As armadilhas da Alca

As armadilhas da Alca

O sociólogo César Benjamin (e) e o general Andrade Nery durante palestra na ABI

Em 12 de dezembro, na ABI — Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro, foi realizada uma palestra convocada pelo Modecon — Movimento de Defesa da Economia Nacional; Aepet — Associação dos Engenheiros da Petrobrás; Adnam — Associação Democrática Nacionalista dos Militares e pela ABI. A palestra dá prosseguimento à campanha nacionalista contra a política de alta traição aos interesses nacionais brasileiros do governo Cardoso, em especial contra a entrega da base de lançamento aeroespacial de Alcântara e a adesão à Área de Livre Comércio das Américas — Alca.

AND registrou as palavras do sociólogo César Benjamim e do general Andrade Nery e publica, nesta oportunidade, os trechos mais relevantes das duas palestras

A igualdade entre o opressor e os oprimidos

Pronunciamento do sociólogo César Benjamim

A primeira coisa que chama a atenção quando se trata a questão da Área de Livre Comércio das Américas — Alca, é a enorme assimetria entre a importância desse tema e o baixo grau de debate e exposição pública. Com a Alca, vem ocorrendo um processo quase silencioso e, se dependesse apenas de decisões de burocratas e de altos escalões, seria construído às costas do povo.

Ao abordar o conteúdo da Alca, vem se tornando muito freqüente a comparação entre a Alca e a União Européia — UE. A idéia é de que, assim como a Europa vive um processo de unificação, seria natural que a América passasse pelo mesmo processo. Devemos entender e destacar as profundas diferenças entre os dois processos.

A primeira diferença é que a UE começa a nascer nos anos imediatamente posteriores à 2a Guerra Mundial, com a criação da União Européia do Carvão e do Aço, que se desdobra, nos anos 60, no Mercado Comum Europeu e, recentemente, caminha para a UE. Um processo permeado por etapas intermediárias, avaliações e um longo amadurecimento. É significativa a urgência com que se quer aprovar a Alca.

A segunda diferença importante é que a União Européia representa a integração de países que guardam um relativo equilíbrio. A economia alemã, que é a maior, representa em torno de 26 % do PIB europeu. A menor das economias da UE é maior que qualquer economia latino-americana. Então, há na UE uma integração entre parceiros que guardam entre si uma certa eqüidade. No caso da Alca, nós vemos que o PIB dos EUA chega a 77%. Porém, somados ao México e ao Canadá, quase 90% do PIB do continente estarão concentrados num só pólo. O espaço que a Alca deseja abranger é caracterizado por uma enorme assimetria, com um centro de gravidade bem definido dentro da economia americana.

Uma terceira diferença significativa é que a Europa construiu um conceito de cidadania européia, criou um passaporte europeu, planificou o mercado de trabalho, unificou a legislação e caminha para construir aquilo que virá a ser, no século XXI, um novo mega-Estado. O que os Estados Nacionais europeus compreenderam, é que nenhum deles, isoladamente, teria peso para permanecer no grande jogo do poder. A alternativa para se manter no centro do sistema no mundo apontava para a criação de um mega-Estado continental.

A Alca não tem essa abrangência. Ela integra apenas a circulação de capital, mercadorias e serviços. Não está em pauta a criação de uma cidadania hemisférica. A melhor maneira de paralisar a negociação da Alca é propor a integração do mercado de trabalho, como fizeram os europeus. Os EUA querem, simplesmente, ampliar o espaço de circulação apenas daqueles fatores de produção a que têm acesso. Eles têm capital e mercadoria sobrantes. Por isso, têm que ampliar o espaço de circulação. Nós temos força de trabalho sobrante, mas isto não entra em discussão nesse suposto processo de integração.

Direitos senhoriais

O importante é que a Europa cimentou sua integração com a constituição da moeda comum européia — o Euro, que é emitida e gerenciada por um Banco Central Europeu, não subordinado a nenhum estado nacional da Europa. O Banco Central é uma constituição de todos os estados europeus integrantes da União Européia. Não há nenhuma indicação de que os EUA estejam dispostos a abrir mão do dólar para compartilhar uma mesma moeda com a Bolívia, Brasil, Paraguai, Costa Rica, etc. Ao contrário, todas as indicações são de que a Alca seja um estágio preparatório para aquilo que virá a ser, num futuro não muito distante, a área do dólar.

Desde a 2a Guerra Mundial, o dólar foi transformado em moeda de referência internacional na Conferência de Bretton Woods em 1944. Mas, naquela Conferência, os paises participantes impuseram aos EUA uma limitação a esses direitos chamados de direitos senhoriais. Este conceito é importante, uma vez que, originalmente, “senhoriais”, vem de senhor, um termo cunhado no mundo feudal, porque, dentro do feudo, era direito absoluto do senhor, cunhar e emitir a moeda. Quando os EUA obtiveram em Bretton Woods os direitos se nhoriais, transformando o dólar em moeda internacional, os demais paises impuseram aos EUA a garantia de conversibilidade e a paridade do dólar em relação ao ouro. Esse modelo esteve em vigência até 1972 quando, unilateralmente, os EUA se retiraram do acordo de Bretton Woods e desvincularam a emissão do dólar da sua reserva de ouro. Os EUA passaram a deter os direitos senhoriais sobre a economia mundial — sem a menor restrição. É uma situação que não poderá durar indefinidamente e tem a primeira resposta na constituição do Euro; uma nova moeda que passará a disputar com o dólar. Está em curso a constituição de outra área monetária no leste da Ásia, que é o terceiro ponto dinâmico no centro financeiro do mundo.

Em nossa área, quem continuará emitindo moeda será o Estado nacional norte-americano e ninguém tem dúvida que o Banco Central norte-americano, ao tomar suas decisões, só tenha como destaque seu país. Essa preparação na área do dólar é visível em várias outras dimensões. Também pelo processo de enfraquecimento, desmoralização e destruição dos Estados nacionais da América Latina, tanto como a desnacionalização — não só da sua base produtiva, como também dos recursos naturais —, tanto quanto o processo de solapamento da identidade cultural de nossos povos, como o isolamento e desmoralização das forças armadas no continente.

Com a Alca os espaços nacionais deixam de existir. Dessa forma, uma decisão tomada pelo Estado norte-americano, o centro de gravidade desse espaço, passa a ter um impacto direto em todo o hemisfério.

Estamos diante de uma bifurcação histórica. A implantação da Alca é uma limitação sobre a posição da América do Sul diante do mundo no século XXI. A Alca é a extensão da área regional dos EUA, porque a posição de ”máster” da América do Norte já foi incorporada à área regional norte-americana. Em última análise, a discussão sobre a Alca é uma discussão entre Brasil e EUA sobre o destino da América do Sul.

A futura área do dólar

Há duas grandes possibilidades: ou a América do Sul se transforma numa sub-área regional norte-americana na futura área do dólar, ou constrói um projeto regional próprio com presença soberana. O sentido da construção da União Européia e a construção da Alca são antagônicos. O sentido da construção da União Européia é colocar, ou recolocar, a Europa no grande jogo do poder hegemônico no século XXI, construir um mega-Estado continental que possa rivalizar com o Estado norte-americano. Já a Alca irá retirar da América do Sul qualquer possibilidade de poder participar do grande jogo mundial no século XXI.

Durante quase toda nossa história, fomos um país exportador de produtos primários. Até muito recentemente os dois principais produtos de nossa pauta de exportação eram a soja e minério de ferro, commodities com baixo valor agregado e com tendência a perder consideravelmente o valor. Agora, pela primeira vez na história, o produto mais importante de nossa pauta de exportações é um produto de alto valor agregado: aviões. O valor da exportação de aviões no Brasil supera o mercado externo de muitas nações. Esses aviões são construídos na Embraer, uma empresa criada pelo Estado do Rio de Janeiro, há 20 ou 25 anos. Foi uma concessão política que gozou, ao longo de sua implantação, dos favorecimentos de uma política industrial nativa para que ela pudesse nascer, crescer e se consolidar. Indústrias de alta tecnologia não nascem prontas.

Indústrias deste tipo são indústrias de longa maturação. Isto criou, em economia, o conceito de indústria nascente, aquela que está em processo de criação e precisa ser protegida para que tenha seu tempo de amadurecimento. Se a Alca já existisse há 25 anos, teria impossibilitado a criação da Embraer, porque a Alca define que, a qualquer tempo, todas as economias do hemisfério terão que estar expostas à “livre competição”. Ficam proibidas as políticas industriais ativas em que os estados constituam os setores industriários. E acontecerá que nenhuma das nossas indústrias poderá ser competitiva diante das grandes empresas multinacionais. Por definição, essas empresas nacionais terão que se expor, desde o primeiro momento, na competição com as multinacionais sem qualquer tipo de política industrial interna.

O fim dos espaços econômicos nacionais

Formada a Alca, desaparecem os espaços econômicos nacionais. A partir daí, as decisões do Estado americano se espraiam pelo hemisfério de maneira linear, sem rotulagem. Quando o Estado americano estiver em véspera de uma decisão que prejudique, por exemplo, os interesses da Califórnia — que tem presença no Legislativo americano, elege o presidente dos EUA, tem lobbies industriais que financiam os partidos americanos —, terá que negociar esta decisão. Na hora de tomar uma decisão que possa prejudicar a Califórnia, o Estado americano será obrigado a recuar, negociar compensações. Agora, vamos imaginar que o Estado americano esteja na iminência de tomar uma decisão que prejudique, por exemplo, Santa Catarina. O que haverá para negociar? Santa Catarina não está representada na estrutura de poderes do Estado americano, nem tem obras industriais que financiam partidos americanos. Não há nada a negociar. Se a Alca for formada, nós estaremos integrados numa área econômica sem representação num sistema de poder que, de fato, controle esta área.

O Brasil que existe hoje, com todas as suas potencialidades e seus problemas, foi possível pelas decisões tomadas nas décadas de 20 e 30. Tanto a década de 20 como a revolução de 30, foram processos que definiram um ciclo de nossa existência. Um ciclo que está se encerrando. A decisão de aderir ou não à Alca definirá qual será o próximo ciclo de nossa existência como nação; se teremos uma existência subordinada numa área regional, ou se, ao contrário, chamaremos para nós a responsabilidade de ser um dos articuladores de uma área regional sul-americana.

Que tipo de harmonia nos traz a Alca

Pronunciamento do general Andrade Nery

Se o Mercado Comum Europeu (MCE) “deu certo”, resolveu o problema dos países europeus e colocou a Europa na disputa do mercado mundial, então, por que a Alca não serve para a América Latina?

A Alca e o MCE são bem diferentes em suas organizações. A população da Europa pode atravessar as fronteiras e entrar em outros países, sem restrições. Aqui nós vamos continuar desembarcando nos aeroportos dos EUA, tirando os sapatos. Descalços. Será, talvez, o maior conglomerado comercial do mundo. Trinta e três países. Porém, não será um mercado comum. Será uma área de livre comércio. As imposições comerciais serão das potências hegemônicas.

Já existe o Nafta*: EUA, México e Canadá. Está sendo bom para o México? Eis um exemplo ocorrido há pouco tempo: o prefeito de uma cidade mexicana entrou na justiça porque uma multinacional estava fazendo um depósito de dejetos químicos na sua cidade, contaminando a população. Ele ganhou. O juiz mexicano aplicou uma multa na empresa americana, porque o Nafta permite que as multinacionais entrem sob as rédeas do comércio estabelecido. A empresa americana mostrou que a justiça a ser consultada era a justiça americana, que condenou à prisão o prefeito mexicano e o obrigou a pagar uma multa.

Outro exemplo recente: o maior produtor de soja do Canadá, há um ano, percebeu que sua plantação estava sendo contaminada por grãos transgênicos. Ora, o grão transgênico não é permitido para consumo no Primeiro Mundo. Este plantador descobriu que em sua plantação havia plantas que nasceram com sementes transgênicas. Consultou alguns especialistas, que chegaram à conclusão que o caparicídio do transgênico poderia ter sido trazido pelo vento forte ou mesmo nos sacos. Alguma das empresas que produzem os transgênicos, usaram a imprensa e a justiça americanas, que condenou este fazendeiro a pagar uma multa de 60 milhões de dólares. E ele tinha ganhado na justiça canadense.

O grão transgênico hoje está sendo utilizado para matar a fome da população africana. Alguns presidentes não quiseram receber essas doações da ONU, que as comprou das indústrias americanas. Esta mesma oferta já está sendo feita ao presidente eleito. Acontece que ainda não são conhecidos os efeitos que transgênicos podem causar no organismo humano. Ao mesmo tempo o grão não pode ser utilizado como ração animal. O país que alimentar o gado com ração transgênica, terá a carne desse gado retirada do mercado, porque o Primeiro Mundo não pode comê-la. Há uma lei no Congresso brasileiro, apresentada pelo senador Lúcio Alcântara, que diz o seguinte: qualquer cidadão brasileiro que for contaminado por produtos transgênicos das indústrias americanas não poderá processar a indústria que forneceu o grão transgênico.

A Alca traz uma cláusula importante, que é a obrigatoriedade da nação autorizar a vinda de tropas americanas, com as empresas multinacionais. Depois da Alca, o Brasil terá que autorizar a vinda de militares norte-americanos. Outra cláusula, é que qualquer soldado ou civil norte-americano que cometer crime ambiental ou crime de morte aqui, não poderá ser condenado pela justiça brasileira. São estas imposições políticas que vão ferir a Constituição e a soberania nacionais.


North American Free Trade Agreement (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), firmado em 1988, primeiramente limitado à América anglo-saxônica — USA e Canadá. Em 1992 o governo mexicano “aderiu” ao Acordo. (Nota da redação).
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