Argentina: dois julgamentos para a História

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Argentina: dois julgamentos para a História

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Mariano, 23 anos, foi assassinado em 2010

Mariano Ferreyra tinha 23 anos, era estudante de Sociologia e militante do Partido Operário (PO), da Argentina. No dia 20 de outubro de 2010, participava de um ato contra a precarização do trabalho nas estradas de ferro, convocado por trabalhadores terceirizados em luta e apoiado por diversas organizações com variadas linhas políticas. O bloqueio da estrada de ferro General Roca era a cartada mais forte para exigir a incorporação dos terceirizados ao quadro de pessoal da ferrovia e a reintegração de 140 colegas demitidos.

Não enfrentavam apenas a direção da empresa. Obstáculo de igual dimensão era (é) constituído pelo sindicato que deveria representá-los: a União Ferroviária (UF), controlada desde 1985 por José Pedraza. Era Pablo Díaz, delegado da UF na linha Roca, quem comandava o bando que atacou os manifestantes. Primeiro, a pedradas. Depois, a tiros.

Três pessoas foram feridas a bala: Ariel Pintos (ferroviário terceirizado, um dos demitidos), Nelson Aguirre e Elsa Rodríguez, que ficou 40 dias em coma e hoje tenta se recuperar das sequelas que lhe paralisaram o lado direito do corpo. Uma morreu: Mariano.

Agora, passados dois anos, os autores do crime estão sendo julgados. Na primeira semana de outubro, a comoção provocada há dois anos repetiu-se por conta do sequestro de Alfonso Severo, uma das testemunhas da acusação. Outras testemunhas foram ameaçadas com armas de fogo. No banco dos réus, além de Díaz e Cristian Favale (provável autor do disparo), sentaram-se, como mandantes do crime, Pedraza e seu braço direito na UF, Juan Carlos Fernández, com quem Díaz comunicava-se durante a “operação” usando um aparelho rádio comunicador.

O sindicalismo empresário

No início da década de 90, antes que Menem iniciasse o desmantelamento do sistema argentino de transportes sobre trilhos, a Argentina tinha 90 mil ferroviários. Hoje, tem 9 mil. Pedraza foi o fiador dessa hecatombe, sufocando todas as tentativas de organização e luta da categoria. Em alguns casos, por meio de fraudes na apuração de votos ou chicanas estatutárias para impedir que chapas de oposição concorressem nas eleições sindicais. Noutros, à bala.

Como prêmio, a UF ganhou a concessão de 11 mil km de ferrovias e – por meio de uma entidade de fachada – dezenas de salas comerciais nas estações de trem da capital federal e da província de Buenos Aires. Nessa mesma época – conta o jornalista Horacio Verbitsky, do diário Página/12 – , Pedraza mudou-se para uma casa de US$ 1,5 milhão.

De lá para cá, o capo sindical diversificou seus negócios. Um dos mais lucrativos é o das empresas e falsas cooperativas que terceirizam mão-de-obra a preço vil para as concessionárias de ferrovias. Pedraza – por meio de testas de ferro – é dono de várias dessas arapucas, inclusive da Unión del Mercosur, à qual estavam formalmente vinculados 200 dos 1.500 terceirizados da General Roca.

Poder mafioso

Pedraza e Fernández não deram a Díaz a ordem de dissolver a tiros a manifestação apenas por causa do (muito) dinheiro que a terceirização gera para as concessionárias e para eles próprios. Eles estavam em pânico diante da exigência de incorporação dos terceirizados ao quadro de pessoal da empresa, pois isso abalaria as estruturas de seu poder mafioso sobre o sindicato.

Os terceirizados, em regra, não têm enquadramento sindical de ferroviários: quem trabalha na troca de dormentes ou faz reparos na via, por exemplo, fica sob a convenção coletiva da construção civil. As empresas – inclusive as pertencentes à UF ou a Pedraza – lucram com isso porque a direção da Uocra (o sindicato da construção) consegue negociar com os patrões salários ainda piores que os estipulados na convenção ferroviária. Já Pedraza, Fernández e seu círculo de pistoleiros ganham porque não sendo oficialmente ferroviários, os terceirizados não estão vinculados à UF e, por consequência, não podem votar nem se candidatar em suas eleições – o que passaria a acontecer se fossem incorporados ao quadro oficial das empresas que os contratam.

Um dos pontos-chave do conluio entre a UF e os patrões é que estes só contratam quem Pedraza e Fernández aprovam. Assim, os trabalhadores combativos ficam fora do sindicato e com menos garantias junto às empresas, enquanto os dirigentes da UF montam uma rede de clientelismo, cabrestos e tráfico de influência nas contratações de empregados. Dessa clientela – arregimentada, por exemplo, junto a torcidas organizadas, como foi o caso de Favale, recrutado mediante promessa de um emprego – saem os jagunços que a UF usa para reprimir os terceirizados.

É claro que essa rede de negócios escusos não poderia funcionar sem a cumplicidade do Estado. O assassinato de Mariano só foi possível porque a polícia praticamente escoltou o bando chefiado por Diáz durante a agressão aos manifestantes. Sete policiais estão entre os réus do processo.

Escutas telefônicas revelaram também um esquema de corrupção que funcionava no tribunal encarregado de julgar um recurso de Pedraza contra sua prisão preventiva. Ángel Stafforini, contador da UF e vice-presidente da empresa Belgrano Cargas, pertencente ao sindicato, seria o encarregado de entregar US$ 50 mil ao funcionário responsável pela distribuição do processo, de modo a que o recurso caísse nas mãos de juízes comprometidos com o esquema. Um envelope com a quantia acertada foi apreendido no escritório do advogado de um dos réus ligados à UF.

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