Arte: Alex Soares
Seu vestido tinha a cor de um azul parecido com o de uma manhã de verão. Um pequeno suéter fazia contraste com os últimos raios do sol que caiam sobre o Morro do Carvão, hoje batizado de Alto dos Cajueiros.
Maria de Jesus não teve outra opção que não a derradeira.
Gostava do mundo. Seus 16 anos eram todos de festa e alegria. Os cursos de datilografia no Leão XIII e do primeiro grau do colégio estadual, ela cursava com uma imensa vontade de vencer. Tinha muita pena de seu pai que, durante quase 30 anos trabalhou como lavrador na Usina de Quissamã. Ficou entrevado e o governo o aposentou por um “fundo rural”. Não tinha carteira assinada nem INPS. Margarida, sua mãe, vivia para baixo e para cima com a Bíblia embaixo do braço falando coisas de deus.
Ela andou frequentando, fazia tempo, uma igreja. Seu irmão era peão de uma empresa transnacional e faturava 35 por semana, o que não dava nem para sustentar a mulher e o filho doente de meningite.
Maria de Jesus tinha vontade de estudar para dar algum conforto à família. Na escola sempre se dedicou muito. Livros ela não tinha, mas copiava tudo que a professora dizia. Em sua mente só havia flores, sol e e bem-querer.
Não entendeu o porquê de, um dia, o pastor haver lhe excluído da igreja, tampouco o fato de seu pai ter lhe expulsado de casa. Afinal fora levada à força por dois homens que lhe “fizeram mal”. Se estava grávida era coisa do mundo. Quem podia evitar esse acontecimento?
2
A tarde tinha uma imensa mancha vermelha no céu e as crianças ainda brincavam de pipa no entardecer do viaduto quando um clarão rolou pela ribanceira.
O arder de um corpo jovem era como uma bola de fogo que a todos “curiorizou”. Maria tinha ateado fogo ao seu vestidinho de ir à igreja e às festinhas das colegas. Jazia morta, já na estrada, num lado do asfalto, onde seu corpo parou de rolar. Preferiu este gesto a ter que ser “mãe solteira”.
Seu enterro teve um ritual simples. Caixão doado pelo município, cova de indigente e um vestido branco sobre seu corpo agora negro pelo queimar.
Algumas amiguinhas, uma palavra do encarquilhado pastor citando parábolas de um santo livro que dizia: “Quem não tem pecado atire a primeira pedra”, uma maneira de justificar seu esquecimento ao expulsar Maria de Jesus. Seu pai, numa cadeira de rodas, dizia que a “perdoava”.
Era uma santa sendo perdoada por demônios.
A noite veio novamente cair sobre o Morro do Carvão. A vida continuou sua marcha inexorável. Novas meninas brincam sobre lama e detritos. A sequência é uma normalidade.
Maria de Jesus não anda mais com sua boneca abraçada nos arredores da Praia Campista, nem terminou seu primeiro grau no polivalente…
3
Conheci Maria de Jesus.
Foi numa de minhas andanças quando era candidato e acreditiva no parlamento como solução para as desigualdades da sociedade. Era candidato a deputado pelo PT. Íamos eu, Lisâneas e a Iza falar ao povo do morro. Andávamos de casa em casa. Numa dessas, fomos convidados a entrar. Num canto, um velho doente. No outro, três criancinhas esquálidas. Em uma TV preto e branco passava o “Jornal da Tarde” . Um vulto loiro atentava minhas falas e a do Lisâneas. Irradiava um olhar verde sob uma testa angular e serena. Parecia ter, e tinha, 16 anos. Seus lábios eram da cor rósea que revelou para nós, quando sorriu pela primeira vez, uma carreira de dentes alvos e perfeitos.
O corpo jovem tinha a leveza de uma nuvem ao vento. Era a própria beleza natural que contamina. Suas mãos eram de tamanho combinativo com os antebraços que, aureolados com fios aloirados, davam vida às musas européias. Ela me olhou de soslaio depois de ouvir falar sobre política com seu cansado pai.
Falou-me docemente:
— Posso fazer uma pergunta ao senhor?
Respondi que sim, já imaginando alguns dos muitos equívocos que a idade lhe orna.
E ela:
— Por que as pessoas pobres, que não têm este tal de convênio, quando vão aos médicos vêem dois consultórios? Um, todo de poltrona, ar condicionado, servindo coisas para as pessoas e, outro, ao lado, sem cadeiras, com as pessoas sentadas em cimento, todos tossindo um ar de doença? A gente não é todo mundo igual?
Prosseguiu senera:
— Eu conheço o senhor e se pudesse votar, votaria em seu partido.
— Você me conhece de onde? Não me lembro de tê-la visto antes.
E ela, com uma voz que me deu mais força para continuar na luta política, replicou:
— Todo dia eu vejo o senhor na televisão. O senhor sempre aparece e, como fala em Macaé, eu fiquei esperando o senhor aparecer um dia para pedir a papai para votar.
Saiu correndo, corada, quando ao me despedir, juntamente com Lisâneas e Iza, comentamos as covas de seu sorriso…
Maria de Jesus não chegou a votar. Hoje, quando o meu editor Moreira me cobrava uma crônica, me lembrei dela. Também me lembrei de que o PT chegou ao poder… dos exploradores. A medicina está cada dia mais voltada para a ganância capitalista, a assistência médica aprofunda o desprezo pelos pobres.
E a direção do PT, definitivamente, longe das massas. Nunca vai entender isso.