Sérgio Dávila e Juca Varela eram os únicos jornalistas brasileiros no Iraque quando o USA bombardeou o país em 2002. Escrevendo na "orelha" de um dos livros que o repórter britânico Robert Fisk está lançando no Brasil, Dávila conta que viajou para Bagdá com a ilusão de que os 180 jornalistas do mundo inteiro enviados para cobrir a invasão estavam todos no mesmo barco, no sentido de correr os mesmos riscos e no de esperar solidariedade.
A ilusão se foi com a primeira bomba, ficando cada um por si, "e todos contra todos". As duas exceções apontadas por Sérgio Dávila foram o português Carlos Fino e o próprio Robert Fisk.
Tanto Fino quanto Fisk estiverem recentemente no Rio de Janeiro, para sorte de quem pôde ouvir deles alguns impressionantes relatos da dimensão da truculência imperialista no Oriente Médio. O primeiro, repórter de TV, falou para uma platéia de estudantes de jornalismo na Associação Brasileira de Imprensa, nos dias 21 e 22 de junho. O segundo, repórter de jornal impresso, esteve diante de um público seleto na Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Parati, no dia 8 de julho.
São dois jornalistas em cujos trabalhos como correspondentes de guerra transparece a crítica ao imperialismo do USA e da Inglaterra em países como Líbano, Iraque, Afeganistão e na Palestina.
Carlos Fino tornou-se muito conhecido no Brasil — e em todo o mundo — após ser o primeiro jornalista a noticiar, usando videofone, o início do bombardeiro anglo-ianque ao Iraque. Ao fazer isso — antes do que as vedetes do oligopólio mundial dos meios de comunicação, como a CNN —, Fino transformou a modesta RTP (Rádio e Televisão Portuguesa), uma televisão pública, em referência internacional.
Algo que o próprio Fino costuma minimizar, dizendo que se teve algum mérito ao dar a notícia em primeira mão, foi o de estar acordado na hora exata do começo dos ataques. O que, tendo em vista a natureza do trabalho de um correspondente no front, não é pouco.
Naquela época, a TV Cultura do Brasil utilizou as emissões da RTP para veicular imagens da invasão, o que permitiu aos brasileiros conhecer mais de perto o trabalho de Carlos Fino. Em seu livro, A Guerra Ao Vivo (lançado no Brasil pela editora Verbo), Fino conta como o trabalho da RTP no Iraque passou a ser muito requisitado também por outras TVs brasileiras, e como se desdobrou para atender aos chamados em nome da solidariedade com o povo brasileiro:
— Nunca mais tive sossego naquelas madrugadas de Bagdá, sacrificando muitas horas de descanso. Mas era um imperativo fazê-lo. Sentia que tinha essa obrigação como português, falando para um país de língua portuguesa. E a título pessoal como agradecimento pelo fato de ter sido do Brasil que veio a chamada de atenção para o 'furo mundial' que havíamos conseguido ao transmitir as primeiras imagens da guerra.
Carlos Fino |
Seu livro traz ainda relatos sobre a invasão ianque do Afeganistão, no rufar dos tambores depois de 11 de setembro de 2001 e, sobre a revolta dos palestinos depois da provocadora "visita" de Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, em 2002. Fino, que foi correspondente também na antiga União Soviética, hoje trabalha como conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília.
No Iraque, Carlos Fino viu e reportou as primeiras imagens da invasão anglo-ianque, e irritou-se por ter que esperar quatro longos minutos de publicidade na TV pública de Portugal para relatar ao vivo o ataque de um tanque do USA ao hotel onde estavam hospedados os jornalistas que cobriam a invasão. Em um episódio pessoalmente dramático, ele sofreu quatro longas horas de agressões e tortura psicológica nas mãos de iraquianos enlouquecidos com os bombardeios — e com Bush — que na hora do desespero estavam convictos de que Fino se tratava de um espião.
Na ABI, com o auxílio da exibição de algumas de suas reportagens em um telão, Carlos Fino relatou para os estudantes de jornalismo do Rio de Janeiro algumas outras situações que viu e viveu no Iraque. Contou como conseguiu registrar a revolta e a tristeza de muitos iraquianos que estavam ali, desiludidos com a presença dos marines no momento da derrubada da estátua do Presidente Saddan Hussein, enquanto as câmeras de todas as televisões do mundo estavam apontadas para a estátua em queda (inclusive a câmera da própria RTP: Fino havia se desencontrado de seu companheiro de reportagem).
Testemunha dos palestinos
O primeiro orador da mesa batizada de "narrativas de conflito", no terceiro dia da Festa Literária Internacional de Parati, foi apresentado como alguém que costuma ser execrado por sua aversão aos governos do USA, de Israel e aos meios de comunicação do ocidente — apesar de trabalhar para um, o jornal The Independent, da Inglaterra. Robert Fisk foi aplaudido, mas protestou. Disse que é contra quase todos os governos, inclusive o do "falecido Tony Blair", numa referência à recente renúncia do primeiro-ministro britânico.
Fisk leu algumas páginas dos livros que ele próprio escreveu e que estão sendo lançados no Brasil. O primeiro trecho, do livro: Pobre Nação — as guerras no Líbano no século XX, explica como os conhecidos massacres de Sabra e Chatila foram permitidos pelo exército israelense, depois que Israel invadiu o Líbano em 1982 e estabeleceu um governo libanês a seu favor.
Fisk relatou como encontrou o campo de refugiados palestinos de Chatila logo após o massacre ter acontecido. Vale a pena reproduzir alguns trechos desse relato impressionante:
Robert Finsk |
— Eles estavam por todas as partes, na rua, nas vielas, nos quintais e cômodos destruídos, embaixo de construções demolidas e sobre montes de lixo. Os assassinos — os milicianos cristãos que Israel deixara entrar nos campos para 'desentocar os terroristas' — haviam acabado de partir. Em alguns casos, o sangue ainda estava molhado no solo. Quando chegamos a cem, paramos de contar os corpos. Em cada viela, havia cadáveres — mulheres, homens jovens, bebês e avós — caídos juntos em desordenada e terrível profusão, no local onde tinham sido esfaqueados ou metralhados. Cada corredor em meio aos destroços apresentava mais corpos. Os pacientes de um hospital palestino desapareceram depois que os pistoleiros ordenaram aos médicos para saírem. Em todos os cantos, encontramos sinais de covas coletivas escavadas apressadamente. Talvez mil pessoas tenham sido chacinadas; provavelmente 1500.
Mesmo enquanto estávamos lá, em meio às evidências de tanta selvageria, podíamos ver os israelenses nos observando. Do alto da torre a oeste — o segundo edifício da Avenue Camille Chamoun — era possível vê-los olhando para nós com binóculos, examinando de um lado para outro as ruas cheias de cadáveres, as lentes às vezes refletindo a luz do sol enquanto vasculhavam o campo. Loren Jenkins praguejou um bocado. Eu imaginei que provavelmente era seu jeito de controlar as sensações de náusea no meio do fedor terrível. Todos nós queríamos vomitar. Nós estávamos respirando morte, inalando a putrescência dos corpos inchados em volta. Jenkins imediatamente deu-se conta de que o ministro da Defesa israelense é quem teria que arcar com alguma responsabilidade por esse horror. 'Sharon!', ele gritou. 'Aquele filho-da-puta do Sharon! Isso é a repetição de Deir Yassin'.
"O que encontramos dentro do campo palestino de Chatila às dez da manhã de 18 de setembro de 1982 é inacreditável demais para se descrever, embora fosse mais fácil recontar na prosa fria de um relatório médico. Já haviam acontecido massacres no Líbano, mas raramente nessa escala e jamais sob as vistas grossas de um exército regular e supostamente disciplinado. No pânico e ódio da batalha, dezenas de milhares foram mortos neste país. Mas essas pessoas, dezenas delas, foram abatidas desarmadas. Isso era um assassinato em massa, um incidente — com que facilidade usávamos a palavra incidente no Líbano — que também era uma atrocidade. Ia muito além até mesmo do que os israelenses teriam chamado, em outras circunstâncias, de uma atrocidade terrorista. Era um crime de guerra.
Robert Fisk contou que chegou a Chatila logo após o massacre na companhia de mais três jornalistas:
— Jenkins, Tveit e eu ficamos tão estupefatos pelo que encontramos em Chatila que, no começo, não conseguimos registrar nosso próprio choque. Bill Poley, da AP, viera conosco. Tudo o que ele dizia enquanto andava ao redor era 'Jesus Cristo!', repetidas vezes. Nós talvez tivéssemos conseguido aceitar as evidências de uns poucos assassinados; até mesmo dezenas de corpos, mortos no calor do combate. Mas havia mulheres jogadas em casas com suas saias rasgadas até a cintura e as pernas bem abertas, crianças com as gargantas cortadas, filas de homens jovens com tiros nas costas após terem sido alinhados diante de um muro de fuzilamento. Havia bebês — bebês enegrecidos, porque tinham sido chacinados havia mais de 24 horas e seus pequenos corpos já estavam em estado de decomposição — jogados em monturos junto a latas descartadas de ração do USA, equipamentos médicos do Exército israelense e garrafas vazias de uísque.
Relatando outra história, Robert Fisk chegou a fazer uma severa autocrítica. Contou que estava em um vôo de Londres para o USA quando todos receberam a notícia de que dois aviões haviam acabado de se chocar contra as torres do World Trade Center, em Nova York, outro contra o Pentágono em Washington, e um terceiro também havia sido sequestrado.
Era o dia 11 de setembro de 2001. Fisk disse que, após receberem a notícia, e com o choque que ela causou dentro de um vôo que seguia para o local dos acontecimentos, todos saíram de suas poltronas à procura de suspeitos — homens que se enquadravam no estereótipo do que poderia ser um "terrorista muçulmano". Admitiu isso para a platéia em Parati, e disse que não demorou em recuperar a razão. Mas reconheceu que teve vergonha de si próprio, ele, "todo progressista, de uma hora para outra, transformado num grande racista".
O segundo participante da mesa "narrativas de conflito", o ianque Lawrence Wright, autor de literatices patrióticas sobre os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, perguntou então a Fisk se ele achava que o USA tinha merecido os ataques que sofreu. Fisk disse que a pergunta era imbecil, que nenhum povo merece sofrer agressões de qualquer tipo, e ironizou, dizendo que só um ianque poderia ter feito uma pergunta como aquela.
Ainda sobre o dia 11 de setembro de 2001, Fisk se lembrou de ter alertado à redação do jornal para o qual trabalha sobre o perigo de alguém dizer oficialmente que aquilo iria mudar o mundo para sempre, porque, uma vez dito, isso poderia servir de desculpa para mudar para pior, com toda sorte de violências e insanidades. Depois, Fisk concluiu:
— Bush e Blair disseram, e mudaram o mundo…