permitiu ao casal Arédez manter-se na região. Quando eles se organizaram em sindicato, Luis foi contratado como médico da entidade. E, em 1973, eles guindaram-no à prefeitura de Libertador General San Martín. O primeiro – e único – prefeito a cobrar impostos da Ledesma.
Geração dizimada
24 de março de 1976 foi o marco inicial da cruenta restauração oligárquica que roubou da Argentina a liberdade, o orgulho, a indústria e duas gerações de lutadores. No feudo de Blaquier, não se esperou sequer a conclusão do golpe de Estado: às 3h da madrugada, o doutor Arédez, ainda prefeito, torna-se o primeiro preso político da safra 1976 em Jujuy.
O eletricista Jorge Weisz, organizador do sindicato dos trabalhadores da Ledesma, já estava na cadeia havia dois anos. Junto com a esposa, a professora Dora Requeni, líder da seção local da CTERA (Confederação dos Trabalhadores em Educação da República Argentina), e o advogado do sindicato da Ledesma, Carlos Patrignani, Weisz havia sido preso e condenado por subversão ainda antes do golpe, em 1974. Os três eram militantes do partido Vanguarda Comunista, que se inspirava na revolução chinesa.
Arédez, Weisz e Patrignani são os mais conhecidos. Mas todos os desaparecidos de Jujuy lutavam contra o poder feudal da Ledesma. Blaquier jura que é coincidência.
Do apagão à luz de Olga
Tudo indica o contrário. Na madrugada do golpe, Arédez foi arrancado de sua casa numa caminhonete da empresa. O mesmo aconteceu com alguns dos mais de 300 presos (38 desaparecidos) da chamada “noite do apagão”, em julho de 1976.
Na ocasião, foi cortada a energia elétrica de Calilegua e Libertador General San Martín. Apenas as luzes da Ledesma, que tem gerador próprio, permaneceram acesas, auxiliando o trabalho da repressão. Os presos foram levados aos galpões da empresa, onde permaneceram por vários dias, amarrados e encapuzados. Não poucos foram transportados de avião para outras partes do país – e não havia onde pousar ou decolar uma aeronave na região se não fosse nas pistas pertencentes a Blaquier.
É voz corrente em Jujuy que os nomes dos sequestrados naquela noite haviam sido fornecidos à Gendarmeria (força argentina de fronteira) e ao Exército pelos gerentes da empresa. Documentos apreendidos por ordem judicial em seu escritório provam que a estadunidense World Division, que atuava como serviço privado de inteligência de Blaquier, espionou trabalhadores e militantes incômodos para a Ledesma desde os momentos anteriores ao apagão até… 2005.
Condenar Blaquier e fazê-lo cumprir a pena talvez exceda a capacidade do Estado argentino. Sentá-lo no banco dos réus, por outro lado, é um feito histórico que tem como maior responsável uma mulher obstinada e corajosa.
Em 1983, Olga Márquez de Arédez, começou a postar-se na praça central de San Martín a cada quinta feira, sozinha, com um retrato de seu marido nas mãos e a cabeça coberta por um lenço branco. Quando os familiares de outras vítimas foram perdendo o medo, passou a organizar – com o apoio de movimentos populares de todo o país – marchas anuais de 10 quilômetros, em memória das vítimas do apagão. Morreu em 2004, de uma doença respiratória causada pela queima do bagaço seco da cana da Ledesma.