As vozes do abismo se fazem ouvir

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As vozes do abismo se fazem ouvir

O depoimento de uma moradora de rua sobre o “choque de ordem”

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O choque de ordem chega com aqueles homens de luva de borracha. Eles já vêm para dar porrada. São uns trogloditas e tratam a gente como animais. Na frente da reportagem eles são uns santos. Quem assiste na TV, nos jornais e vê aqueles homens conversando com o pessoal, como se estivessem tentando nos convencer a ir para o abrigo, até pensa que é daquele jeito que acontece. Para a prefeitura, nós somos lixo e os abrigos são os lixões”.
(Relato da moradora de rua Andréia Pereira dos Santos, de 28 anos).

Encontrar semelhanças entre os aterros sanitários e as masmorras que a prefeitura do Rio de Janeiro chama de abrigos não é tarefa das mais difíceis. Sujeitos a diversos tipos de doenças infectocontagiosas e sem mínimas condições de higiene e alimentação, centenas de moradores de rua, todos os dias, são despejados como lixo nesses legítimos lixões humanos.

Com 28 anos, Andréia Pereira dos Santos mora na rua desde os 14 e nem chegou a conhecer seus pais. Criada em um reformatório público, desde criança, Andréia foi forçada a viver em condições subumanas, impostas a milhares de crianças pobres pelos gerenciamentos de turno que administram essas prisões infantis.

Segundo ela, nas ações do choque de ordem contra os moradores de rua, ninguém é recolhido pelos agentes, como dizem a prefeitura e o monopólio dos meios de comunicação. De acordo com Andréia, todos são presos e forçados a ir para os abrigos.

Uma vez, eu estava sentada no Maracanã e fui esculachada pelo choque de ordem. Eles me abordaram e quiseram me obrigar a entrar no ônibus da prefeitura. Tacaram fogo no buraco onde nós dormíamos e disseram para o pessoal da reportagem que fomos nós, que nós éramos vândalos. Só que foram eles mesmos. Quiseram nos mostrar para a reportagem como criminosos. Essa foi a segunda vez que o choque de ordem me levou. Na primeira vez, pegaram um amigo nosso e, só porque ele devia à justiça, espancaram ele. Bateram muito no coitado. O que fizeram com aquele garoto não se faz com nenhum ser humano — protesta a moradora de rua.

Segundo ela, nas ocasiões em que foi presa pelo choque de ordem, seu destino foi o abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador, que chegou a ser interditado em março deste ano pela juíza Ivone Caetano, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, a pedido da promotora Eliana Belém, autora da ação. Segundo ela, no local, misturavam-se idosos, crianças, deficientes físicos, deficientes mentais, mulheres grávidas e dependentes químicos, num total de 300 pessoas, das quais 60 dormiam no chão. Dias depois da interdição, o secretário de Assistência Social, Fernando William — que corria o risco de ser preso caso não reduzisse o número de pessoas no abrigo — cumpriu a modesta determinação judicial e pode reabrir o seu lixão.

Na ocasião em que o abrigo foi fechado, Fernando William, cinicamente, disse ao jornal O Dia que “a superlotação é resultado de um bom trabalho. Do contrário, eles teriam ido embora, já que são livres”. Mas segundo Andréia, essa vida de “liberdade”, mimoseada pelo “bom trabalho” da prefeitura, está longe de se tornar realidade.

Quando pegam a gente, levam lá para o abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador. Lá eles servem uma lavagem que parece até comida de porco. Não dá nem para saber qual comida a gente está comendo. O pessoal lá dorme um por cima do outro. Muita gente dorme no chão frio. Outros têm sarna, piolho e outras doenças. Mesmo assim não tem um médico, uma enfermeira nesses abrigos. Muita gente pega tuberculose, pois eles prendem viciados em crack, a maioria já com tuberculose. Esse pessoal não tem apoio nenhum. Quando não levam a gente para a Ilha, levam para o abrigo na favela do Antares. Os viciados saem do abrigo e já têm uma boca de fumo do lado para comprar a droga. Não existe nenhuma política do governo pra recuperar o morador de rua — reclama Andréia.

De acordo com ela, apesar dos riscos, a maioria dos moradores de rua prefere dormir nas calçadas da cidade a passar uma noite nas masmorras da prefeitura, onde ratos e baratas circulam entre as pessoas e crianças são arrancadas de seus pais, como aconteceu com Andréia.

A rua é um lugar sinistro de se morar. Já vi gente morrendo espancada, queimada. Eu mesma já tomei facada de outro morador de rua, já apanhei muito, inclusive dos homens da prefeitura. Eles batem na gente para nos obrigar a entrar no ônibus da prefeitura. Se a gente mesmo assim não quiser entrar, eles batem dentro do ônibus no caminho para o abrigo também. Tomam as crianças das mães, não levam para um abrigo onde a mãe possa ficar junto com o filho, não oferecem nada para nós. Eles perguntam por que nós não ficamos morando nos abrigos. Como? Com as condições do abrigo, onde a gente está sujeito a pegar tudo quanto é tipo de doença? Qualquer um prefere morar na rua — garante Andréia ao descrever o “bom trabalho” da prefeitura.

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