O eleitor — essa “caça” valorizada durante o período de campanha — perde todo seu valor depois de ter “cumprido com o seu dever” na urna, ou seja, quando é transferido para a condição pós-abate. Nem a carcaça encontra mercado porque ninguém precisa de um eleitor que acaba de ser usado.
Sob o véu da “democracia”, entram e saem campanhas e nenhuma palavra acerca do caráter de classes do Estado brasileiro, do seu sistema de governo, das suas instituições e partidos. No cenário de um Estado fantoche — sustentado por classes reacionárias que mantêm o povo sob constante exploração — desenrola-se mais uma adaptação melodramática da grande farsa eleitoral. A temporada de caça ao eleitor termina apenas nos dias 3 (data do primeiro turno) e 31 de outubro (nas cidades onde houver necessidade de segundo turno), quando o pobre eleitor repetirá sua ida às urnas. O tal “sufrágio universal” se resume num breve momento, celebrado como o “auge do processo democrático”, quando oferecem ao povo a infeliz oportunidade de escolher seus “representantes” — já que essa formidável democracia não permite que ele governe diretamente.
A festa do monopartidismo
Quando os programas partidários obedecem ao mesmo padrão, as candidaturas propostas por eles só podem apresentar diferenças superficiais. A grande burguesia e o latifúndio têm suas frações com interesses setoriais e localizados. Em torno deles formam-se bandos que se autodenominam “partidos”, com suas cortes de diretorianos, dos quais o mais “preparado” sai como candidato majoritário, seguido pelos que pleitearão cargos proporcionais e os que empenharão todas as forças para ocupar os cobiçados cargos comissionados.
O que se esconde por trás desse espetáculo de horrores? A disputa eleitoreira, que é regida pela necessidade de cada fração definir seu futuro imediato. Quem representará, desde os altos escalões à base legislativa e executiva, o suporte do poder imperialista nativo? Qual o mais apto emergente capaz de permanecer no jogo da alternância de poder? O que fazer com a impaciência das massas e o crescente desgaste do governo? O PSDB cresce, mas o PT continua? O PT está ou não consolidado como a melhor legenda monopartidista? Em qualquer caso, eles precisam reforçar uma falsa oposição para evitar a polarização revelada pela luta de classes. Novas limitações surgem nessa “liberdade de escolha”, a começar pelo fato de a esmagadora maioria dos candidatos defenderem, na realidade, um só programa. Ou seja: as propostas, a propaganda e as atitudes dos candidatos são, como se diz popularmente, farinha do mesmo saco. Partidos como PFL, PSDB, PP, PMDB, PTB, PL, PPS, PC do B e o PT, expressam os interesses das diferentes frações da grande burguesia e do latifúndio. Ouriçados pelo pleito de outubro, “rivais” ideológicos agora não deixam de trocar abraços e apertos de mão. O PFL, por exemplo, vai apoiar os candidatos do PT em duas importantes cidades do estado do Rio: Niterói e Nova Iguaçu. Em São Paulo, a parceria se repete em São José dos Campos, entre outros municípios.
Municipalização ou feeralização
Quando a direção do PT iniciou os movimentos para traçar uma estratégia eleitoral para 2004, não vislumbrava outra alternativa que não “municipalizar” as eleições, tendo em vista que o tão prometido espetáculo do crescimento da economia já não tinha a menor credibilidade. Neste caso, não precisava inventar nada, bastando apenas dar uma nova roupagem às velhas políticas do “calçamento” e da “bica d’água” à maneira de Chagas Freitas, de Maluf etc. Por outro lado, a “oposição” pefelista/ peessedebista, diante dos juros altos, do desemprego e da miséria em geral, propunha “federalizar” a eleição buscando fazer o julgamento da administração PT/FMI. A “oposição” não contava que o FMI, pelo seu interesse imediato de manter o PT gerenciando suas ações no Brasil, logo daria um jeitinho na situação, criando um clima de euforia através do bombardeio diário no monopólio de comunicação sobre “a retomada do crescimento econômico”, da queda do “Risco Brasil”, do “desemprego em baixa”, do aumento das exportações etc. Ora, este empenho é justificado: ganhar as eleições municipais é um grande passo para assegurar os “currais” e garantir a recondução do atual gerente, situação relativamente cômoda, a partir da avassaladora e crescente centralização administrativa, há muito encontrada no país. Assim, invertem-se os papéis, com a oposição municipalizando os debates e o PT/FMI alardeando seu “vigoroso” progresso no gerenciamento do país.
Rio e São Paulo: picadeiros
Na prática, não restam dúvidas sobre a identidade entre os postulantes. Estes mesmos “partidos” já tiveram oportunidade de assumir a administração — tanto municipal, como estadual e federal — e, nem de longe, apresentaram realizações que se aproximassem de suas atuais propostas.
Velhas promessas são renovadas sem a menor intenção de cumpri-las: todo apoio à segurança (?), melhorar o sistema de saúde, a educação, o transporte, a habitação, além de elevar o nível de emprego. Só a primeira será contemplada, sob a forma de aumento da repressão sobre os camelôs e o povo em geral, além de novos e escorchantes impostos.
Chegam a prometer o CEU1, brigam pela paternidade da idéia com o mesmo descaramento com que fingem haver diferença entre si.
Esta falsa polarização cumpre um papel fundamental para os verdadeiros donos do poder, pois o eleitorado, além de ser obrigado por lei, é induzido diante do falso dilema a votar em um dos dois candidatos-sabonete. Isto significa a legitimação do sistema eleitoral burguês-latifundiário serviçal do imperialismo.
Mercadoria para todos os gostos
Nas ruas, materiais de campanha emporcalham as cidades: faixas, adesivos, bonés, santinhos, cartazes, outdoors, chaveiros, camisetas, panfletos, bandeiras, carros de som (com suas vinhetas e músicas irritantes), porta-títulos, esferográficas… O velho estilo permanece, a despeito dos ares de “modernidade” que os marqueteiros tentam imprimir aos candidatos-mercadoria.
Os institutos de pesquisa ditam como deve comportar-se cada candidato: o que falar, como se vestir, onde ir ou não ir, quais promessas a fazer em cada local. Quer dizer: tudo o que a empresa marqueteira quiser, incluindo aplicação de botox (uma técnica de cirurgia plástica) para mudar a cara que o tempo amarrotou. Foi o que fez o atual prefeito do Rio no pleito anterior.
Ser um candidato mascarado, nessa lógica, é visto como uma qualidade.
Teatro colonial
Nas entrevistas e nos debates, os discursos se parecem cada vez mais. Uns acusam os outros, que acusam o governo do estado, que acusa o federal, que não acusa a metrópole porque ainda resta um pouco de juízo. Quando administram mal, dizem que a culpa foi do antecessor. Quando estão no poder, dizem que a reeleição será a oportunidade de cumprir todas as promessas. Em cada gestão, no primeiro ano nada se faz porque, como costumam dizer os recém-empossados, “é preciso arrumar a casa”. No segundo, vai depender muito da correlação de forças que se avizinham, “porque sendo eleições majoritárias… Você entende?”. No terceiro ano, com assessores novos, “há problemas de caixa”, acompanhados de escândalos, “tentativas de desestabilização da minha gestão”, alguma “calamidade pública que abalou a cidade e até chegou a sensibilizar todo o país”. E no último ano, eleições municipais: não se pode fazer nada! Por isso, não é de espantar se ouvirmos: “Tomei a decisão de tentar a renovação do meu mandato. Minha família reclama tanto”. Mas, seja como for, “que sacrifício não vale o exercício da democracia e da cidadania?”
Discursos parecidos e as mesmas ofensas de sempre. Contribuindo para abaixar (ainda mais) o nível da campanha, o prefeito/candidato César Maia comparou Conde a uma baleia encalhada: — Conde está encalhado pelo peso de suas idéias. Nove toneladas de idéias atrasadas — disse Maia, revelando conhecer a ferida quando acrescenta: O pior populismo é o da direita, que às vezes tem uma faceta muito assistencialista, e agora religiosa. (Dia Online 10/8). Em São Paulo, Marta Suplicy acusa Serra de plágio de suas propostas e por sua vez é acusada por Serra de arrogância e desconhecimento.( Folha online 28/8)
Em outro habitual cenário, o dos debates televisivos, as mesmas cenas se repetiram quando a TV Bandeirantes promoveu o encontro de parte dos candidatos a prefeito do Rio. Provando a fragilidade da “democracia” burguesa, a Bandeirantes fez uma espécie de primeira e segunda divisões de candidatos. Os “candidatos de primeira divisão”, ou seja, os mais bem colocados nas pesquisas, fizeram o debate no dia 18/7; os “candidatos de segunda divisão” participaram de outro debate, no dia 25/7. Em suma, não houve um debate “democrático” entre todos os candidatos. Não poderia, porém, faltar aquela velha troca de insultos entre os debatedores. César Maia criticou o governo estadual (dos desafetos Garotinho e Rosinha, além de Conde); Conde dizia ser o responsável por criar os programas Favela-Bairro e Rio Cidade e trazer o Pan Americano (carro-chefe do atual prefeito); Jandira Feghali disse que não quer ver mais guarda municipal batendo em camelô; Bittar defendeu a política de Luiz Inácio; e o evangélico Crivella pediu mais alma para a política municipal.
Em São Paulo, os candidatos José Serra (PSDB), Marta Suplicy (PT) e Paulo Maluf (PP) fizeram um acordo e decidiram não participar do debate promovido pela TV Globo no dia 1/7. Já no debate de 5/8, promovido pela TV Bandeirantes, os três candidatos (mais Erundina, Paulinho, Havanir e Ciro Moura) compareceram. Quase como atores, eles encenaram roteiros preparados pelos assessores. Para ter noção de como são teleguiados, o exemplo de Marta Suplicy: antes do encontro televisivo, ela fez o chamado media training, um teste em que são simuladas possíveis situações do debate.
Nesta selva de artificialismos, eleitores se confundem com consumidores; e candidatos, com sabonetes.
O oportunismo coadjuvante
Travestidos de radicais nos movimentos estudantil e sindical, os trotskistas (PSTU e PCO) vão em socorro à apodrecida democracia burguesa, referendando todo o processo ao lançar candidatos que no primeiro turno “denunciarão” os demais como “burgueses” e, no segundo, recomendarão o “voto útil” em um deles.
Este desmascaramento automático mostra que atuar como oportunista coadjuvante (que inclui a criação de novas siglas) pode até pegar alguns incautos no primeiro momento, porém, está fadado a sucumbir totalmente frente ao ascenso do movimento de massas.
Repúdio, apelido abstenção
Afora eleições fraudadas e o mil vezes denunciado voto eletrônico2, tudo deverá acontecer de uma forma que a abstenção, ou mesmo a anulação, não sejam majoritárias, embora o peso de ambos venha a ser cada vez maior.
Toda esta podridão é acompanhada e repudiada por um número cada vez maior de brasileiros que, sem se importar com ameaças de multa; sem se deixar influenciar pela massiva propaganda na TV, onde jovens são usados como bonecos-propaganda do velho, carcomido e corrupto sistema eleitoral.
Crises ainda maiores se anunciam. O imperialismo quer mais e mais lucros. A frações internas devem se digladiar, até o limite tolerável pela metrópole. Essas tendências também se refletem na disputa eleitoreira pela necessidade de cada fração definir seu futuro imediato. Uma disputa eleitoreira cada vez mais milionária, excludente e mafiosa. Eleições que, como o próprio monopólio das comunicações não deixa de noticiar, produzem cadáveres à vontade.
Logicamente que o povo ainda votará nessas eleições, até por força de lei (uma multa de valor inexpressivo). Apoiando a cantilena de que o sufrágio universal tudo resolve, não faltarão, diante do risco da abstenção em larga escala, os que dirão “Vote apenas em fulano” ou Vote nulo!, como se isso ainda fosse o máximo.
1 Centro de Educação Unificada e, também, Centro de Especialidades Unificadas, siglas que se referem aos projetos propostos por Marta Suplicy, em São Paulo.
2 O livro Burla Eletrônica (Edição da Fundação Alberto Pasqualini, Rio de Janeiro), organizado por Mário Augusto Jakobskind e Osvaldo Maneschy, reúne uma série de depoimentos sobre o voto eletrônico, entre os quais os do Dr. Leonel Brizola, Amilcar Brunazo Filho e Benjamin Azevedo.