João Tancredo foi alvejado por 4 tiros no Rio de Janeiro após receber denúncias contra um policial militar.
"A primeira coisa que faremos
será matar todos os defensores do povo"
(Ricardo, em Henrique VI, Parte II, Ato IV,
Cena II, de William Shakespeare)
Era meio-dia de sábado, 19 de janeiro, quando o advogado João Tancredo dirigia seu Toyota Corolla pela Rua Bulhões Maciel, a 3 quilômetros de Vigário Geral, Zona Norte do Rio de Janeiro. Naquele trecho é preciso reduzir a velocidade para pegar a Linha Vermelha porque o trânsito que vem de Duque de Caxias é intenso. Foi nesse instante em que uma motocicleta se aproximou com duas pessoas, de capacetes escuros. De repente um vulto e quatro tiros na direção do rosto do advogado, que foi salvo pela blindagem do veículo.
O carro foi parar no acostamento. Logo em seguida, mais tiros, dessa vez em direção à motocicleta. Era um camburão da polícia, em estado precário, que tentou perseguir os agressores. Sem sucesso.
O advogado voltava da Favela Furquim Mendes, onde ouviu relatos de moradores a respeito de execuções sumárias cometidas por um policial militar conhecido pela alcunha de "Predador". As testemunhas contaram que no domingo, dia 25 de novembro passado, policiais entraram e dispararam tiros para todos os lados na Favela Furquim Mendes, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Quatro ficaram próximos ao campo do Gigantão, em cima da laje de uma casa. Atiraram num traficante com fuzil e em moradores que estavam ao redor. Cinco pessoas foram mortas. O mesmo grupo de policiais é acusado de executar um pastor com tiro na nuca.
Após ouvir as denúncias, João Tancredo colheu os nomes e endereços das testemunhas e prometeu voltar com outras organizações e movimentos sociais que denunciam a criminalização da pobreza. Na saída da favela seu carro foi alvejado.
O caso foi registrado na 38a DP (Irajá), onde o delegado apressou-se em dizer que a principal linha de investigação seria a de roubo. Essa hipótese foi descartada pelas principais organizações e movimentos sociais do Rio de Janeiro, que se reuniram três dias depois para avaliar a situação. O próprio João Tancredo declarou:
— Não tenho dúvidas de que foi um atentado comandado por esse sujeito, o tal 'Predador'. Gostaria de ter essa dúvida, mas não tenho. É um absurdo a polícia trabalhar com a hipótese de roubo ou sequestro.
A família do advogado divulgou nota em que contesta a linha de investigação da polícia e afirma não ter dúvidas de que se trata de um atentado, além de reafirmar que continuará lutando:
"Não temos dúvidas que o João sofreu um atentado, pois os tiros foram disparados sem qualquer aviso e todos em sua direção. Enxergamos com clareza que o atentado não aconteceu somente contra o João, mas também contra todos que lutam pelos direitos fundamentais e pela intransigente defesa da dignidade da pessoa humana. O grave evento criminoso jamais retirará nossa família dos movimentos sociais e entidades que trabalham arduamente na defesa dos Direitos Humanos, por uma sociedade justa."
Em outro trecho, a nota conclama a todos para continuar lutando pela identificação dos culpados pelas execuções realizadas na cidade:
"Essa denúncia deve servir de estímulo para que os movimentos sociais, as instituições, os cidadãos, enfim, toda a sociedade civil busquem a responsabilização pelas execuções diariamente realizadas impunemente no Rio de Janeiro."
Instituições como a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e o Grupo Tortura Nunca Mais divulgaram comunicados exigindo investigações isentas e criticando a tentativa de descaracterização de crimes contra defensores do povo.
De acordo com o juiz de direito João Batista Damasceno, integrante da AJD, tudo leva a crer que se tratou de um atentado devido à forma e local da abordagem e a conduta dos agressores:
— Já se fala de uma certa pessoa conhecida como Predador, que era a pessoa contra a qual Tancredo estava colhendo depoimentos de execuções. Já se fala que o Predador levou uma esculhambação de seus superiores. Isso é grave e demonstra que ainda existem os aparatos estatais e pára-estatais envolvidos com os extermínios que foram montados no Brasil no final dos anos 50 e depois no final de 60, este último para a repressão política e que descambou também para a eliminação sem motivação política. Esses aparatos continuam a serem instalados a tal ponto de se autorizar ou esculhambar um de seus membros.
O atentado ocorre apenas dois meses e meio após a divulgação do Manifesto Contra as Políticas de Extermínio do governo Sérgio Cabral, quando João Tancredo esteve na mesa ao lado do juiz Damasceno. Como ressaltou o professor da UFRJ Roberto Leher, "na Colômbia estão matando militantes dos direitos humanos na ordem de centenas por ano". No ano passado, o governador do RJ visitou o país vizinho e anunciou que implementaria aquele mesmo modelo de segurança pública. Sérgio Cabral não se manifestou a respeito do atentado sofrido por João Tancredo.
Damasceno explica que após a divulgação do Manifesto, o governo passou a utilizar o termo "política de enfrentamento" o que, segundo o juiz, não corresponde à realidade:
— Não há enfrentamento. As pessoas estão sendo executadas sem nenhum enfrentamento com a polícia. E o exemplo máximo foi o caso da Favela da Coréia. Não houve ação capaz de respaldar uma alegação de legítima defesa. E apesar disso, o governo continua a dizer que se trata de uma política de enfrentamento. Na verdade é uma política de tentativa de limpeza, como já foi tentado em outros momentos. É uma concepção de que o criminoso é um corpo estranho na sociedade, uma visão orgânica de que a sociedade é um corpo são e que pode ter algumas partes necrosadas e que precisam ser removidas. Sem a compreensão de que o crime é uma construção social e a criminalidade permeia as construções sociais, e todos estão sujeitos a cometer cotidianamente condutas definidas como crimes, em maior ou menor grau.
O advogado João Tancredo defendeu com sucesso famílias de vítimas da Chacina da Baixada (2005) e foi um dos responsáveis pelo aprofundamento das investigações da Chacina do Alemão (2007). Teve atuação destacada na presidência da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, fazendo com que a entidade voltasse a cumprir o papel de representante, de fato, do cidadão fluminense.