A concessão de privilegiados espaços públicos do Rio, como a praia de Copacabana, tem denúncia publicada em A Nova Democracia nº. 27. As praias continuam sofrendo com a expansão do latifúndio urbano e a corrupção decorrente de órgãos institucionais para a implementação de empreendimentos especulativos.
Tapume esconde o enorme buraco na areia e a barraca de Aristeu.
Quiosqueiros, ambulantes, barraqueiros, massoterapeutas e mesmo líderes de associações dificilmente vem resistindo à fúria expansionista de João Barreto Pereira da Costa, proprietário da empresa Orla Rio. Atual dono do contrato da licitação promovida em 1999, pelo então prefeito Luiz Paulo Conde, que lhe confere a concessão de uso para 309 pontos da orla marítima, inclusive com exploração publicitária. O contrato tem validade de 20 anos.
Em poucos meses, já será estranhamente visto nos quiosques e possivelmente nas barracas produtos irreconhecíveis para quem frequenta a praia. Os modernos quiosques, apesar de oferecerem uma melhora de fachada em relação aos antigos, engendrarão graves danos aos que realmente trabalham e produzem serviços na orla.
Por exemplo, a tradicional água de coco, servida direto no coco com canudinho, corre o risco de sumir. O coco será convertido em jarra ou em caixa. Entra o crepe, o café expresso e pratos elaborados como o salsichão com salada. Os novos quiosques terão decks sobre a areia, banheiros e depósitos subterrâneos. Nos novos banheiros será cobrada uma taxa de R$ 1,00 — mesmo valor cobrado nos postos da praia, revelando que ambos não possuem exatamente função de utilidade pública.
O contrato é nocivo. Para começar, a Orla Rio passa a abocanhar 10% do faturamento dos antigos quiosqueiros, ainda determinando os produtos que devem ser vendidos e a forma de trabalhar. O quiosqueiro tradicional utiliza uma construção de madeira, que dará lugar ao luxuoso empreendimento da Orla Rio. Antes, para se adaptar ao novo quiosque, quem o alugasse tinha que gastar quase R$ 80.000 reais para equipar a parte interna. Hoje, com o controle da Orla Rio, a quantia sobe para R$ 126.000 reais. As únicas marcas que poderão ser colocadas à venda, em toda orla são: Coca-cola, Ambev, Nestlé, Pepsi, Souza Cruz, Del Vale e Matte Leão. Cada novo quiosque construído terá um custo estimado em R$ 1,5 milhões de reais, segundo o advogado do movimento de quiosqueiros Orla Legal, Dr. Júlio César Ribeiro.
Quem alugará os quiosques? A princípio, pessoas como os atuais quiosqueiros. Mas, o Bob’s e Mcdonald’s, por exemplo, é que obterão a grande renda, porque os produtos vendidos serão os seus. Nenhum pequeno comerciante que ocupe um dos novos quiosques, por exemplo, vendendo a água negra do imperialismo (nome dado ao mais famoso refrigerante ianque) fará o negócio mais vantajoso, ao contrário, estará trabalhando para as corporações estrangeiras, para o rentista nativo que detém a concessão, e a prefeitura — para um negócio que promete muita circulação de capital.
Legalizar o ilegal
Barraca e espreguiçadeiras de hotel
De acordo com a Lei Orgânica do Município, é proibida a propaganda no corredor da orla marítima. Toda publicidade vista na praia hoje, como os tapumes, os guardasóis nos quiosques e na areia são ilegais. Conforme o Dr. Júlio César, a Orla Rio não tem dinheiro para construir um quiosque que custa um milhão e meio de reais cada um.
— Esse dinheiro vem justamente dessas corporações que investem em merchandising na orla. O novo quiosque construído vem de dinheiro irregular, ilícito. A Orla Rio não tem o direito de transferir concessão para as empresas. A concessão, em tese, ainda é dela, além de haver inúmeras ações questionando sua presença. E a prefeitura nada faz para coibir isso — denuncia o advogado.
O gerente municipal César Maia não se pronuncia quanto à estranha lógica da fiscalização, inclusive diante de outro agravante do projeto, quando se refere ao impacto geográfico. Há um processo de constante alteração do solo, em que os tratores e máquinas perfuram e removem areia para todos os lados, para implantar sistema de esgoto e ventilação à beira mar.
Agora, continuam ações em andamento para paralisar a obra com base na ausência de estudos de impacto ambiental. Hoje existem duas ações principais tramitando na justiça. Uma para cancelar a concessão, pelo fato de o contrato não prever a realização do Estudo de Impacto Ambiental Eia/Rima — e outra, para cancelar a licença da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente —Feema — que dispensou o estudo dizendo ser desnecessário o laudo sob alegação de não estar diante de uma obra de impacto e que prevê somente uma substituição de equipamento, ou seja, tirar o quiosque velho e colocar o novo. Entretanto, não é o que as areias de Copacabana revelam até mesmo para um olhar menos atento.
— Estamos vendo claramente que não estão substituindo um pelo outro. Estão perfurando 10 metros de profundidade, atingindo lençol freático, concretando 200 metros quadrados da areia para construir uma estrutura subterrânea totalmente desnecessária. É óbvio que tem que ter um estudo para ver se vai haver impacto na orla. A gente conseguiu uma sentença que foi estranhamente reformada pelo Tribunal Regional Federal, que formalmente liberou a licença da Feema e ainda se vive na esperança de parar essa obra porque é uma ilegalidade notória — denuncia o advogado.
A qualquer momento a obra pode ser embargada de novo, como ocorreu há aproximadamente um ano, mediante uma ação popular que pôs em dúvida a validade do contrato de concessão (ver AND 27).
Entretanto, a Orla Rio entrou com um documento, às vésperas do julgamento, que não pôde ser analisado criteriosamente. O autor do voto que concedeu a autorização para a continuidade da obra foi o desembargador Paulo Espírito Santo.
Por enquanto, a empresa tem o direito de construir seus quiosques somente no trecho entre o Leme e o final de Copacabana.
Além dos quiosqueiros, o projeto prejudica também massoterapeutas, barraqueiros e ambulantes, além de afetar as escolinhas de futebol e outras iniciativas populares. E as associações de moradores estranhamente se calam, ficando praticamente omissas com relação a todas as formas de luta.
Os mais prejudicados
D. Alzira Bizz
Os barraqueiros são os mais prejudicados pela criação desse tipo de quiosque. É o caso de Aristeu de Oliveira Barbosa, fotógrafo e barraqueiro. Antes, no começo da construção dos quiosques, o problema situava-se longe de sua barraca — em frente ao Copacabana Palace —e agora não pode trabalhar porque ergueram um banco de areia de 4 metros exatamente no local onde arma sua barraca há 26 anos. Sua vida foi violentamente afetada: em decorrência disso não vende nada, sequer recebeu uma mínima satisfação, mesmo possuindo licença — seu negócio é regularizado — e os fregueses, também prejudicados, são assíduos e amigos.
O barraqueiro participava de uma associação de comerciantes da praia. Tentava mobilizar os prejudicados para interromper o andamento do projeto. Entretanto, os diretores da associação foram cooptados por João Barreto com uma proposta considerada irrecusável, exceto para Aristeu: Barreto solicitou aos barraqueiros a colocação de materiais publicitários na praia — guarda-sol, tendas, cadeiras de praia, isopores — em troca de uma “mesada” de 2 mil reais, por 20 anos, para cada diretor.
A poucos meses do fim do ano o povo carioca deparou-se com candidatos ao legislativo descaradamente fazendo discursos em prol da desapropriação e desnacionalização do patrimônio público em favor das grandes marcas transnacionais. Entre eles estão o secretário de governo da prefeitura, João Pedro —PFL — e o vereador Índio da Costa — também PFL. Esses são acusados de facilitar a viabilização de licenças através de propinas enviadas diretamente por empresas interessadas pela expansão de seus capitais.
Referindo-se à Lei Orgânica do município, Aristeu não se intimida em denunciar os exploradores do patrimônio público, os que realmente governam a cidade. A prática de João Barreto, segundo Aristeu, é antiga. O processo necessário para se fazer uma obra de grande envergadura como essa, exige no mínimo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA):
— A obra foi embargada e já foi desembargada novamente. Por que isso? Existe uma fábrica de venda de RIMA. Então, esse RIMA foi comprado. E por que continuava? Porque tinha juiz que ele (João Barreto) comprava. Ele é bom nisso. Os políticos, às vezes, tem a ilusão de que exercem o poder, mas na verdade o governo só gerencia o interesse dos monopólios privados, dando a canetada — indigna-se o barraqueiro.
Barraqueiros e ambulantes da orla carioca estão articulando a criação conjunta de uma associação para a defesa dos seus interesses e os da orla. Intitulada “Nova Orla”, estima-se que reunirá grande número de associados.
Determinada a lutar contra os descalabros que assolam a orla da cidade, a ambulante, Alzira Bizz, deu inicio à divulgação de um manifesto pelo qual conclama os barraqueiros e ambulantes sem ponto fixo a se unirem para impor o devido respeito e cuidar da orla, já que a areia da praia é a sala de atendimento de todos esses trabalhadores.
— A praia vive hoje uma desordem total. A rotina de roubo, do assalto e do arrastão culminou com o assassinato do turista português em plena luz do dia. A tudo isso somado, a administração pública permite a transformação da praia num canteiro de obras, com tapumes e dunas gigantescas, gerando mais angústia e insegurança na atividade profissional dos vendedores ambulantes. Tem mais: os hotéis vêm ampliando suas ocupações nas calçadas e, agora, cercaram um espaço na areia, com barracas, privatizando um espaço público. Sequer estão autorizados para isso — desabafa Alzira
Máfias governam
O germe que corrompe a própria democracia é hospedeiro do cérebro dos que se intitulam seus executores. Essas quadrilhas e a prefeitura prejudicam qualquer iniciativa democrática. O que está acontecendo na praia de Copacabana é um caso muito sério, porque a política de se apropriar do patrimônio do povo brasileiro acontece em todo o território nacional e Copacabana é um bairro privilegiado, do ponto de vista da natureza e da economia.
— Existe um empresário que compra liminar, corrompe o juiz, compra relatório de impacto ambiental e ainda por cima compra o parlamentar e o executivo vigarista. É um ciclo vicioso que eles não escondem mais; um sistema que eles tentam vender para nós dizendo que funciona. O sistema está totalmente podre, não tem como reformálo. Não é democrático, é de direito, mas do direito dos grandes trapaceiros — assevera Aristeu.
O que mais revolta o barraqueiro é a procedência ilegal da publicidade e venda irregular de determinadas mercadorias. Para ele, dependendo da situação, torna-se conveniente para a máfia incorporar irregularmente certos materiais na praia e, de repente, por algum motivo econômico, reprimir de todas as formas o uso desses mesmos materiais, da maneira mais dissimulada.
Recentemente, depois de uma batalha dos barraqueiros, as espreguiçadeiras tiveram o seu uso liberado por meio de decreto municipal. A própria associação dos barraqueiros alegou que se eles não as oferecessem, outros iriam ganhar espaço com isso. Foram liberadas 10 espreguiçadeiras para cada barraca. De repente, numa ação muito estranha, o chefe da guarda municipal resolveu que o decreto só valeria para o verão e começou a retirálos à revelia do decreto. Houve pressão em cima da associação para que ela retomasse as espreguiçadeiras. Em razão do período eleitoral, a prefeitura interviu, decidindo pelo uso delas o ano todo.
Em um país semicolonizado, considera Aristeu, as desigualdades são inerentes ao próprio sistema:
— Eles querem praia bonita, igual a Miami. Mas o turista não, senão ele não vinha para cá e sim para Miami. Tem que ter um cara catando lata no chão, por mais que seja um ponto turístico de grande importância, porque os exploradores obrigam o cara a levar essa vida! Nós vivemos num país semicolonizado, administrado pelas transnacionais e seus patifes internos Não temos como esconder a desigualdade. A praia é um abrigo para os desabrigados! É na praia que os desabrigados montam sua residência, infelizmente. Se os gerentes coloniais quisessem melhorar as coisas não teriam que maquiar a orla com este tipo de obra, porque isso só faz aumentar nossas dificuldades, enquanto aumenta o lucro máximo — indigna-se o barraqueiro.
Desde a segunda quinzena de outubro, nos quiosques que serão modificados, bandeiras negras estão sendo hasteadas em repúdio a continuidade da obra. A empresa Orla Rio realmente quer implantar o monopólio da orla, desconhecendo completamente as necessidades dos trabalhadores e do povo em geral. A população vem perdendo acesso livre à praia. A isso, soma-se o quadro de desemprego dos pequenos comerciantes que perderão seu espaço de trabalho. Não há que duvidar da possibilidade de, em poucos anos, a população se deparar com grades ao redor da praia para satisfazer convênios entre empresas hoteleiras e a “prefeitura” (lá deles), para que o povo não tenha mais um único lazer que não seja pago.