Durante o ato de 7 de setembro, em meio à correria, viatura da PM atropela idoso.
Nos anos oitenta havia um jornal chamado Última Hora. Todos os dias aglomerava gente nas bancas de jornal para admirar fotos de cabeças cortadas, troncos sem membros, pedaços de gente – gente pobre, gente negra, gente das periferias – e os comentários não eram de horror, era sempre do gênero “mais um bandido morto”.
Vinda duma sociedade onde a lei estabelece que todos as pessoas são inocentes até provar o contrário, me descobri numa sociedade onde todo mundo se acha no direito de fazer julgamentos instantâneos sem ao menos apurar os fatos, e a aplaudir o espancamento, tortura, morte de qualquer um baseado em nada mais do que suposição, disse-me-disse, denúncia, suspeita, real ou imaginária. Sempre se ouve aqui o bordão “bandido bom é bandido morto”. Só que o bandido pode ser qualquer um, já que é a opinião difundida pela sociedade quase inteira que direitos humanos é um mecanismo pelo qual gente frouxa – ou até criminosa – defende os direitos dos “bandidos”, que, na melhor das hipóteses, pode ser qualquer um que seja diferente do interlocutor.
Por mais que os movimentos sociais e de direitos humanos batalhem, a grande mídia sempre continua sustentando esses bordões e nunca foi difundido por aqui o conceito de que cada ser humano tem direitos. Assim fica fácil propagar a noção de que quem se aventurar pelas ruas exigindo os direitos sempre negados de educação, saúde, transporte, moradia, esteja errado – um vagabundo, desordeiro, vândalo… até criminoso. A vítima se torna réu do processo.
Ou seja, quem aponta para os problemas vira o problema. Com essa lógica torta os governos federal, estaduais e municipais pelo país inteiro se acham no direito de mandar a Policia Militar, as Tropas de Choque e todas as outras tropas e instâncias de poder atacar a população impunemente em todo o país, desde as pessoas que se manifestam nas ruas reivindicando os direitos, até as pessoas em volta que porventura se encontrem ali, transeuntes, camelôs, espectadores. Num dos vídeos registrados no Rio dia 7 de setembro, vimos um policial fortemente armado dizendo para um jovem “Para de falar ou te dou voz de prisão”. Proibido se manifestar de qualquer forma.

Camelô passa mal com efeito do gás lacrimogêneo e é atendido por socorristas voluntárias.
Acho muito triste as imagens que vi de todo o país desse dia da “Independência”. Independência de quem cara pálida? No Rio testemunhei ao vivo famílias com idosos, crianças e bebês de colo envoltas em nuvens de gás lacrimogêneo, deficientes físicos, gente com problemas respiratórios, todo mundo apavorado, gritando, bombas caindo por todos os lados, um velho atordoado sendo atropelado por carro da polícia que sequer parou para prestar socorro, gente ajoelhada vomitando…
Aí vem as imagens de Brasília, fotógrafo da Folha de São Paulo sendo atacado por cães policias, outros repórteres borrifados por jatos de spray de pimenta, gente caindo no chão passando mal e levando chute da polícia, na Bahia jovens apavorados sendo surrados por policiais fortemente armados. Em Fortaleza um jovem de maca com sangramento profuso enquanto os policiais negam socorro. De São Paulo dois atropelamentos deliberados por carros de policiais que nem diminuíram a velocidade ao atingir as pessoas e um jovem que perdeu o olho com estilhaço de bomba.
A tropa de choque carioca em todos os cantos, mascarada, arrancando as máscaras de jovens para melhor envenená-los.
Na Lapa à noite a cena surreal daquela tropa armada até os dentes, abaixados atrás dos escudos avançando pela Rua do Riachuelo deserta, caçando não se sabe bem o que, enquanto surge de todos os cantos, de cima, embaixo, o grito “Cadê o Amarildo?”
E a tropa hesita, os homens tropeçam uns nos outros, dão meia volta… e a rua continua deserta e os gritos e sussurros continuam.
Nesses anos todos ouvi intermináveis vezes que o Brasil é o país do carnaval, do futebol, do homem cordial… enquanto assistia o massacre contínuo que corre por baixo. Vi uma parte significativa das lideranças dos movimentos sociais sendo cooptada para os gabinetes das vários instâncias do poder, ONGs instaladas com mega-investimentos empresariais, enquanto uma ditadura militar seletiva toma conta das comunidades mais pobres, seja de militares uniformizados ou dos paramilitares dos diferentes grupos armados. O Disque-Denúncia se torna uma instituição sagrada, mas surpreendentemente nada faz para elucidar o crescente número de desaparecimentos que nessa nova configuração do velho poder tomam lugar dos “autos de resistência” que antes justificavam os números assustadores de baixas na mão do poder público…
Diante disso tudo, o levante da juventude brasileira para protestar se torna algo realmente heróico. Vimos a maioria muito jovem, desarmada e frágil frente aos robocops enviados contra eles. Jovens de vários cantos do Rio unidos numa luta. A diferença é na força da mente e a crença numa verdadeira justiça. Assim criou-se a estratégia dos Black Blocs para defender os demais dos ataques cada vez mais brutais das forças de “ordem.” E junto vem os jovens advogados vestidos como quem sai para um evento social qualquer, sempre presentes para apurar cada excesso, cada detenção, e os socorristas tão impecáveis quanto, com seus jalecos brancos, tendo as máscaras sanitárias arrancadas à força no Dia da Independência e mesmo assim atendendo também os policiais atordoados pelo gás. Todos voluntários do movimento maior. Em todas as sociedades de todos os tempos, os rebeldes foram os mais inteligentes, os mais capazes e os mais dispostos. Diga Zumbi, Dandara, Rosa Parks, Olga Benário, Marighela, Che Guevara, Malcolm X, Zuzu Angel…
Enquanto isso, incentivada pela imprensa cativa dos donos do poder, que desde os primórdios dos protestos insistem em tachar quem se manifesta de vândalo, uma sociedade acomodada diante dos seus imensos televisores permanentemente ligados, bate palmas para a repressão e chama a juventude corajosa que se ergue contra tudo isso de fascista…
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*Vik Birkbeck, antropóloga de formação e inglesa de origem, é cineasta independente. Ela também assina a mostra Fronteiras do Festival do Rio.