Ao descer a escada do Aerolula no aeroporto de Roma, arrastando um staff que, entre outros, incluía Fernando Henrique, Sarney, Jobim, Renan e Severino, para acompanhar o funeral do Papa, Luís Inácio sagrou-se campeão brasileiro das viagens internacionais, batendo de longe o antecessor Cardoso, que, nos oito anos de mandato, passou 341 dias no exterior. João Paulo II, em seus 27 anos de papado, realizou 104 viagens. O petista, em 28 meses de Presidência da República, realizou 47 por 66 países tendo visitado mais de uma vez os Estados Unidos, a Argentina, a Venezuela, São Tomé e Príncipe — além da Suíça, guardiã das mais aferrolhadas caixas-pretas financeiras do mundo. Juscelino Kubitschek de Oliveira, o presidente bossa-nova que de tanto voar acabou personagem de modinha de Juca Chaves, é outro que perde longe para Luís Inácio da Silva: só viajava por aqui mesmo, e ausentou-se do país apenas duas vezes, a primeira para visitar o Panamá, deixando o vice João Goulart no exercício da Presidência da República, de 19 a 27 de julho de 1956, e a segunda, de 5 a 11 de agosto de 1960, quando esteve na Argentina, Uruguai e Chile. Como Jango o acompanhasse, a Presidência da República sobrou para Paschoal Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados.
Na República Velha
Da proclamação da República por Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889, até 1 de janeiro de 2002, Fernando Henrique Cardoso vinha sendo o presidente que mais viagens fez ao exterior: deixou o país 92 vezes para quase 150 viagens oficiais a meia centena de países, além de três visitas à sede da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque. O primeiro presidente a ausentar-se do país foi Campos Salles, substituído pelo vice Francisco de Assis Rosa e Silva quando visitou a Argentina, no período de 17 de outubro a 11 de novembro de 1900. Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Braz, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa, Arthur Bernardes, Washington Luiz, Getúlio Vargas e Eurico Dutra nunca realizaram visitas presidenciais ao exterior (Vargas esteve rapidamente no Uruguai e Argentina, mas como ditador, no Estado Novo). O périplo internacional começou graças ao trabalho do marqueteiro Nizan Guanaes com Fernando Henrique Cardoso: O Itamaraty articulava um título de doutor honoris causa com uma universidade de renome — London School of Economics, Bolonha, Harvard, etc, convocavam-se os jornalistas credenciados, e estava feita a festa, que se repetia com a mesma intensidade da campanha publicitária detonada para convencer o povo da necessidade de promover o acesso a novos mercados e a conquista de investimentos, em suma, vender o Brasil. Pré-candidato ao Palácio do Planalto, Lula comentou: “O nosso presidente já dormiu até na residência de verão do Bill Clinton, mas me apontem alguma vantagem comercial nisso…”
Só no primeiro ano de governo, Luís Inácio fez 18 viagens internacionais. Ficou 53 dias visitando 32 países. Na Suíça, França e Argentina esteve mais de uma vez. Em 2004, foram 21 viagens internacionais: 39 dias em 21 países. Na Índia e na China teve agenda até nos domingos. Numa mesma viagem, visita até cinco países. Em 28 de junho de 2003, entrevistado por Luiz Fará Monteiro no programa radiofônico Café com o Presidente, disse que estava “terminando um ciclo de viagens definido como estratégia de política externa do governo brasileiro”, mas voltou a alçar vôo logo em seguida. Maio: Japão e Coréia; julho: compromissado com Jacques Chirac para se fazer presente às comemorações do aniversário da Revolução Francesa; setembro, Assembléia Geral da ONU, em Nova Iorque; outubro, Rússia e Inglaterra. Para fechar o ano, comparecerá à reunião de cúpula do Mercosul, no Uruguai.
Tamanho frenesi tinha de ser demais para o Sucatão ao qual Cardoso impunha, em média, sete viagens por ano tendo até de pagar sobretaxa aeroportuária para pousar devido ao barulho emitido por suas turbinas. Em alguns aeroportos, era até proibido de pousar, e Cardoso tinha de optar pelo fretamento de aeronave mais moderna, pagando US$ 12 mil por hora de vôo — US$ 5 mil mais caro que no Boeing 707 da FAB. Este foi um dos argumentos de que Luís Inácio lançou mão para comprar, por US$ 56,7 milhões, um Airbus cuja hora de vôo não custa mais de US$ 2.100.
Aposentadoria do Sucatão
Na verdade, desde que se aboletou no trono presidencial, o “companheiro” estava disposto a ultrapassar a marca de Cardoso, que no ano 2000 tinha descartado o Sucatão porque um avião similar que levava à China o então vice-presidente Marco Maciel sofreu uma pane durante o vôo. Luís Inácio, mal deixou as malas no Palácio da Alvorada, comprou na TAM um bilhete para Paris, mas voltou no velho Boeing presidencial, reabrindo a discussão sobre o transporte aéreo nas viagens presidenciais para além-mar.
O Airbus ACJ, ao qual associaram em batismo o nome de Santos Dumont, estreou fazendo um vôo para Tabatinga (AM), por ocasião do lançamento da nova versão do Projeto Rondon, mas já na viagem ao Vaticano trouxe aborrecimentos ao governo: apresentou defeitos de pequena monta, como na cafeteira, que não esquentaria o café tanto quanto Lula aprecia como outros, que carecem de reparos no exterior. Além disso, mostrou-se pequeno para ocasiões especiais: houve dificuldade para acomodar a comitiva que se fez presente no enterro de João Paulo 2º. O convidado Severino Cavalcanti, presidente da Câmara dos Deputados, gostaria muito de levar Catarina, sua mulher, católica fervorosa, mas não conseguiu, porque o ministro das Relações Exteriores ficou com a última poltrona.
Grandes caravanas têm sido objeto de crítica de todos os lados. Ainda recentemente um deputado do Partido Social Democrático Brasileiro — PSDB maranhense atribuiu o aumento de gastos do Planalto com viagens e pagamento de terceiros à “extrema generosidade do governo Lula”. As despesas gerais das áreas ligadas ao gabinete presidencial praticamente dobraram, de R$ 101,4 milhões para R$ 202,3 milhões. “Generoso, mas infelizmente com recursos públicos. O presidente deveria dar mais valor ao dinheiro do povo”, censurou o tucano, acrescentando que os demais números relativos aos gastos da Presidência são igualmente alarmantes. No item “passagens e despesas para locomoção”, os petistas consumiram R$ 9,94 milhões, 114% a mais que os R$ 4 milhões de FHC. Os gastos mais altos foram observados no pagamento para terceiros. A atual administração torrou, até agora, cerca de R$ 1 milhão, cinco vezes mais que a sua antecessora. Ninguém sabe qual foi o retorno desse turismo nem a exata repercussão dos pronunciamentos pífios lançados aos quatro ventos nessas viagens.
Nacional sempre descartado
De outra parte, não poucos aviadores buscam uma explicação para o fato de o Aerolula, na viagem para o Vaticano, ter feito uma escala em Recife. Ressaltam que, se fosse para desdobrar os percursos dos vôos teria sido muito melhor que o Brasil adquirisse, em vez do Airbus, o avião ERJ-190 da Embraer, cujo lançamento foi presidido por Lula e tem a autonomia necessária para voar do Nordeste à Península Itálica. E destacam que, afinal, a Embraer, empresa nacional, é financiada pelo BNDES, emprega mão-de-obra nativa e seu modelo teria custado US$ 30 milhões, pouco mais que a metade do se pagou pelo Airbus.
Todos os que acompanham as contas do Planalto advertem que a administração de Luiz Inácio se distancia cada vez mais do uso equilibrado de despesas com passagens aéreas e diárias. No tocante ao pagamento da locomoção de autoridades públicas, houve significativo aumento na gestão petista, como se evidencia através do uso do Cartão de Crédito Corporativo, destinado à compra de bilhetes aéreos, refeições, diárias de hotéis e outros serviços de baixo custo. O aumento foi de 52% entre 2002 e 2003, segundo dados do Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), órgão que administra as contas da União.
Este cartão foi criado por decreto em agosto de 2001, ainda no governo do tucano Cardoso. A regulamentação, no entanto, veio um ano mais tarde. Mas já no início de 2002 e principalmente em 2003 o serviço tornou-se hábito entre as autoridades, por representar um meio rápido e pouco burocrático para o pagamento de pequenas despesas.
A Secretaria de Administração da Presidência da República não informa com precisão sobre os gastos com esse cartão de crédito. Diz que não há como fazer um comparativo entre os anos, uma vez que existiam outras formas de pagamento em 2002, como o cheque corporativo. Além disso, a Secretaria informou não ter conhecimento de pagamentos anteriores a julho de 2002, o que tornaria injusto qualquer paralelo. Existem, todavia, registros de ordens bancárias no Siafi demonstrando pagamentos desde o início do ano de 2002 a órgãos da União. A maioria deles remetidos à BB Administradora de Cartões de Crédito S.A. Em 2002, a prestadora de serviço recebeu dos cofres públicos R$ 2,4 milhões. No final de 2003, esse valor aumentou para R$ 3,6 milhões. O primeiro pagamento refere-se a uma fatura de 17 de janeiro no valor de R$ 8,5 mil, usados em Cartão de Crédito Corporativo pela Casa da Moeda do Brasil.
Crédito generoso
Apesar de estar se tornando um serviço cada vez mais utilizado, não há transparência na utilização do cartão. No Siafi, os gastos dos funcionários não são especificados. O máximo de informações é a identificação do usuário, o valor e o nome da administradora. ‘‘Não se sabe se o dinheiro foi usado para comprar um chocolate ou pagar a diária de um hotel’’, observa um parlamentar familiarizado com os serviços bancários, o deputado distrital Augusto Carvalho (PPS), que enviou documento à Corregedoria-Geral da União pedindo interferência do órgão. ‘‘Não é o caso de acabar com a facilidade do cartão de crédito. Mas essas notas de despesas deveriam ser lançadas no Siafi’’, observa ele.
Em 22 de dezembro de 2004, um decreto de Lula abriu brecha na legislação para que o Itamaraty pudesse custear, dali em diante, as despesas com viagens de integrantes “de equipes de apoio” do governo. Antes, o texto limitava o pagamento apenas aos servidores públicos que viajavam com o presidente ou o vice.
A nova medida alterou um texto editado em 1993 por Itamar Franco: suprimiu-se a expressão “servidores” para ampliar-se o leque de beneficiados, e o texto ficou assim: “Correrão à conta das dotações orçamentárias próprias do Ministério das Relações Exteriores as despesas de hospedagem e de diárias das autoridades integrantes das comitivas oficiais do presidente, do vice-presidente da República ou do titular daquele Ministério, bem assim dos integrantes de equipe de apoio, em viagem ao exterior”.
Essa alteração permite que qualquer pessoa que seja considerada como “equipe de apoio” ao presidente, vice-presidente ou ministros tenha suas despesas pagas pelo governo. Além disso, em viagens internacionais, “o servidor público civil e militar integrante de comitiva oficial, bem como o designado para compor equipe de apoio, poderá perceber setenta por cento do valor da diária quando o pagamento das despesas cobrir apenas as relativas à pousada.”
Em março de 2003, um outro relatório, elaborado pelo Sindicato das Empresas de Turismo do Distrito Federal (Sindetur-DF), tinha sido enviado à Casa Civil cobrando mudanças. O documento, até hoje não respondido, aponta desperdício na compra de passagens aéreas. ‘‘Nove entre dez passagens compradas pela União não têm descontos, uma vez que são compradas em cima da hora’’, diz o presidente da entidade, Raimundo Fontenele Melo.
Para os deslocamentos domésticos, Lula vai usar um Boeing 737, chamado de “Sucatinha”, porque, por maior boa vontade que se tenha, não há como contar com as linhas comerciais, ainda que apenas para ministros e funcionários mais graduados. É que, segundo levantamento do Departamento de Aviação Civil (DAC), apenas 126 cidades brasileiras — 2,3% dos 5.561 municípios — são atendidas com transporte aéreo regular, incluindo empresas que operam linhas nacionais, como TAM, Gol e Varig (esta, aliás, acabou de cancelar nove rotas), e pequenas companhias que fazem as rotas regionais.