Argentina – O que está por trás da estatização da previdência

Argentina – O que está por trás da estatização da previdência

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Depois do anúncio da presidente Kirchner de reestatizar a previdência, os analistas econômicos da imprensa brasileira, preocupados com o setor que representam, desaprovaram o que seria uma quebra de contrato, falta de regras claras e que acabaria causando perda de credibilidade das economias emergentes. Há quem diga que ela está sendo irresponsável ou até corajosa ao enfrentar os banqueiros. Por outro lado, muitos argentinos perguntam-se como se posicionar. Se é melhor confiar o seu futuro aos bancos privados ou ao Estado. O problema é bem mais grave que isto.

Existem dois sistemas de aposentadoria:

• de partilha, no qual os trabalhadores em atividade, solidariamente, sustentam àqueles que por idade ou outros motivos legais estão aposentados.

• de capitalização privada, no qual cada trabalhador contribui para uma conta individual que é administrada por um fundo especializado em investimentos. Quando se aposentar, receberá suas contribuições acrescidas dos lucros.

O primeiro sistema sempre foi o mais usado, e para se auto-financiar, precisava de um continuado crescimento da população e uma expectativa de vida que era menor que a atual, o que permitia que três ou quatro trabalhadores sustentassem um aposentado.

Como estas condições mudaram e muitos trabalhadores não têm nem condições de contribuir, só com complementações do tesouro é que as contas fecham.

Em 1993, durante o governo Menem, seguindo a receita "neo-liberal", lançou-se a proposta da aposentadoria privada onde os trabalhadores podiam optar por este novo sistema depois de pedido expresso. Como a adesão foi pequena, uma medida administrativa pouco difundida mudou as regras para que só ficasse no regime estatal quem o requeresse por escrito até um prazo determinado. Assim os bancos abriram as AFJP (Administradoras de Fundos de Pensões e Aposentadoria), como foram chamadas, e cresceram enormemente.

Campanhas publicitárias mostravam os futuros beneficiários gozando uma vida abundante.

De repente, o governo abria mão de administrar uma quantidade enorme de dinheiro, admitia que não era bom gestor, nem muito confiável em seus deveres, e dava como saída o sistema financeiro.

Assim o ministro Cavallo e um grupo de amigos banqueiros começaram a perpetrar um roubo totalmente legalizado.

As AFJP passaram a cobrar (elas tinham a liberdade para fixar) uma comissão de, em média, 30%, diretamente dos contribuintes e independentemente do resultado da aplicação do dinheiro. Estas empresas também não estipulavam ou g arantiam certa renda para o futuro beneficiário, já que dependeria do comportamento dos mercados. Outra vantagem do sistema privado (para as administradoras, claro) era que podiam determinar o valor das aposentadorias e pensões tendo em conta certos fatores de risco. Por exemplo: se as mulheres têm expectativa de vida maior, passava a ser comercialmente justo que recebessem benefícios menores para contribuições iguais. Estes fundos "previdentes" também dispunham que quem tivesse um filho incapacitado receberia menos porque se o aposentado viesse a falecer teriam que ter um dinheiro reservado para o filho.

Na realidade essa aposentadoria nem poderia receber tal denominação por que para isso os benefícios deveriam ser vitalícios. As AFRJ só prevêem pagamentos até a idade da média de vida estabelecida (80 anos homem, 82 mulher). Logicamente que a iniciativa privada sempre tem soluções. Quem pretenda viver mais que a média sem passar fome pode contratar um seguro extra em uma seguradora vinculada. A maioria destas regulamentações constava em letras pequenas nos contratos e esses "defensores do livre mercado" impediram, durante 14 anos, que quem estivesse no sistema privado passasse ao público.

Por outro lado, o governo precisava continuar cumprindo com o pagamento dos antigos aposentados sem ter mais contribuições para isso. A solução obviamente era pegar dinheiro emprestado com as AFJP, dando como garantia títulos da dívida pública. Em 2005, a Argentina renegocia o valor de seus títulos com um desconto de 45 a 75%, o default. Os fundos têm cerca de 60% do seu capital investido nestes títulos e o governo autoriza-os a colocar em seus balanços o valor técnico e não o real, o de mercado, com o que conseguem montar uma publicidade de solidez e patrimônio totalmente falsa.

E assim se chega aos nossos dias. A presidente declara: "os recursos dos nossos aposentados não podem ser fonte de especulação. A aposentadoria não é nem pode ser um negócio". Interessante é que o casal presidencial tenha só agora chegado a esta conclusão. Já em 1993 ele era governador e ela deputada estadual, e a imprensa não registrou nenhuma crítica deles à previdência privada. Agora diz que se deve privatizar o sistema antes que a crise econômica mundial alcance os fundos, para proteger os recursos dos aposentados e pensionistas.

Da mesma maneira como surpreendia que o governo Menem desprezasse o dinheiro dos contribuintes, agora causa estranheza a pequena resistência das AFJP e dos bancos ante a privatização.

A resposta para isto pode-se dever a que após 15 anos de criados, os fundos começam a ter a obrigação de pagar benefícios a uma parcela crescente de seus clientes e o dinheiro praticamente não existe mais. É uma fortuna, mas irrisório frente às obrigações. Por lei são impedidos de usar o dinheiro dos novos contribuintes. Ademais, com a crise mundial, o sistema bancário começa a demitir servidores. Com o Estado assumindo esta responsabilidade, sairão limpos.

Desta maneira se fecha o ciclo deste golpe perfeito do sistema financeiro que sem arriscar e muito menos produzir nada, embolsou fortunas tirando dos trabalhadores, com total encobrimento de vários governos e que agora sai como vítima de expropriação, podendo inclusive no futuro processar à Nação.

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