Aulas de sonoridade e brasilidade

Aulas de sonoridade e brasilidade

Yassir (Chediak) é um carioca apaixonado por viola, aquela que é conhecida no Brasil inteiro como viola caipira, mas que também é a viola brasileira do litoral e de todas as regiões do país. Com influências mineiras, nordestinas e cariocas, ele faz um trabalho diferenciado e elogiado por mestres da viola, como Chico Lobo. Um brasileiro com muita disposição para o trabalho, ele criou três sítios de divulgação do seu trabalho e outros artistas na Internet, onde aparece até uma web rádio tocando as músicas que não tem espaço nas rádios normais.

Ele gosta de explicar que o nome ‘viola caipira’, na verdade ficou substituindo a ‘viola’ propriamente dita. O instrumento viola é caipira  — presente no país inteiro, representando a cultura de cada região de forma diferente  —, mas é a mesma viola. Por exemplo, a viola do Nordeste não se chama sertaneja; a do sul, viola de fandangos; a do Rio de Janeiro, viola caiçara, por ser litoral. E a cultura do litoral é a conhecida com cultura caiçara. No entanto, é o mesmo instrumento, a mesma sonoridade.

— A princípio, era somente viola. Com o passar dos séculos recebeu esse nome de caipira, por ter conseguido lugar para sobreviver no interior. A viola veio para o Brasil na época da colonização portuguesa, quando ainda era uma viola de arame, e foi se modernizando até chegar na que conhecemos hoje. Os jesuítas a trouxeram para poder catequizar os índios, já que através da música era muito mais fácil fazer isso. Dessa forma foi surgindo a música brasileira. O próprio samba começou assim. O samba de roda era tocado na viola. O samba do recôncavo baiano ainda é na viola — diz.

E vai se aprofundando:

— A viola se tornou uma unanimidade nacional, mas quando chegou o violão, no final do século dezenove, ou melhor, chegou a guitarra, os portugueses olharam e disseram: ‘ora pois, que viola grande, está a parecer um violão!’ (risos) Por isso se tornou o violão, querendo dizer, uma viola grande. Tanto que só no Brasil e em Portugal o violão tem esse nome, no resto do mundo é guitarra — continua.

E a lição prossegue:

— Com a chegada do violão, a viola que estava no Rio, no litoral, ela foi sumindo, porque junto com o violão chegou o método, do século dezenove, para aprender a tocar. Isso fez com que as pessoas começassem a preferir o violão, já que, com o método, acabavam aprendendo mais rápido. E como essas novidades todas vinham somente de navio e elas não chegavam no interior, a viola ficou por lá, guardada, preservada, e nas capitais como o Rio de Janeiro, ela foi se diluindo — acrescenta.

Yassir conta que em pesquisas que fez sobre viola no Rio, descobriu um quadro chamado Violeiro na Lagoa do Boqueirão, que retrata um desses violeiros tocando no local que hoje estão os Arcos da Lapa, mostrando que tinham muitos violeiros cariocas. Ali era uma grande lagoa que, com o crescimento da cidade, foi aterrada e desapareceu.

Eu tento fazer com que as pessoas possam observar que os regionalismos são muito bonitos

— Encontrei também, nos arquivos da polícia, um processo contra um violeiro que foi preso e acusado de ‘serenata’. A viola era muito presente por aqui. Mas é claro, tenho o maior orgulho de falar que toco viola caipira, até porque todos nós somos um pouco caipira. É a verdadeira essência da humanidade. O homem está ligado a terra, tem como referência a natureza, e isso é um caipira. Apesar de hoje ele estar perdendo essa referência, quando nem pára mais a olhar o céu, e ver se a lua está cheia ou não. Com isso, perdendo a contemplação, que acredito ser a essência do caipira. E como toco a viola, eu contemplo tocando — comenta.

— Sou carioca, com fortes raízes mineiras e também nordestinas. Meu pai é mineiro, e atualmente mora em Minas. Minha mãe é carioca, mas tem raízes nordestinas, e cresci com essas influências. Meu pai ouvia muita música mineira, e músicas eruditas bem tradicionais, óperas. Já minha mãe gostava de ouvir canções folclóricas nordestinas, e música eruditas mais modernas, contemporâneas, como Carmina Burana e Villa Lobos — diz Yassir, que é descendente de libaneses.

Violeiro na essência

Yassir é filho do cineasta Braz Chediak, que fez na década de 60 e 70, filmes como Navalha na Carne e da documentarista e atriz Leilane Fernandes, autora de um importante documentário, Jacob e Seus Bandolins, sobre a vida de Jacob do Bandolim, onde aparece a única imagem gravada do bandolinista.

— Na adolescência fui morar em Minas, depois voltei para o Rio e já tocava violão. Esqueci por um tempo tudo que eu tinha vivido. Claro, ficava dentro de mim. Um dia eu estava com um LP de viola que achei no meio de uns discos em minha casa, e resolvi ouvir. Foi quando despertei para o que eu estava procurando em matéria de som. No mesmo dia comprei uma viola e comecei a desenvolver as composições no meu estilo — fala.

E o encanto da sonoridade brasileira foi tomando conta de Yassir:

— Meu primeiro mestre de viola foi o João Viola, de Três Corações — MG. Ele me ensinou a tocar as músicas tradicionais na viola caipira, como Tonico e Tinoco, que eu aprecio muito. Eu gosto da música brasileira, todos os segmentos. Escuto muita música gaúcha, muita música caipira, samba, música pantaneira, enfim, é lindo ouvir a sonoridade brasileira — conta.

Quem ouve as suas músicas percebe que é um estilo que funde a música litorânea com a caipira e a nordestina:

— O samba é uma música do mar, é do Rio de Janeiro. Nas minhas composições aparece o samba mais tradicional, sendo que neste caso não é exatamente samba, é música do mar, que seria a viola caiçara. Eu digo que a minha música é uma música muito brasileira, fusão de três vertentes. Por isso não posso precisar, para quem pergunta, se meu estilo é mais carioca, mais mineiro ou mais nordestino, porque ele varia nessas três vertentes. Pode-se dizer que a minha música é uma música brasileira, ela abraça o Brasil — afirma.

Ele criou um estilo diferenciado, uma música nova, mas que segundo explica, já existia no Brasil de muitos séculos atrás, e que está voltando, com o seu trabalho e de tantos violeiros.

— Às vezes eu pego uma melodia, que é uma canção de praia, e toco na viola. E ela fica parecendo uma música dentro da linha Dorival Caymi, digamos, porém Dorival não utilizava a viola. E como eu utilizo, e ela por si só tem uma sonoridade mineira, acaba criando algo diferenciado, que desperta curiosidade nas pessoas de querer saber que som é esse. Digamos que é um som ancestral que o Brasil fazia e que com o tempo foi se perdendo. Agora começa a voltar, principalmente com a linha de violeiros novos em todo o país — declara.

Yassir é letrista e compositor, e faz músicas também com parcerias. Ele cita duas parcerias que fez com Jorge Mautner: uma para o seu primeiro CD, chamada Estrada, que deu nome ao disco, e outra para o seu futuro CD, chamada Leva eu Morena.

— Esse título (Leva eu Morena) está ligado ao folclore brasileiro. Se analisarmos a música brasileira, vemos que compositores importantes são muito ligados ao folclore. De Chico Buarque ao Toninho Horta, todos se utilizam de células folclóricas, das células das músicas tradicionais brasileira. Ouvimos Chico Buarque cantando ‘Meu caro amigo’ e vemos que se trata de um choro, que é algo muito tradicional. E a música precisa disso — nota.

Os bons compositores estão irremediavelmente ligados à tradição nacional da música popular:

— Em outro momento, podemos dizer que Chico é um compositor de modinhas imperiais também, quando se escuta Gente Humilde, por exemplo, e se a compara a uma música do século 18, 19. Nota-se que a música está nesse universo, das modinhas. E assim, muitos outros compositores. São células folclóricas — acrescenta Yassir.

… de todas as regiões

Muitas pessoas perguntam para Yassir se ele é caipira, porque toca a viola que todos conhecem somente como caipira, e ao mesmo tempo é carioca e mora no Rio de Janeiro. Ele não demora em responder:

— Sou um brasileiro somente. Tem dia que eu acordo mais paulista, outros eu acordo pantaneiro, amazonense, etc, e isso reflete nas minhas composições também. Tenho composições com uma pegada completamente nordestina, outras mineiras, outras cariocas. Então eu digo que toco a viola brasileira. Ela está no Rio Grande do Sul, na viola Fandangos, em Minas; no pantanal; no Nordeste; no Recôncavo Baiano, em toda a parte que aparecem manifestações de música. Então pego um pontinho de cada um, jogo dentro da minha vida e faço as minhas composições. Resultado: uma viola totalmente brasileira — declara.

É bom ouvir os nossos, a nossa gente verdadeira. Mesmo quando se trata de um típico regional, essa expressão e a do nosso povo inteiro. Assim, insiste o compositor:

— Acho que com o meu trabalho, eu tento fazer com que as pessoas possam observar que os regionalismos são muito bonitos. É tão bom ouvirmos Alceu Valença cantando o nordeste, e Chico Lobo cantando Minas Gerais, ou o gaúcho Renato Borgheti. Também é maravilhoso podermos ouvir o samba paulista do Adoniran Barbosa e o carioca de Cartola. Eu admiro essa confluência, esses elementos brasileiros — continua.

O primeiro CD de Yassir está esgotado, devido a muita persistência, muito trabalho para encontrar um espaço nos meios de comunicação, que não o oferecem para a autêntica música popular brasileira. Ele conseguiu, depois de muita insistência, que uma de suas músicas, Estradas, entrasse na trilha de um seriado da televisão, sobre caminhoneiros.

— Essa música tem uma pegada mais caipira. O Brasil é um país de muitos caminhoneiros. Então, a música conta a vida de um caminhoneiro que corta o país, enquanto sua viola fica deitada no banco gelado do caminhão. Diz: ‘e a viola vem sofrendo o castigo, igual a você amada eu digo, sem o toque da minha mão’, comparando a viola com uma mulher. Porque a viola é um instrumento muito místico, tem muitas lendas que a acompanham, no Brasil inteiro. Violeiros de todo o país contam seus causos, de acordo com a sua vivência e folclore da região — comenta.

Além da música na televisão, Yassir criou três sítios na Internet, para poder divulgar sua viola e a música de outros artistas também.

— Criei o violacaipira.com.br, que é um grande sítio sobre viola caipira, exclusivo de cultura regional brasileira. Virou um dos sítios mais visitados do país. A Internet é hoje é um meio de comunicação muito forte. Todos dias, centenas de pessoas entram e acessam esse sítio. São pessoas que querem conhecer o trabalho, e então se encantam. Lá dentro criamos também uma rádio para que as pessoas possam escutar as minhas músicas e de todos que estão vinculados ao sítio. E quando elas escutam, logo querem comprar. Dessa forma esgotou o meu primeiro CD — conta.

Navegar é preciso

— Com o sucesso do violacaipira, criei outro sitio, o brasilpandeiro.com.br, que virou outra referência musical para a música popular brasileira. É um sítio basicamente de MPB. Dentro dele tem uma web rádio de música popular brasileira cantada, e também a primeira web rádio de música instrumental brasileira. Acredito que a música instrumental precisa de espaço de divulgação, e isso ela encontrou lá — acrescenta.

Yassir diz que esse sítio é igualmente muito visitado, e que após conhecer o trabalho dos artistas que nele expõem, as pessoas ficam mandando e-mails para comprar os CDs. De tanta insistência, ele e seus amigos criaram outro sítio, o www.lojampb.com.br, que vende os CDs e livros. E toda essa divulgação fez com que Yassir fosse chamado para participar de alguns programas de entrevistas na televisão, aproveitando para divulgar a música cultural popular brasileira.

Além dos CDs e dos shows, Yassir viaja uma vez por mês para São Pedro do Itabapuana, ES, onde trabalha em um projeto que leva música e teatro para crianças, que normalmente não têm acesso à arte mais refinada.

— São Pedro do Itabapuana é uma cidade histórica, só de casinhas coloniais, esquecida ali no tempo, com 600 habitantes. A cidade é distrito de Mimoso do Sul, a região do Espírito Santo que mais tem casarões coloniais. A prefeitura local criou um projeto chamado Orquestra Sanfona e Viola de Mimoso, e eu vou até lá para dar aulas para as crianças. Minha intenção com esse trabalho é fazer o que posso em contribuição para a cultura no país. Creio que existe um ‘caldeirão’ de criatividade pelo Brasil, que não está sendo utilizado — fala.

E conclui criticando os que só sabem conversar, elaborar promessas, viajar e fazer reuniões:

— Acredito que as pessoas precisam parar de falar e começar a fazer. Esquecer as burocracias e ir à luta. É uma questão de vontade, de não ficar contando com a ‘paternidade’ do poder público, que não existe, mas de arregaçar as mangas e lutar em favor da cultura no país. É preciso socializar. Se cada um fizer algo pela cultura, haverá mudança. O país é nosso, a gente tem que ficar de olho — finaliza Yassir.

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