Diante da exigência permanente de amplos setores do povo boliviano para que o governo de Evo Morales cumpra sua promessa de nacionalização de todos os recursos naturais — em especial dos hidrocarburetos —, Morales tem utilizado como cabeça de turco um dos empreendimentos transnacionais siderúrgicos inconclusos, cujo assentamento na Bolívia recentemente estava sendo concretizado: o de MMX, e se reservou para o simbólico Primeiro de Maio um show de grande proporções ao nacionalizar, supostamente, os hidrocarburetos bolivianos, feito que sem dúvida tem gerado muita revolta, tanto em nível nacional como internacional.
Tanto os problemas com MMX, como as petrolíferas que têm atividades no país 1 — fundalmentalmente a Petrobrás, que ostenta os interesses econômicos maiores no país — têm originado certos choques entre os governos do Brasil e da Bolívia, pondo na mesa uma velha discussão sobre a existência ou não de um sub-imperialismo brasileiro.
O conflito alcança certos ganhos, pois os negócios, o dinheiro, o gás e o petróleo põem frente à frente os dois ícones da chamada “nova esquerda latinoamericana”. Um, Luiz Inácio — sem outra alternativa que tomar partido dos interesses da Petrobrás, que há muito deixaram de ser coincidentes com os interesses de todo o povo brasileiro 2 — e outro, Evo Morales, que através de um show midiático, digno de simplória criatividade de Hollywood, distribuiu cartazes nos postos de gasolina e nos depósitos de gás escrito: “Nacionalizado. Propriedade dos bolivianos”, através da promulgação do D.S. 8701, que arrecada mais impostos das transnacionais, porém abandona definitivamente a consigna do povo boliviano de uma verdadeira nacionalização dos hidrocarburetos.
Conflitos com MMX
A inversão feita por MMX 3 dependente da transnacional EBX 4, na localidade de Porto Suárez — também pertencente à província Germán Busch — se trata de um projeto siderúrgico que compreende a construção de uma planta com quatro fornos para a transformação de ferro em arrabio 5.
Esta planta se encontra a uma distância superior a 50 quilômetros da fronteira com o Brasil, razão pela qual seu assentamento é totalmente inconstitucional,em razão do Art. 25 da Constituição Política da Bolívia que proíbe a propriedade ou possessão de qualquer estrangeiro dentro da margem territorial mencionada.
Por outro lado, como já denunciado no Foro Boliviano do Meio Ambiente, MMX pretendia utilizar carvão vegetal 6 para a elaboração de arrabio, em lugar de gás natural, porque a planta instalada em Porto Suárez ia ser utilizada com essa fachada por MMX para captar gás natural subsidiado pelo estado boliviano que não ia ser utilizado por essa planta, mas desviado pra outra planta mais moderna de EBX, instalada na bem próxima localidade brasileira de Corumbá, em consórcio com a transnacional anglo-australiana Rio Tinto.
Plano Piloto “nacionalizador”
Com argumentos legais, meio ambientais, políticos e econômicos de induvidável contundência, Evo Morales aproveitou este conflito para apresentar-se pela primeira vez, já governante, como dotado de um talento “nacionalizador”, diante do povo boliviano que, desde sua ascensão ao governo, esteve impaciente por medidas concretas contra as transnacionais.
À intenção de firmar a imagem de Morales descaracterizada da postura de vende-pátria dos governos anteriores, coadjuvaram dois aspectos: a atitude descaradamente vende-pátria do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, que até bem pouco defendeu de capa e espada a permanência de MMX em Puerto Suárez, para se congratular com o Comitê Cívico de Puerto Suárez e El Puerto Quijarro — localidade da província cruzenha de Guermán Busch -, assim como a precariedade econômica em que vivem as populações das localidades de Puerto Suárez e Puerto Quijarro, que clamam por meios de trabalho com suma urgência.
Estes dois aspectos, inclusive, levaram o conflito a uma tensa situação cujo ponto máximo ocorreu em 18 de abril último, dia em que por várias horas estiveram reunidos no local das negociações em Porto Suárez três ministros de Evo : do Desenvolvimento Sustentável e Planificação do Desenvolvimento, Carlos Villegas; de Mineração e Metalurgia, Wálter Villar-roel; e de Desenvolvimento Econômico, Produção e Microempresa, Celinda Sosa, ministros que foram praticamente liberados depois de uma intervenção militar.
Fruto da discórdia
Além do mais, este conflito permitiu evidenciar as fortes contradições entre os interesses econômicos encabeçados por Morales contra os representados pela oligarquia cruzenha na zona de Porto Suárez, onde tem havido importantes períodos de paralisação com bloqueios em cinco pontos de acesso à fronteira do Brasil. Nesse momento, o Comitê Cívico Pró-Santa Cruz — entidade cívica que serve de fachada da oligarquia cruzenha — fez várias ameaças de paralisar também a cidade de Santa Cruz de la Sierra 7.
Mais evidente se tornou essa situação quando o representante do Comitê Cívico de Porto Suárez, Edil Gericke, transpôs a fronteira brasileira e se instalou na localidade de Corumbá, solicitando asilo político, pelo fato da máquina judicial e policial estar em sua busca como o principal responsável pelo “sequestro” de três ministros de Evo Morales no citado 18 de abril.
Campeão das “nacionalizações”
O Primeiro de Maio último, tão logo foi quebrado o velho monosindicalismo boliviano, desprestigiando a Central Operária Boliviana (COB) com seu terrível plano corporativista: o chamado “Estado Maior do Povo”8, na tradicional marcha dos trabalhadores pelo Dia Internacional do Proletariado. Evo Morales empreendeu uma marcha rápida aos campos de gás, com a companhia de um batalhão de jornalistas nacionais e internacionais e de um pequeno contingente de soldados precariamente armados, além de militantes de seu partido, para espalhar bandeiras com os dizeres: “Nacionalizado. Propriedade dos bolivianos“, protagonizando uma inédita “nacionalização ao vivo e em transmissão direta”, via Decreto Supremo.
O Decreto Supremo n° 28701,na realidade se encontra dentro dos parâmetros da Lei n° 3058, que foi negociada entre as transnacionais e o governo de Carlos Mesa, sendo o artífice fundamental o ex super ministro Xavier Nogales Iturri — quadro boliviano dos chamados organismos multilaterais financeiros, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional etc. —, ainda que essa Lei fosse promulgada depois de ambos personagens terem saído do governo, porém antes da chegada de Evo ao poder.
Por isso,a única coisa que possibilitará o D.S. n°28701 será a legalidade de mais de 70 contratos subscritos por Sánchez de Lozada sem o respectivo consentimento do Congresso boliviano, cumprindo Evo Morales sua palavra de “nacionalizar sem expropriar nem confiscar, respeitando os interesses das transnacionais que operam na Bolívia”, empenhada em sua viagem de janeiro de 2006 à Espanha.
Sabedor da enorme sensibilidade que gera o tema da nacionalização na Bolívia, não reverteu nenhum esforço para “nacionalizar os hidrocarburetos” em meio a uma enorme parafernália, que ainda não cessou dentro e fora do país, e que inclusive é defendida à capa e espada pela “esquerda caviar” a nível mundial.
Já a Lei n° 3058 carregava de impostos as transnacionais para as atividades hidrocarboríferas na Bolívia, enquanto que este D.S. n° 28701 incrementa ainda mais, inclusive assinala Evo Morales que significará um ingresso de 750 milhões de dólares ianques anuais para o Tesouro Geral da Bolívia. Embora a cifra não seja pequena, na prática permanentemente as transnacionais têm aplicado dupla contabilidade e declarado produzir muito menos do que na realidade produziam. Além dos casos de contrabando plenamente verificados, esta situação faz generalizar problemas, não tanto pelo exercício de soberania, mas pela pugna na partilha de lucros entre os atores em disputa — dos que, com segurança, o povo boliviano haverá de escorraçar.
A disputa entre “líderes”
É precisamente nessa disputa que se vêem envolvidos os líderes da “nova esquerda latino-americana”: Luiz Inácio e Evo. Lula — como representante cada vez mais desmascarado diante dos interesses ianques entranhados na Petrobrás —, e Evo, que — sem confiscar nem expropriar os interesses transnacionais —, reclama uma lasca maior para a sua esfomeada clientela burocrática.
Está claro que, de alguma forma, Evo Morales trata de fazer o jogo do equilibrismo com as massas bolivianas, tão logo expressou de maneira clara sua posição de “nacionalizar” sem confiscar, nem expropriar ou expulsar as transnacionais, respeitando suas inversões e propriedades que, em resumidas palavras, significa deixar tudo como está.
Esse equilibrismo reside numa ginástica de discursos de efeito, sem dúvida, produzido por seu mentor, o vice-presidente e ventrículo: Álvaro García Linera, expert em produzir retórica ilusionista sem assumir posturas teatrais pseudo-populares e pseudo-revolucionárias, que estão sendo aprendidas — a duras penas — por Evo Morales.
Essa discussão não é nada nova, mas de longa data. Basta assinalar que na década de 70 corria rumores que o mentor do golpe de Hugo Bánzer na Bolívia era o sub-imperialismo brasileiro, aliado à oligarquia cruzenha 9, algo muito similar ao que ocorre na atualidade ao se seguir vinculando os interesses da oligarquia cruzenha como “interesses brasileiros”.
Sub-imperialismo brasileiro?
Pensamos que ao se expressar esta aliança, em si, ela se trata de operações conjuntas de peões do imperialismo, principalmente ianque, como as cifras das ações da Petrobras referendam.
Este problema do sub-imperialismo, decantado por alguns intelectuais de esquerda, é uma suposição de que o monopólio imperialista permite o surgimento de outros imperialismos, algo absolutamente ingênuo, fruto de uma análise divorciada do modus operandi do imperialismo mundial que, onde não emprega corrupção, compra de consciências, endividamento, emprega a rapina.
Já no fragor do processo de capitalização na Bolívia (1993-1997), o conceito do sub-imperialismo chegou ao paroxismo em terrras bolivianas, onde alguns intelectuais acreditavam que empresas de fachada — leia-se cavalos de Tróia — como a empresa cervejeira argentina Quilmes que comprou a Cervejaria Boliviana Nacional, quando por detrás da Quilmes estava a poderosa e gananciosa transnacinal belga Ambev, ou que a também gananciosa empresa peruana Gloria tenha comprado a boliviana PIL Andina, que na verdade serviu de fachada à Nestlé, verdadeira dona da Glória .
1 Repsol, Petrobrás, Total, Enron, Shell, British Petroleum, Vintage e outras, como American Oil Company (AMOCO).
2 Veja em AND 29, abril de 2006, no qual fizemos referência também a muitos outros artigos publicados em AND 3, onde fica em evidencia que a consigna “O petróleo é nosso” há muito foi traída, para dar lugar ao ingresso de capitais transnacionales na Petrobrás, que utilizam-na como cavalo de Tróia em muitos países.
3 Mineração & Metálicos S.A.
4 Empresa de propriedade do multimilionário brasileiro Eike Batista, com presença no Brasil e outros países sul-americanos como Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Chile e Uruguai, além da Bolívia através da subsidiária MMX.
5 El arrabio “é o primeiro processo que se realiza para obter o aço. Os materiais básicos empregados são minério de ferro, coque — a mistura de carvões metalúrgicos se submete a um processo de destilação seca que o transforma em coque metalúrgico — e caliza (rocha formada de carbonato de cal)”. (ver www.infoacero.cl)
6 O carvão vegetal acarreta impactos negativos na natureza, segundo o Fórum Boliviano do Meio Ambiente. 7 Santa Cruz de la Sierra é a cidade que concentra a maior parte da população na Bolívia e a de maior pujança econômica no país, é a capital do Departamento de Santa Cruz.
8 O Estado Maior do Povo é um aparato do Movimento Ao Socialismo (MAS), partido de Evo Morales, criado como órgão paralelo da Central Obrera Boliviana (COB), que aglutina diversos setores populares e divide os trabalhadores tanto operários, camponeses, mineiros e professores.
9 Ver o texto de René Zavaleta Mercado. El Poder Dual. La Paz: Los Amigos del Libro. 1989. Sobre esse assunto, observa-se que sutilmente aparece a variante teoria do sub-imperialismo no texto de Luis Alberto Echazú. Los nuevos dueños de Bolivia. Llallagua: Universidad Siglo XX.1997.